Cobrança de mensalidades nas universidades públicas é mais política do que técnica, diz Paulo Meyer
Instituto Millenium entrevista Paulo Meyer Nascimento
Instituto Millenium
Publicado em 12 de agosto de 2024 às 12h12.
Em meio às recentes discussões sobre a possibilidade de cobrar mensalidades de alunos ricos em universidades públicas federais, o Instituto Millenium entrevistou Paulo Meyer Nascimento, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Reconhecido como um dos maiores pesquisadores de financiamento de ensino superior do país, Paulo Meyer compartilha suas percepções sobre os prós e contras dessa medida e os desafios que ela pode enfrentar no contexto brasileiro.
Meyer critica a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, mas defende que os egressos paguem pela formação através de uma sobretaxa vinculada à renda, recolhida pela Receita Federal. Segundo ele, o modelo é adotado em países como a Austrália. Quando o formado estiver empregado, paga a dívida incorporada no Imposto de Renda. Caso seja demitido, o débito é congelado. Se o profissional não atingir um determinado patamar de ganhos, não paga.
Ele destaca que a decisão sobre a cobrança de mensalidades é mais política do que técnica, apontando justificativas econômicas para ambos os lados do debate. Meyer enfatiza a importância de políticas de inclusão e a necessidade de diversificação do financiamento das universidades públicas para garantir a qualidade e acessibilidade do ensino superior.
INSTITUTO MILLENIUM: De acordo com reportagens recentes, há discussões internas no governo sobre a possibilidade de cobrar mensalidades de alunos ricos em universidades públicas. Qual é a sua visão sobre essas discussões? Quais seriam as justificativas do governo para considerar essa medida, mesmo que ainda não tenha sido oficialmente proposta?
PAULO MEYER: Como o governo não reconheceu que o assunto foi tratado, não sei dizer se essas discussões aconteceram mesmo, nem qual teria sido o alcance delas. Também não tenho como falar em nome do governo para enumerar justificativas que possam tê-lo feito considerar a medida. O que posso dizer é que se trata de uma decisão muito mais política do que técnica. Há justificativa econômica em prol da cobrança porque um curso superior tende a proporcionar retornos privados para quem o faz, porque um sistema de financiamento exclusivamente público tende a ser regressivo, dado que os estratos de menor renda da população ajudam a pagar a conta, mas são sub-representados nesse nível de escolarização, e porque há formas de cobrar sem comprometer a participação de quem não pode pagar. Há justificativa econômica também em prol do financiamento do Estado ao ensino superior público (mesmo quando não 100% gratuito). Os principais argumentos favoráveis ao subsídio são o da equidade (cobrança exclui), o da isonomia (melhor não criar categorias de pagantes e não-pagantes), o da irrelevância (a arrecadação tenderia a ser muito pequena) e os que são fundados nos efeitos positivos que, em tese, o ensino superior, a pesquisa e a extensão proporcionam à sociedade e que alcançam além da pessoa que se matricula em um curso superior. Entre tantos prós e contras aos dois lados do debate, gosto de resumir a razão de eu me posicionar favorável ao financiamento público, mas com reservas à gratuidade irrestrita para quem estuda em universidades públicas com um parágrafo de artigo ( https://doi.org/10.2307/2234544 ) do Professor Nick Bar, da London School of Economics and Political Sciences (LSE), que pode ser traduzido mais ou menos assim:
Na ausência de qualquer subsídio, o investimento de um indivíduo em um diploma conferiria um 'dividendo' aos futuros contribuintes. Isso justifica algum subsídio público. Porém, quanto maior o subsídio do setor público para a educação superior, maior a pressão sobre o sistema para não crescer. A introdução de fundos privados é central para a expansão do número de estudantes.
IM: A cobrança de mensalidades para alunos de famílias ricas poderia ser vista como uma forma de redistribuição de recursos, ajudando a combater a desigualdade social. De que maneira essa medida poderia realmente promover uma maior equidade no acesso à educação superior? Existem riscos de que a medida não alcance esse objetivo?
PM: Não vejo a cobrança em universidades públicas necessariamente como um instrumento de redistribuição de recursos e de combate à desigualdade social. Entendo o argumento de justiça social que porventura lastreie a defesa da cobrança na ideia de fazer cada pessoa contribuir de acordo com sua capacidade de pagamento. Mas não vejo a cobrança per se como um instrumento de redistribuição de recursos, pois para isso precisa vir acompanhada de outras medidas, como a utilização dessa nova fonte de receita para fomentar políticas de acesso, permanência e conclusão de grupos minorizados. Tampouco vejo necessariamente como um instrumento de combate das desigualdades sociais. Simplesmente vejo como uma maneira de injetar recursos adicionais no sistema público de educação superior – desde que os recursos adicionais sejam revertidos ao próprio sistema, seja em orçamento adicional para as universidades, seja em políticas de inclusão.
