Revista Exame

Ágil e às pressas: metodologia salva equipes do caos na pandemia

A pandemia elevou a busca por maneiras flexíveis de trabalhar. Quem já era ágil passou por um teste de fogo e um alerta: não dá para mudar de qualquer jeito

Centro de  crise contra a covid-19 do governo paulista: squad com 80 servidores públicos de cinco secretarias e autarquias resultou em 90 ideias para enfrentar a crise sanitária desde março  (Amanda Perobelli/Reuters)

Centro de crise contra a covid-19 do governo paulista: squad com 80 servidores públicos de cinco secretarias e autarquias resultou em 90 ideias para enfrentar a crise sanitária desde março (Amanda Perobelli/Reuters)

Luísa Granato

Luísa Granato

Publicado em 13 de agosto de 2020 às 05h00.

Última atualização em 17 de agosto de 2020 às 09h20.

As semanas de março foram intensas para Patricia Ellen da Silva, secretária de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo e uma das pessoas mais próximas do governador João Doria (PSDB). O avanço do vírus em solo paulista, primeiro epicentro da pandemia no país, virou quase tudo de cabeça para baixo, inclusive a prestação de serviços públicos. Como tirar do papel a testagem da covid-19, doença causada por um vírus recém-descoberto? Em meio ao isolamento social, como monitorar os deslocamentos de mais de 40 milhões de paulistas em 645 municípios — e, assim, conter a crise sanitária? O que fazer com 170.000 crianças de famílias pobres que, com as escolas fechadas, ficariam sem comer por falta de merenda? “Era muito problema urgente para resolver”, diz Silva. “Trabalhar como antes não daria certo.”

A solução foi virar também de ponta-cabeça o jeitão de trabalhar dos servidores paulistas. Em vez de dividir projetos em várias equipes com pouca interlocução entre si, o esquema foi reunir líderes de cinco secretarias e dezenas de autarquias numa equipe dedicada a vasculhar o governo em busca de ideias. De quatro meses para cá, cerca de 80 representantes de cinco secretarias e dezenas de autarquias que raramente trabalhavam juntos se tornaram colegas na missão de vasculhar o governo inteiro em busca de ideias para enfrentar os desafios impostos pela crise. Alguns do grupo batem ponto num salão de recepções do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, transformado num “centro de crise” contra a pandemia. Outros participam por videoconferência para evitar aglomerações. “Tudo foi muito ágil e organizado às pressas”, diz.

A inspiração do governo paulista veio da metodologia ágil, um modelo de gestão de equipes que remonta à virada dos anos 2000, com a popularização da internet e da colaboração entre desenvolvedores de softwares, que, não raro, trabalhavam em cidades ou países diferentes. Em vez de o trabalho ser organizado de forma clássica — equipes diferentes atuando apartadas com pouca interação entre si até um produto ficar pronto —, a ideia da metodologia ágil é que times multidisciplinares encontrem respostas mais rapidamente e façam entregas curtas, chamadas de “produtos mínimos viá­veis” (ou MVP, na sigla em inglês). A ideia é ir testando com frequência e, também, ir consertando os erros.

AUMENTO DO INTERESSE
De lá para cá, boa parte das startups mundo afora creditou ao método ágil o fato de crescer muito rapidamente com equipes diminutas — os squads, times com até oito integrantes; ou as tribos, uma espécie de junção de muitos squads com finalidades parecidas (veja glossário abaixo). No período de semanas ou poucos meses, eles mantêm diversos ritos que estruturam o processo, como reuniões diárias para alinhar tarefas e dar ­feedbacks. Para organizar as ideias e indicar o que ainda falta ser feito, são comuns quadros de avisos com post-its, um método conhecido como Kanban (termo japonês para “cartão”). A referência é o aplicativo de músicas Spotify, que, com times enxutos de engenharia, conseguiu levantar um negócio com valor de mercado de mais de 50 bilhões de dólares em pouco mais de uma década.

