Fábrica da Irizar, em Botucatu (SP): os 483 empregados se organizam em 18 equipes autogerenciáveis, com apenas um supervisor (Divulgação)
Da Redação
Publicado em 14 de novembro de 2013 às 13h25.
São Paulo - O CEO da metalúrgica catarinense Tuper, Frank Bollmann, de 64 anos, nunca gostou da simbologia por trás do ato de bater ponto. “Parece que você está lidando com gado, e não com gente”, diz. Ele levou essa antipatia às últimas consequências: depois de ouvir os funcionários e concluir que a maior parte compartilhava da mesma opinião, propôs abolir o cartão de ponto. </p>
A ideia foi apresentada ao sindicato da categoria e aprovada como acordo coletivo em 1996 – desde então vem sendo renovada ano a ano. “Muita gente me disse que era loucura, que a empresa ficaria vulnerável. Mas nunca tivemos um processo trabalhista por causa disso”, diz Bollmann, que está à frente de uma companhia com 2 500 funcionários, faturamento de quase 1,3 bilhão de reais em 2012 e crescimento médio de 20% nos últimos anos.
A possibilidade de eliminar o cartão de ponto está prevista pela Portaria no 373/11 do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre o controle alternativo da jornada e substituiu uma portaria mais antiga sobre o mesmo tema, a 1 120/95, que na época serviu como base para a decisão da Tuper.
Essas portarias criaram uma alternativa à determinação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) quanto ao registro – manual, mecânico ou eletrônico – da hora de entrada e de saída dos trabalhadores em estabelecimentos com mais de dez funcionários.
O controle alternativo permite registrar apenas as exceções significativas ao horário estabelecido para cada empregado – horas extras, atrasos e faltas. Esses casos são anotados pelo supervisor da área, que encaminha um relatório ao departamento de recursos humanos. Mensalmente, o balanço das horas é apurado individualmente e consolidado junto ao trabalhador.
“Muitas funções da fábrica funcionam independentes umas das outras. Nossa maior preocupação é verificar se o empregado cumpriu o que se esperava dele ao longo daquele mês. O controle de horário poderia ser ainda menos rígido se não fossem as amarras da legislação”, diz Roberto Dobrochinski, diretor corporativo de recursos humanos da Tuper.
A metodologia desburocratiza as relações entre chefes e subordinados e diminui a necessidade de envolver o RH no dia a dia de cada setor. Se um funcionário sentir a necessidade de mudar o horário para chegar mais tarde ou sair mais cedo num determinado dia, por exemplo, basta acertar previamente com o líder da área.
Como cada um assina a folha em que o balanço periódico das horas é apurado, a empresa tem a documentação para se proteger em eventuais processos trabalhistas.
Brecha na lei
A publicação da portaria, em 2011, provocou muitas dúvidas e não foram poucas as empresas e os advogados trabalhistas que decidiram simplesmente “bloquear” o controle alternativo da jornada como uma possibilidade, devido a aspectos do texto considerados imprecisos. “O risco de uma empresa não é maior por causa da adoção do controle alternativo, pois alegações sobre horas extras podem ser feitas de qualquer jeito, mesmo com o registro diário no cartão de ponto.
O empregado pode dizer, por exemplo, que era obrigado a bater ponto no horário estabelecido e que, depois, continuava a trabalhar”, diz o advogado Nelson Mannrich, um dos maiores especialistas em direito do trabalho no país, professor titular da cadeira na Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Academia Nacional de Direito do Trabalho.
Para Ari Alano, presidente do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas, Material Elétrico e Informática de Santa Catarina (Sintimesc), que fez o acordo com a Tuper e todo ano o tem renovado, a abolição do cartão de ponto contribui para aumentar a satisfação dos trabalhadores e para a valorização dos metalúrgicos.
“Se um dia a categoria considerar que deixou de ser benéfico ou que não está sendo respeitada pela empresa, o acordo deixará de ser renovado”, diz. É justamente na promoção de um relacionamento mais saudável que está a grande virtude de acordos como o firmado pela Tuper com seus profissionais, diz Mannrich.
“É uma aposta no bom clima organizacional. Não vejo melhor caminho para evitar futuras demandas trabalhistas do que o respeito mútuo entre empresas e empregados, sem que nenhum dos lados tente tirar vantagem do outro”, afirma.
Pesou a favor do acordo o fato de Bollmann ser um executivo muito respeitado no setor – engenheiro mecânico por formação, está há 41 anos na empresa, onde começou desenvolvendo maquinários para a fabricação de escapamentos de veículos, primeiro negócio da Tuper.
Hoje, a companhia atua em mais de 30 segmentos, como sistemas sofisticados de exaustão para veículos, coberturas metálicas, andaimes, tubos para transporte de gás e óleo, e tem oito unidades fabris – sete em São Bento do Sul e uma na também catarinense Xanxerê.
O índice de turnover é baixíssimo – menos de 1% – e 45% dos funcionários concluíram o nível superior, sendo que 90% desses contaram com ajuda financeira da empresa para estudar, por meio do programa de bolsa de estudos.
“Não é da noite para o dia que uma companhia consegue estabelecer um acordo como esse, baseado na confiança mútua. É preciso ter um histórico de bom relacionamento com os trabalhadores”, diz Bollmann.
Economia e flexibilidade
Algumas empresas já se atentaram também para o fato de que a adoção do controle alternativo da jornada pode resultar em vantagens financeiras e operacionais, com a redução dos investimentos em equipamentos de registro e em toda a estrutura envolvida no controle dos horários.