IM: Uma das preocupações levantadas é que a cobrança de mensalidades poderia levar à migração de alunos ricos para universidades privadas, reduzindo a diversidade socioeconômica nas instituições públicas. Qual seria o impacto dessa potencial migração na qualidade do ensino e na experiência acadêmica? A presença de alunos de diferentes origens sociais é importante para a qualidade do ambiente educacional?
PM: Sim, a diversidade no campus – não só discente, mas também docente e de pessoal administrativo – é importante para a qualidade. É enriquecedora para o ambiente acadêmico a convivência de pessoas com variados perfis socioeconômicos, étnicos e culturais, tanto do ponto de vista da coesão social, quanto do ponto de vista dos resultados a serem obtidos nos processos de ensino, pesquisa e extensão. Um eventual êxodo da universidade pública de estudantes de alto status socioeconômico é tão perniciosa quanto a ausência de estudantes de baixo status socioeconômico. A convivência com a pluralidade beneficia todos os segmentos.
IM: Quais são os principais desafios que a implementação de uma cobrança de mensalidades poderia enfrentar no Brasil? Além dessa medida, que outras alternativas poderiam ser consideradas para melhorar o financiamento das universidades públicas sem comprometer a acessibilidade e a qualidade do ensino?
PM: O principal desafio é político mesmo. Como disse antes, estamos falando de uma decisão eminentemente política, não técnica. Há grupos organizados que se opõem fortemente à introdução de qualquer tipo de pagamentos de estudantes ou mesmo de ex-estudantes de universidades públicas. Coloquei anteriormente argumentos econômicos que são legítimos tanto para a defesa da cobrança, quanto para a defesa da gratuidade. Ponto fulcral é entender o peso da escolha. A escolha pela gratuidade total traz consigo uma segunda escolha: em um extremo, se mantém um sistema de boa qualidade, porém atrofiado e elitista – decisão que impõe desafios substanciais à expansão e inclusão; no outro extremo, se expande um sistema subfinanciado e crescentemente precarizado – decisão que impõe desafios substanciais à manutenção da qualidade. O Brasil é historicamente um exemplo do primeiro caso. Por mais que nos últimos 20 anos tenha avançado na direção do segundo caso, o sistema público brasileiro ainda é atrofiado (tanto que menos de 25% das matrículas estão em instituições públicas). Ações afirmativas, casadas com alguma expansão, têm tornado o sistema público menos elitista, mas, novamente vale lembrar, três quartos dos estudantes (majoritariamente de baixo status socioeconômico) estudam no segmento privado de ensino superior. Não há mais espaço fiscal para financiar novas ondas de expansão exclusivamente via recursos do Estado – a não ser que a opção seja por uma expansão com precarização cada vez mais acentuada. É esse contexto que me faz defender que o financiamento das universidades públicas conte com alguma participação de quem nelas estuda ou estudou – até porque o ensino superior tende a propiciar bons retornos privados, e o Brasil é, de acordo com dados todos os anos divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos países de maior diferencial de renda entre quem tem curso superior e quem não tem. Não defendo transferir a conta inteira do Estado para estudantes e suas famílias, apenas parte dela, que ajude a financiar a própria expansão do sistema e suas políticas de inclusão. Agora, não acho que mensalidades cobradas durante o curso sejam o melhor modelo. Há formas mais justas e eficientes de cobrar de quem pode e manter a isenção para quem não tem condições de pagar.
IM: Em vários países, existem modelos diferentes de financiamento da educação superior, incluindo a cobrança de mensalidades. Quais são alguns exemplos internacionais que poderiam servir de referência para o Brasil? Existem modelos que conciliam a cobrança com a manutenção da equidade e da qualidade do ensino?