Escritório do aplicativo de streaming Spotify: equipes enxutas de engenheiros, que mudam de acordo com o projeto, são referência de flexibilidade no ambiente de trabalho | Jonathan Nackstrand/AFP (EPA/BERND THISSEN)

Na pandemia, a metodologia ágil ganhou espaço em empresas e governos em busca de alguma ordem em meio ao caos. Segundo uma pesquisa recente da plataforma de softwares ­Digital.ai com 1.100 chefes de departamentos de tecnologia ao redor do mundo, 33% ampliaram o esquema de trabalho na tentativa de enfrentar os percalços do trabalho remoto. No Brasil, um indício do alvoroço em relação ao tema é a audiência das palestras promovidas pela Agile Trends, empresa fundada em 2013 em São Paulo e dedicada a eventos sobre a metodologia. Em 2019, três encontros reuniram 4.000 pessoas. “Em 2020, em apenas um evento virtual foram mais de 15.000”, diz Dairton Bassi, presidente da Agile Trends. Desde março, a base de empresas com algum tipo de contato com a Agile Trends subiu pouco mais de 20% — hoje são 10.700, uma busca expressiva nos sete anos de empresa. Todo o interesse no assunto levou muitas empresas a estrear a metodologia agora. Foi o que ocorreu na unidade brasileira da fabricante de ­defensivos agrícolas americana FMC. Com a necessidade de puxar o freio de mão em despesas em razão da reversão brusca do cenário da economia brasileira em 2020, a empresa criou dois squads, cada um com dez funcionários de todas as áreas, para mapear gastos. A força-tarefa analisou contratos com fornecedores e, em questão de dias, conseguiu eliminar 6% das despesas. “Ter dois times dedicados foi crucial para atingir as metas”, diz Marcelo Magurno, presidente da empresa no Brasil.

O mundo corporativo é pródigo em criar métodos de gestão de processos que acabam perdendo força com a chegada de novas modas — basta lembrar que, por muitas décadas, o trabalho individual numa linha de produção, inventada em montadoras como a Ford, foi o estado da arte para escolas de administração e consultores no mundo todo. Até recentemente outra febre era o sistema “5S”, disseminado pela montadora Toyota e que preconizava a organização milimétrica do espaço de trabalho. O ágil veio para ficar?

ÁGIL NA VEIA
No teste de fogo trazido pela pandemia, há indícios de que a metodologia ágil tem sido uma ferramenta útil de inovação quando bem implantada. Num estudo feito durante a pandemia pela consultoria Bain & Company com 800 empresas de grande porte em vários países, inclusive do Brasil, que mandaram os funcionários trabalhar de casa, 72% das equipes estão inovando mais do que nos processos tradicionais comuns antes da crise, por causa da metodologia. No estudo da Digital.ai, perto de 60% relataram que esse sistema de gestão de processos ajudou a manter a produtividade, ainda que sem os benefícios da interação próxima dos escritórios.

Em negócios que já adotavam a ferramenta ágil antes da crise, o sistema permitiu seguir o cronograma de lançamentos de produto ou de serviços, mesmo com o rebuliço causado pelo home office forçado. Na varejista Magazine Luiza, entusiasta do método há pelo menos uma década, a divisão de trabalho em squads de vários departamentos interagindo à distância facilitou a criação do Parceiro Magalu, um shopping virtual para pequenas e médias empresas e pessoas físicas — uma maneira de agregar receitas à varejista num momento de fechamento geral do comércio de rua. “Levamos apenas três semanas no projeto”, diz Henrique Imbertti, diretor de agilidade organizacional do Magazine Luiza. “Foi agilidade na veia.” No banco BV, versões digitais das famosas paredes com post-its para acompanhar as tarefas permitiram o funcionamento de 76 squads simultaneamente mesmo com 99% das pessoas trabalhando remotamente. “O cronograma de lançamento de produtos da plataforma digital não foi alterado”, diz Anaterra Oliveira, superintendente de tecnologia do BV. Entre as conquistas nos últimos quatro meses estão feitos como organizar os dados de 1 milhão de clientes para um mutirão de renegociação de prazos de dívidas — tudo feito online em sistemas desenvolvidos por squads. Como resultado de outra frente de trabalho, 30% da infraestrutura do banco está migrando para nuvem. “Os ganhos de produtividade mensal não baixaram de 40% na pandemia”, diz Oliveira.

