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Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h31.
Lygia Fontanella-Deadman estava no supermercado comprando refrigerantes quando ouviu um conselho surpreendente de um sobrinho: "Não leve esse, não. Fique com este outro, que usa guaraná extraído da Amazônia". O pedido fez a tia sorrir de contentamento. "Fiquei feliz de ver que até meu sobrinho, uma criança de 6 anos, está ligado nessa história de responsabilidade social", diz. Coisas de família, já que Lygia é diretora de marketing da Care Brasil, uma ONG presente em mais de 70 países que desde 1951 luta contra as causas da pobreza no mundo.
Mineira de 35 anos, Lygia fez sua estréia no Terceiro Setor em 1994, na Fundação Abrinq, ONG que desenvolve projetos de ajuda às crianças carentes -- e não parou mais. Antes, trabalhava na área de análise de crédito do Citibank. "Verificava a saúde financeira das empresas para saber que risco o banco correria se emprestasse dinheiro a elas", conta. Também foi funcionária de gigantes como o HSBC e a IBM. Lygia reconhece que provavelmente estaria ganhando mais se estivesse no setor privado, mas não se arrepende nem um pouco da escolha que fez. "É muito gratificante trabalhar para melhorar a vida das pessoas", diz. E não é só isso: segundo ela, a compensação também vem do lado financeiro. "Como acontece nas empresas, as ONGs precisam de gente competente para garantir sua sobrevivência, e sabem que devem pagar salários competitivos para atrair bons profissionais", observa. Um captador de recursos de nível gerencial, por exemplo, pode chegar a ganhar um salário de cerca de 7 mil reais.
Terreno fértil
Uma das funções de Lygia, que é economista com especialização em marketing, é justamente a captação de recursos. Sem doações de dinheiro, produtos e serviços, as organizações não-governamentais simplesmente não sobrevivem. Ela foi contratada pela Care em agosto do ano passado e o lançamento oficial da entidade está previsto para o mês que vem. Sua missão consiste em analisar o mercado para saber que empresas e instituições poderão garantir a execução de seus projetos. No período anterior à sua contratação, Lygia trabalhava em Londres como consultora da própria Care. "Faz mais de um ano que estamos estudando as condições do Brasil", explica. A entidade descobriu que trabalho é o que não vai faltar por aqui: 40 milhões de brasileiros vivem na miséria absoluta, e a renda dos 10% mais ricos é 30 vezes maior que a dos 40% mais pobres. Mesmo com tanta desigualdade, Lygia vê no país um manancial de recursos. "Na Inglaterra, apenas 4% da receita das ONGs vem das empresas. No Brasil, esse número pode subir para 70%", conta. Antes de sair a campo, ela avalia a área de atuação da empresa, o que fazem seus concorrentes e se seus funcionários são bem tratados -- a Care não aceita doações de empresas socialmente responsáveis apenas da porta para fora. "Quando a organização falha nesse sentido, precisa reverter a situação", explica. Um dos projetos em que está envolvida vai ajudar 200 famílias que vivem na zona cacaueira do sul da Bahia. Ela já entrou em contato com alguns fabricantes de chocolate, aqui e no exterior, e, recentemente, descobriu que um grande banco adquiriu uma área considerável em Itacaré, no litoral sul da Bahia. "Quem sabe eles têm interesse em virar nossos parceiros?"
Um produto diferente
Lygia compara o trabalho de um captador de recursos com o de um vendedor -- com a diferença de que o primeiro não recebe comissão pelos negócios que realiza. Faz questão de ir pessoalmente às empresas ou instituições que sejam doadoras em potencial. "É inadmissível fazer captação de recursos por telefone. Afinal, eu vendo projetos sociais", diz. Transparência é outro quesito fundamental no Terceiro Setor. O doador deve ter acesso a relatórios de como estão sendo usados os recursos que cedeu. Que vantagem a empresa leva? Muitas. "A responsabilidade social agrega valor aos produtos", diz Lygia. As ações da Nike, por exemplo, caíram durante seis meses consecutivos depois que os jornais noticiaram que a companhia explorava o trabalho infantil na Ásia. Além disso, combater a pobreza tem um lado muito lucrativo para as empresas: o aumento do poder aquisitivo da população. Lygia fala isso sem nenhum constrangimento. "Vivemos em pleno capitalismo, e nosso objetivo não é mudar o sistema, mas tornar o mundo mais justo", diz. Para isso, ela vai ter de trabalhar duro e, como em qualquer empresa, apresentar resultados consistentes. Para tocar seus projetos nos próximos quatro anos, a Care Brasil precisa de cerca de 4 milhões de dólares. Lygia não tem medo do desafio que tem pela frente. "As pessoas têm boas intenções -- só não sabem o que fazer para ajudar. É exatamente aí que meu trabalho começa."