PM: Entendo que o melhor modelo é o do financiamento com pagamentos vinculados à renda futura. Nesse tipo de modelo, só há pagamentos durante os anos de estudo se for a opção da pessoa. O padrão é a pessoa poder escolher pagar depois do curso e em prestações proporcionais à sua renda. Na prática, transfere-se a conta para ex-estudantes, aliviando estudantes e suas famílias, pois nada precisa ser pago na fase de estudos. Os pagamentos ocorrem no ritmo em que a renda futura permite. Nesse modelo, haverá quem acabará pagando o valor cheio, quem pagará só parte da conta e até mesmo quem acabará estudando de graça. A definição de quem estará em cada grupo só acontece muito mais à frente, à medida que renda é auferida, pois os pagamentos são recolhidos na fonte e limitados a uma parcela do rendimento pessoal. Funciona como se fosse uma sobretaxa no imposto de renda, estendendo-se por quanto tempo for necessário para zerar a dívida estudantil – mas protegendo quem ganha abaixo de certo montante preestabelecido, que deixa de ser cobrado enquanto estiver nessa condição, sem que seja caracterizada inadimplência. É um modelo que se vale da estrutura de recolhimento de tributos para implementar um sistema de financiamento que é, ao mesmo tempo, um seguro a proteger a pessoa de momentos ruins. Isso existe em um número crescente de países (o primeiro a adotar foi a Austrália, em 1989) e poderia perfeitamente existir no Brasil, pois há condições institucionais para isso. Há até uma proposta de emenda à Constituição parada no Senado Federal (a PEC nº 24/2023, protocolada pelo Senador Alessandro Vieira) que propõe um novo tributo que existiria tão somente para viabilizar sistemas de financiamento desse tipo. Aparentemente a motivação da proposição foi melhorar o Fies, mas a PEC poderia viabilizar sistemas de financiamento públicos e privados diversos. Inclusive para introduzir financiamento compartilhado nas universidades públicas, se algum dia o debate público for nessa direção. Como disse, porém, cobrar ou não de quem pode pagar em universidade pública é uma decisão eminentemente política. Mantê-la 100% gratuita para quem nela estuda é a escolha feita até aqui, e não há “certo” ou “errado” nesse tipo de decisão, desde que seja explicitado o peso de cada opção. Em vez de insistir na introdução de cobrança em universidades públicas, que é um tema que provoca fortes reações, melhor talvez fosse centrar esforços em viabilizar a forma de financiar estudantes com pagamentos vinculados à renda futura. Algo assim poderia ajudar estudantes de universidades públicas e de universidades privadas a superar suas restrições financeiras específicas – e é bom lembrar que a decisão de estudar traz muitos outros custos além de eventuais mensalidades. O tributo previsto pela PEC nº 24/2023 colocaria a renda futura como colateral e destravaria o mercado de crédito educativo, tão incipiente por tantas razões que a teoria econômica explicita tão bem e que podem ser razoavelmente contornadas por uma regulação eficiente de sistemas de financiamento com pagamentos vinculados à renda futura.
Em meio às recentes discussões sobre a possibilidade de cobrar mensalidades de alunos ricos em universidades públicas federais, o Instituto Millenium entrevistou Paulo Meyer Nascimento, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Reconhecido como um dos maiores pesquisadores de financiamento de ensino superior do país, Paulo Meyer compartilha suas percepções sobre os prós e contras dessa medida e os desafios que ela pode enfrentar no contexto brasileiro.
Meyer critica a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, mas defende que os egressos paguem pela formação através de uma sobretaxa vinculada à renda, recolhida pela Receita Federal. Segundo ele, o modelo é adotado em países como a Austrália. Quando o formado estiver empregado, paga a dívida incorporada no Imposto de Renda. Caso seja demitido, o débito é congelado. Se o profissional não atingir um determinado patamar de ganhos, não paga.
Ele destaca que a decisão sobre a cobrança de mensalidades é mais política do que técnica, apontando justificativas econômicas para ambos os lados do debate. Meyer enfatiza a importância de políticas de inclusão e a necessidade de diversificação do financiamento das universidades públicas para garantir a qualidade e acessibilidade do ensino superior.
INSTITUTO MILLENIUM: De acordo com reportagens recentes, há discussões internas no governo sobre a possibilidade de cobrar mensalidades de alunos ricos em universidades públicas. Qual é a sua visão sobre essas discussões? Quais seriam as justificativas do governo para considerar essa medida, mesmo que ainda não tenha sido oficialmente proposta?