Post-its virtuais no escritório doméstico de Anaterra, do banco BV: sucessão de post-its para controlar entregas de projetos ajudou a elevar a produtividade do time em home office | Leandro Fonseca (Flickr/San Diego Shooter)

RISCO DE COMANDO E CONTROLE
Apesar do oba-oba, dá trabalho colocar a metodologia ágil em prática. O risco de espalhar o caos pela empresa inteira com a súbita quebra das hierarquias é real e pode resultar no efeito contrário do pretendido: derrubar a produtividade das equipes. No livro Ágil do Jeito Certo, recém-lançado no Brasil pela editora Benvirá, o administrador americano Darrell Rigby, que também é chefe global da unidade de inovação em metodologia ágil da Bain & Company, argumenta que um dos erros mais comuns nas empresas é um time de diretores definir um grande plano de transformação usando a metodologia como uma ordem de “faça o que eu quero mais rápido do que antes”, ainda num modelo de comando e controle, com um discurso de autonomia mal-ajambrado em hierarquias ainda rígidas. Outro é o de investir recursos no sistema de maneira indiscriminada, sem considerar particularidades como a área de atuação do negócio ou a cultura da empresa. “Copiar um modelo pronto, como o do Spotify, também é um erro, porque você pode quebrar times que estavam funcionando bem da maneira tradicional”, disse Rigby em entrevista à EXAME (leia mais abaixo).

Um desafio comum às empresas é fazer tantas pessoas diferentes conversar na mesma língua e saber trabalhar juntas. Esse foi um percalço no governo paulista — como azeitar a relação entre gestores públicos acostumados ao salamaleque típico da burocracia brasileira com a objetividade de engenheiros de startups e órgãos técnicos convocados para missões urgentes, como ampliar os testes de covid-19? “Criamos uma rotina de reuniões diárias de acompanhamento dos projetos para ninguém ficar perdido”, diz Silva. No fim das contas, o esquema resultou em 90 ideias contra a pandemia, a exemplo de uma parceria da Secretaria de Educação com a ONG Central Única de Favelas para transferir 51 reais por mês a título de merenda escolar às crianças carentes por meio de aplicativos de carteira virtual. Ou, então, parcerias com laboratórios privados para elevar 20 vezes a capacidade de testagem contra a covid-19 — foram mais de 2 milhões de resultados entre março e julho.

Afinal, como ganhar agilidade do jeito certo em condições anormais de trabalho, como as trazidas pela pandemia? A regra de ouro é ter equipes diferentes orientadas a perseguir um objetivo comum — que, em última instância, é agradar aos clientes da empresa. Hábitos arraigados no dia a dia das empresas, como fazer reuniões periódicas para alinhar o time, ajudam a manter um senso de ordem mesmo com todos trabalhando de casa. Segundo uma pesquisa da Agile Trends, 64% das empresas brasileiras que adotam o método veem que as práticas básicas, como planejamentos curtos e retrospectivas para projetos, ajudam a chegar mais perto dos resultados almejados. A informalidade do dia a dia corporativo brasileiro, nessas horas, pode resultar em pouca objetividade. “Aqui, as reclamações mais frequentes na gestão de projetos são os desvios de pauta nas reuniões, que se tornam longas e improdutivas”, afirma João Roncati, diretor da People+Strategy, consultoria em gestão de pessoas. Um risco é as equipes enjoarem do ritual de compartilhar informações com colegas de outras áreas da empresa e o planejamento ir por água abaixo.

Aos chefes, o aprendizado é superar a tentação de controlar as equipes o tempo inteiro e saber o que precisa ser ajustado no meio do caminho quando as coisas não evoluem com a agilidade planejada — um perigo real no meio dos percalços da pandemia. Nessas horas, fazer um bom planejamento é vital para reduzir a ansiedade da empresa inteira. No início do ano, a startup de produtos para pets Zee.Dog criou duas tribos: uma para desenvolver um aplicativo e outra para lidar com o comércio eletrônico, o carro-chefe de um negócio em expansão — no mês passado, a Zee.Dog recebeu aporte de 100 milhões de reais da gestora americana TreeCorp. No meio do caminho, o processo precisou de ajustes para a inovação ficar azeitada. Ficou claro, por exemplo, que as equipes não precisavam dos diretores dando pitacos o tempo inteiro nos squads. Enquanto ajustes eram feitos, os líderes da ­startup se envolviam apenas nos times que estavam pondo a mão na massa. “Foi importante manter o ciclo de experimentação e feedback. Para isso, ter organização ajudou”, diz Thiago Ferraz, diretor de tecnologia da Zee.Dog.

