Alexandre Abreu: As organizações enfrentam o paradoxo de promover o bem-estar enquanto o sistema de recompensas continua a premiar o "guerreiro corporativo" – aquele que responde a e-mails no sábado e se orgulha de não tirar férias
Co-fundador e CEO da Talentflix
Publicado em 9 de setembro de 2025 às 14h27.
A crise de saúde mental tem muitos números, mas, para mim, ela tem um som. É o som de uma notificação no Teams fora de horas, de uma cultura que prega o equilíbrio, mas recompensa a exaustão. É a voz de um cliente que, ao garantir uma entrega, me disse recentemente: "Fica tranquilo, a gente entrega. Custe o que custar, no final, a gente sempre entrega". O tom não era de orgulho, mas de puro ressentimento.
Essa cultura da performance a qualquer preço é o verdadeiro pano de fundo para o custo de um trilhão de dólares anuais em perda de produtividade, inovação e talentos. Os números são apenas o sintoma de um modelo de gestão que se esgotou e que está canibalizando o seu próprio futuro. Foi essa realidade que forçou a atualização da NR-1*, uma norma que, na prática, transforma o "S" de Social no ESG de um conceito abstrato para um manual de operações.
A conta finalmente chegou. Para os gestores que ainda operam no antigo paradigma, a mudança é sísmica. O que antes era uma gestão focada em riscos físicos e químicos, agora se expande compulsoriamente para a carga de trabalho, o estilo de liderança e a clareza de papéis.
A responsabilidade deixa de ser um tema exclusivo do RH e passa a ser compartilhada pela diretoria, líderes e jurídico, tornando a omissão um risco legal e financeiro explícito. Com isso, ações pontuais como palestras e ginástica laboral, embora bem-intencionadas, se tornam insuficientes; a exigência é de um plano que redesenhe processos, capacite líderes e ofereça suporte de forma integrada.
O maior desafio, no entanto, não é legal, é cultural. As organizações enfrentam o paradoxo de promover o bem-estar enquanto o sistema de recompensas continua a premiar o "guerreiro corporativo" – aquele que responde a e-mails no sábado e se orgulha de não tirar férias.
A OMS já declarou que o burnout é um fenômeno do trabalho, não uma falha do indivíduo. Tentar treinar colaboradores para serem mais "resilientes" a um ambiente tóxico é como tentar secar o chão com a torneira aberta. A solução não é distribuir mais panos; é fechar a torneira. E os colaboradores são inteligentes: eles não seguem o manual de cultura, seguem o sistema de reconhecimento.
O roteiro para líderes que querem vencer na nova economia começa por atuar como um arquiteto estratégico. O primeiro passo é construir o business case, apresentando os dados na linguagem do negócio. É preciso conectar o bem-estar diretamente ao P&L, mostrando quanto custa a rotatividade de um talento-chave ou o impacto da queda de produtividade nos resultados.
Em seguida, o caminho pragmático combina ganhos rápidos com mudanças estruturais. Implementar uma "sexta-feira sem reuniões" pode trazer um alívio imediato, mas a verdadeira transformação vem de um projeto paralelo para redesenhar o sistema de avaliação de desempenho, que é frequentemente a raiz da cultura de pressão. Acima de tudo, as soluções mais eficazes não vêm do topo; elas são cocriadas com quem está na linha de frente, usando a CIPA, comitês e as equipes operacionais como consultores para garantir relevância e adoção.
Mas a transformação não é uma via de mão única, dependente apenas da liderança. Ela se capilariza na cultura quando cada profissional assume a sua corresponsabilidade. A mudança real acontece quando você faz uma autoavaliação honesta e se pergunta: eu consigo reconhecer meus próprios sinais de esgotamento, como a irritabilidade ou o cinismo?
Quando foi a última vez que dei um feedback real sobre minha carga de trabalho ou a de um colega? Minha agenda reflete blocos de tempo para me recuperar de verdade? Cuidar de si não é egoísmo; é um pré-requisito de performance sustentável e um ato de responsabilidade com a equipe.
No fim, a NR-1* é um mapa, não o destino. Ela força as empresas a confrontar uma verdade inconveniente: a forma como trabalhávamos já não funciona. Neste cenário, há o caminho da conformidade burocrática, focado em evitar multas, e o da transformação estratégica, que usa esta oportunidade para construir uma organização onde o talento prospera.
A minha experiência é clara: o segundo caminho não é apenas o mais humano. Na economia do conhecimento, é o único que será lucrativo e sustentável a longo prazo. As empresas que não entenderem que o bem-estar se tornou um pilar do desempenho estão, simplesmente, programando a sua própria irrelevância.
*A Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), do Ministério do Trabalho e Emprego, estabelece as disposições gerais do Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (GRO). Sua atualização mais recente incluiu a obrigação explícita de as empresas identificarem, avaliarem e controlarem os fatores de riscos psicossociais no ambiente de trabalho, equiparando-os aos riscos físicos.