PAULO MEYER: Como o governo não reconheceu que o assunto foi tratado, não sei dizer se essas discussões aconteceram mesmo, nem qual teria sido o alcance delas. Também não tenho como falar em nome do governo para enumerar justificativas que possam tê-lo feito considerar a medida. O que posso dizer é que se trata de uma decisão muito mais política do que técnica. Há justificativa econômica em prol da cobrança porque um curso superior tende a proporcionar retornos privados para quem o faz, porque um sistema de financiamento exclusivamente público tende a ser regressivo, dado que os estratos de menor renda da população ajudam a pagar a conta, mas são sub-representados nesse nível de escolarização, e porque há formas de cobrar sem comprometer a participação de quem não pode pagar. Há justificativa econômica também em prol do financiamento do Estado ao ensino superior público (mesmo quando não 100% gratuito). Os principais argumentos favoráveis ao subsídio são o da equidade (cobrança exclui), o da isonomia (melhor não criar categorias de pagantes e não-pagantes), o da irrelevância (a arrecadação tenderia a ser muito pequena) e os que são fundados nos efeitos positivos que, em tese, o ensino superior, a pesquisa e a extensão proporcionam à sociedade e que alcançam além da pessoa que se matricula em um curso superior. Entre tantos prós e contras aos dois lados do debate, gosto de resumir a razão de eu me posicionar favorável ao financiamento público, mas com reservas à gratuidade irrestrita para quem estuda em universidades públicas com um parágrafo de artigo ( https://doi.org/10.2307/2234544 ) do Professor Nick Bar, da London School of Economics and Political Sciences (LSE), que pode ser traduzido mais ou menos assim:
Na ausência de qualquer subsídio, o investimento de um indivíduo em um diploma conferiria um 'dividendo' aos futuros contribuintes. Isso justifica algum subsídio público. Porém, quanto maior o subsídio do setor público para a educação superior, maior a pressão sobre o sistema para não crescer. A introdução de fundos privados é central para a expansão do número de estudantes.
IM: A cobrança de mensalidades para alunos de famílias ricas poderia ser vista como uma forma de redistribuição de recursos, ajudando a combater a desigualdade social. De que maneira essa medida poderia realmente promover uma maior equidade no acesso à educação superior? Existem riscos de que a medida não alcance esse objetivo?
PM: Não vejo a cobrança em universidades públicas necessariamente como um instrumento de redistribuição de recursos e de combate à desigualdade social. Entendo o argumento de justiça social que porventura lastreie a defesa da cobrança na ideia de fazer cada pessoa contribuir de acordo com sua capacidade de pagamento. Mas não vejo a cobrança per se como um instrumento de redistribuição de recursos, pois para isso precisa vir acompanhada de outras medidas, como a utilização dessa nova fonte de receita para fomentar políticas de acesso, permanência e conclusão de grupos minorizados. Tampouco vejo necessariamente como um instrumento de combate das desigualdades sociais. Simplesmente vejo como uma maneira de injetar recursos adicionais no sistema público de educação superior – desde que os recursos adicionais sejam revertidos ao próprio sistema, seja em orçamento adicional para as universidades, seja em políticas de inclusão.
IM: Uma das preocupações levantadas é que a cobrança de mensalidades poderia levar à migração de alunos ricos para universidades privadas, reduzindo a diversidade socioeconômica nas instituições públicas. Qual seria o impacto dessa potencial migração na qualidade do ensino e na experiência acadêmica? A presença de alunos de diferentes origens sociais é importante para a qualidade do ambiente educacional?
PM: Sim, a diversidade no campus – não só discente, mas também docente e de pessoal administrativo – é importante para a qualidade. É enriquecedora para o ambiente acadêmico a convivência de pessoas com variados perfis socioeconômicos, étnicos e culturais, tanto do ponto de vista da coesão social, quanto do ponto de vista dos resultados a serem obtidos nos processos de ensino, pesquisa e extensão. Um eventual êxodo da universidade pública de estudantes de alto status socioeconômico é tão perniciosa quanto a ausência de estudantes de baixo status socioeconômico. A convivência com a pluralidade beneficia todos os segmentos.
IM: Quais são os principais desafios que a implementação de uma cobrança de mensalidades poderia enfrentar no Brasil? Além dessa medida, que outras alternativas poderiam ser consideradas para melhorar o financiamento das universidades públicas sem comprometer a acessibilidade e a qualidade do ensino?
