José Saramago: escritor português morreu em 2010 (Abbas Yari/Wikimedia Commons)
Da Redação
Publicado em 28 de abril de 2015 às 14h33.
O eterno escritor José Saramago, dono de uma fluidez narrativa típica, é um verdadeiro “jazzista” das palavras. Na obra Ensaio sobre a Cegueira, não distingue personagens por meio de nomes, mas sim por meio de descrições “afinadíssimas”, em Língua Portuguesa. A rapariga de óculos escuros, por exemplo, vem desta forma ao leitor:
“Por natural misantropia ou demasiadas decepções na vida, qualquer céptico comum, conhecedor dos pormenores da vida desta mulher, insinuaria que a bonitez do sorriso não passava de uma artimanha de ofício, afirmação maldosa e gratuita, porque ele, o sorriso, já tinha sido assim nos tempos não muito distantes em que a mulher fora menina, palavra em desuso, quando o futuro era uma carta fechada e a curiosidade de abri-la ainda estava por nascer. Simplificando, pois, poder-se-ia incluir esta mulher na classe das denominadas prostitutas, mas a complexidade da trama das relações sociais, tanto diurnas quanto nocturnas, tanto verticais como horizontais, da época aqui descrita, aconselha a moderar qualquer tendência para juízos peremptórios, definitivos, balda de que, por exagerada suficiência nossa, talvez nunca consigamos livrar-nos.”
Além da belíssima descrição, envolvendo os misantropos (termo com tonicidade na penúltima sílaba, com o som vocálico fechado), Saramago presenteia-nos com típicas situações de colocação pronominal.
No trecho “... quando o futuro era uma carta fechada e a curiosidade de abri-la...”, o pronome oblíquo átono “a” está após o verbo (ênclise), já que há o infinitivo (abrir). Ademais, como o verbo é finalizado em “r”, tal consoante deve desaparecer para gerar a forma “abri-la”.
Em “Simplificando, pois, poder-se-ia incluir esta mulher na classe das denominadas prostitutas (...)”, percebe-se o verbo no futuro do pretérito. De acordo com as vertentes da língua-padrão, com o verbo no futuro do presente ou no futuro do pretérito (sem existir expressão atrativa), prefere-se tradicionalmente a mesóclise.
Para finalizar, no trecho final da descrição, há um típico caso de ênclise, em uma locução verbal: “...talvez nunca consigamos livrar-nos.”. Fica aqui registrado um lembrete normativo: em locuções verbais, mesmo com a existência de palavras atrativas (como no caso de “nunca”), o pronome oblíquo átono pode estar antes ou depois da locução: “...nunca nos consigamos livrar.” ou “nunca consigamos livrar-nos.”
Viva o “jazzista das palavras” Saramago!
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