No ano passado, o setor de calçados e de vestuário de Birigui, no interior de São Paulo, foi pioneira ao estabelecer um acordo coletivo do gênero, que envolveu, como partes, o sindicato patronal e o dos trabalhadores – o acordo chegou a ser reconhecido pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) com o prêmio Melhores Práticas Sindicais.
Com o acordo, mais de 300 empresas de 22 cidades da região de Birigui passaram a ter a possibilidade de adotar o controle alternativo da jornada de trabalho. Uma das que já colocaram o sistema para funcionar é a Klin, conhecida marca de calçados infantis. “Estamos avaliando ainda todas as vantagens e as eventuais desvantagens.
Mas um benefício que já ficou bem claro é a economia com as bobinas de papel em que eram registradas todas as entradas e saídas de nossos mais de 2 500 funcionários”, diz Roberto Rodrigues, coordenador do departamento pessoal. “Às vezes, uma bobina dessas acabava bem no horário de entrada ou saída e alguém precisava ir lá correndo para trocá-la, criando fila e insatisfação.”
Equipe organizada
Outro caso de indústria que conseguiu superar o controle das horas trabalhadas em nome de maior liberdade para a equipe é a Irizar, fábrica de ônibus de origem espanhola, que se instalou em 1997 em Botucatu, no interior paulista. A empresa trouxe da cultura espanhola a ideia de liberdade de horário e, mais do que isso, de equipes autogerenciáveis.
A fábrica tem 483 funcionários, divididos em 18 equipes, e apenas um supervisor para todo esse pessoal. Como a companhia trabalha com uma demanda preestabelecida – todos sabem quantos ônibus terão de ser fabricados no próximo ano –, cada equipe se organiza para apresentar o resultado semanal necessário para o cumprimento do cronograma.
“Os integrantes de cada equipe têm liberdade para se organizar em torno das metas, levando sempre em conta que não podem atrapalhar o andamento do trabalho das demais equipes. É essa dinâmica que nos interessa, e não o número de horas trabalhadas”, diz Paulo Cadorin, diretor administrativo e financeiro da companhia.
Os horários de entrada, de almoço e de saída na Irizar são adaptáveis à necessidade de cada um, já que, a exemplo do que ocorre na Tuper, a maior parte das atividades na fábrica funciona independentemente umas das outras. Oficialmente, o expediente diário tem duração de 8 horas e 48 minutos, pois a fábrica não funciona aos sábados.
As equipes já sabem que, se acelerarem o trabalho no início da semana, terão direito a folgar na tarde de sexta-feira, que se transformou praticamente em “ponto facultativo” na Irizar. Nesse dia, raramente alguém volta para trabalhar depois do almoço.
“Quem atingiu a meta semanal não precisa vir só para cumprir a carga horária prevista em lei. A folga na tarde de sexta funciona como um reconhecimento pela dedicação nos dias anteriores”, diz Cadorin. No último fechamento do banco de horas, em setembro, a empresa “perdoou” quase 10 000 horas negativas dos funcionários.
Apesar de tanta flexibilidade – e justamente por causa disso –, a Irizar não conseguiu se livrar do velho e tradicional cartão de ponto. “Nesse ambiente de entradas e saídas livres, é a única forma de termos controle sobre as horas trabalhadas e atender às exigências da legislação trabalhista”, diz Cadorin.
Nesse caso, não se trataria de adotar o controle alternativo da jornada, pois a ideia na fábrica de ônibus é que cada funcionário tenha liberdade para entrar e sair no momento em que considerar adequado, de tal forma que o conceito de registro das exceções ficaria comprometido, já que elas ocorrem o tempo todo.
Para Cadorin, o segredo do sucesso da estratégia adotada pela Irizar é ter um número suficiente de funcionários para realizar o trabalho com qualidade e dentro dos prazos estabelecidos – ou seja, não submeter a equipe a um ritmo extremo. Tal exigência passa, claro, pela alta produtividade, o que requer muito treinamento.
Neste ano, com a necessidade de aumentar a produção diária de três para quatro veículos devido ao aquecimento do setor de transportes e ao aumento das encomendas, 60 novos trabalhadores estão sendo selecionados e treinados.
“Estabelecemos uma rotina em que as horas extras praticamente deixaram de existir, a não ser em momentos excepcionais, como o lançamento de um novo modelo, no qual o trabalho se torna naturalmente mais lento”, diz Cadorin.
Resultado do trabalho
E se, empolgado com a liberdade de horário, um funcionário da Irizar começar a atrasar sistematicamente com suas obrigações? Em outras empresas, isso certamente provocaria a revolta dos colegas. No caso da fabricante de ônibus, contudo, não há aquela situação em que os empregados se perguntam se a empresa não vai tomar providências contra o “folgado”, já que cabe a eles próprios a decisão.
O desempenho individual é avaliado pela equipe, e quem não estiver tendo uma performance considerada aceitável recebe uma espécie de cartão amarelo – que pode ser transformado em demissão ao fim de 90 dias, por decisão soberana do grupo. Algo semelhante ocorre com o controle de qualidade, feito pelos próprios funcionários da linha de produção.
Toda equipe tem a prerrogativa de “devolver” eventuais tarefas que considerar mal realizadas por um dos trabalhadores ou mesmo por outra equipe. A consequência é que o controle dos horário deixa definitivamente de fazer parte da pauta em nome da preocupação, bem mais relevante, com o resultado efetivo do trabalho.