PM: O principal desafio é político mesmo. Como disse antes, estamos falando de uma decisão eminentemente política, não técnica. Há grupos organizados que se opõem fortemente à introdução de qualquer tipo de pagamentos de estudantes ou mesmo de ex-estudantes de universidades públicas. Coloquei anteriormente argumentos econômicos que são legítimos tanto para a defesa da cobrança, quanto para a defesa da gratuidade. Ponto fulcral é entender o peso da escolha. A escolha pela gratuidade total traz consigo uma segunda escolha: em um extremo, se mantém um sistema de boa qualidade, porém atrofiado e elitista – decisão que impõe desafios substanciais à expansão e inclusão; no outro extremo, se expande um sistema subfinanciado e crescentemente precarizado – decisão que impõe desafios substanciais à manutenção da qualidade. O Brasil é historicamente um exemplo do primeiro caso. Por mais que nos últimos 20 anos tenha avançado na direção do segundo caso, o sistema público brasileiro ainda é atrofiado (tanto que menos de 25% das matrículas estão em instituições públicas). Ações afirmativas, casadas com alguma expansão, têm tornado o sistema público menos elitista, mas, novamente vale lembrar, três quartos dos estudantes (majoritariamente de baixo status socioeconômico) estudam no segmento privado de ensino superior. Não há mais espaço fiscal para financiar novas ondas de expansão exclusivamente via recursos do Estado – a não ser que a opção seja por uma expansão com precarização cada vez mais acentuada. É esse contexto que me faz defender que o financiamento das universidades públicas conte com alguma participação de quem nelas estuda ou estudou – até porque o ensino superior tende a propiciar bons retornos privados, e o Brasil é, de acordo com dados todos os anos divulgados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos países de maior diferencial de renda entre quem tem curso superior e quem não tem. Não defendo transferir a conta inteira do Estado para estudantes e suas famílias, apenas parte dela, que ajude a financiar a própria expansão do sistema e suas políticas de inclusão. Agora, não acho que mensalidades cobradas durante o curso sejam o melhor modelo. Há formas mais justas e eficientes de cobrar de quem pode e manter a isenção para quem não tem condições de pagar.
IM: Em vários países, existem modelos diferentes de financiamento da educação superior, incluindo a cobrança de mensalidades. Quais são alguns exemplos internacionais que poderiam servir de referência para o Brasil? Existem modelos que conciliam a cobrança com a manutenção da equidade e da qualidade do ensino?
PM: Entendo que o melhor modelo é o do financiamento com pagamentos vinculados à renda futura. Nesse tipo de modelo, só há pagamentos durante os anos de estudo se for a opção da pessoa. O padrão é a pessoa poder escolher pagar depois do curso e em prestações proporcionais à sua renda. Na prática, transfere-se a conta para ex-estudantes, aliviando estudantes e suas famílias, pois nada precisa ser pago na fase de estudos. Os pagamentos ocorrem no ritmo em que a renda futura permite. Nesse modelo, haverá quem acabará pagando o valor cheio, quem pagará só parte da conta e até mesmo quem acabará estudando de graça. A definição de quem estará em cada grupo só acontece muito mais à frente, à medida que renda é auferida, pois os pagamentos são recolhidos na fonte e limitados a uma parcela do rendimento pessoal. Funciona como se fosse uma sobretaxa no imposto de renda, estendendo-se por quanto tempo for necessário para zerar a dívida estudantil – mas protegendo quem ganha abaixo de certo montante preestabelecido, que deixa de ser cobrado enquanto estiver nessa condição, sem que seja caracterizada inadimplência. É um modelo que se vale da estrutura de recolhimento de tributos para implementar um sistema de financiamento que é, ao mesmo tempo, um seguro a proteger a pessoa de momentos ruins. Isso existe em um número crescente de países (o primeiro a adotar foi a Austrália, em 1989) e poderia perfeitamente existir no Brasil, pois há condições institucionais para isso. Há até uma proposta de emenda à Constituição parada no Senado Federal (a PEC nº 24/2023, protocolada pelo Senador Alessandro Vieira) que propõe um novo tributo que existiria tão somente para viabilizar sistemas de financiamento desse tipo. Aparentemente a motivação da proposição foi melhorar o Fies, mas a PEC poderia viabilizar sistemas de financiamento públicos e privados diversos. Inclusive para introduzir financiamento compartilhado nas universidades públicas, se algum dia o debate público for nessa direção. Como disse, porém, cobrar ou não de quem pode pagar em universidade pública é uma decisão eminentemente política. Mantê-la 100% gratuita para quem nela estuda é a escolha feita até aqui, e não há “certo” ou “errado” nesse tipo de decisão, desde que seja explicitado o peso de cada opção. Em vez de insistir na introdução de cobrança em universidades públicas, que é um tema que provoca fortes reações, melhor talvez fosse centrar esforços em viabilizar a forma de financiar estudantes com pagamentos vinculados à renda futura. Algo assim poderia ajudar estudantes de universidades públicas e de universidades privadas a superar suas restrições financeiras específicas – e é bom lembrar que a decisão de estudar traz muitos outros custos além de eventuais mensalidades. O tributo previsto pela PEC nº 24/2023 colocaria a renda futura como colateral e destravaria o mercado de crédito educativo, tão incipiente por tantas razões que a teoria econômica explicita tão bem e que podem ser razoavelmente contornadas por uma regulação eficiente de sistemas de financiamento com pagamentos vinculados à renda futura.