Loja da varejista Magazine Luiza: projeto de venda online saiu em três semanas com a colaboração de equipes multidisciplinares | Leandro Fonseca (Reprodução)

Daqui para a frente, há grande chance de as empresas seguirem apostando na metodologia mesmo com uma eventual volta aos escritórios. Segundo a pesquisa da Digital.ai, 55% das empresas pretendem ampliar o modelo de organização do trabalho nos próximos 12 meses. Até aqui, as coisas foram feitas às pressas. Resta saber se no longo prazo os sucessos de agora vão seguir — ou serão suplantados por outra tendência de gestão nas empresas.


“FAZER SÓ POR FAZER É UM ERRO”

Para Darrell Rigby, autor de Ágil do Jeito Certo, cada empresa deve encontrar seu modelo de adotar a metodologia e ir aos poucos | Luísa Granato

Darrell Rigby lidera as práticas globais de inovação e agile da Bain & Company e é autor do livro Ágil do Jeito Certo | Divulgação (Divulgação)

Mesmo sendo pensadas para interações presenciais, as metodologias ágeis ajudaram as empresas a atravessar a pandemia, mas fazer “só por fazer” ou copiar o que funciona em empresas bem-sucedidas, como o aplicativo de streaming Spotify, é um erro, segundo declarou o americano Darrell Rigby, autor de Ágil do Jeito Certo e uma autoridade no assunto, em entrevista à EXAME.

A metodologia ágil serve para lidar com uma crise como a da covid-19?
A metodologia é feita para prosperar num mundo inconstante e imprevisível. Se você consegue prever o que precisa desenvolver, quase tudo funciona. Mas, se não sabe ou se seu objetivo é vago, é aí que entra a metodologia. Você foca o que os clientes querem e usa testes contínuos para aprender a chegar ao produto. No método tradicional, você faz uma pesquisa e chega a uma previsão do que acha que os consumidores vão querer em um ano. Num mundo com inquietações sociais, pandemias, desastres naturais, é preciso se adaptar mais rápido.

O trabalho remoto muda em algo a adoção desses processos?
O time ágil também prefere interações presenciais, porém os profissionais de tecnologia estão mais habituados a equipes distribuídas e já usam há anos ferramentas como o Zoom e outros softwares. Além disso, o trabalho é organizado em rotinas, com revisões de projetos na semana. Mais importante: eles sabem mudar prioridades, delegar com autonomia, ouvir feedback e testar para aprender. A resistência ao modelo está diminuindo. Executivos de mais de 100 empresas me procuraram dizendo que leram meu livro e perceberam que muito do que precisaram fazer na pandemia era ágil.

Corre-se o risco de ser um modismo?
A popularidade está crescendo rapidamente, o que é bom e ruim. Tudo que cresce rápido corre o risco de ser mal utilizado. Vemos pessoas demitindo ou colocando a ferramenta onde ela não pertence. Ela é primeiramente para inovação. Nem tudo na empresa precisa disso. Por outro lado, existe a parte da mentalidade ágil, que é obcecada com o cliente, respeita os indivíduos e gera ideias. Até 20% da empresa pode estar em times ágeis, mas o sistema não é necessário em áreas como impostos e auditoria. Não precisamos de uma contabilidade mais criativa.

Quais erros as empresas cometem ao investir nesse método?
A solução ágil precisa ser caseira e gradual, sem transformações no estilo “big bang”. Quando um time de diretores define um grande plano de transformação dando ordens do tipo “faça o que eu quero mais rápido do que antes” ainda é o modelo de comando e controle prevalecendo. Mas isso acaba com a autonomia. Além disso, fazer “só por fazer” ou copiar modelos prontos, como o do Spotify, é um erro. O risco é quebrar times que estavam funcionando bem do modo tradicional.

Acompanhe tudo sobre:CoronavírusGestãoprodutividade-no-trabalhoRecursos humanos (RH)

Mais de Revista Exame

Invasão chinesa: os carros asiáticos que chegarão ao Brasil nos próximos meses

Maiores bancos do Brasil apostam na expansão do crédito para crescer

MM 24: Operadoras de planos de saúde reduzem lucro líquido em 191%

MM 2024: As maiores empresas do Brasil