Carreira

Quando o Espírito está desperto, mas o Corpo ainda dorme

Em artigo, Rogério Chér, sócio-fundador da Winx e da Devello, argumenta que engajamento não é apenas uma variável de desempenho, mas uma condição existencial

Desenvolvimento humano: condição requer equilíbrio entre os quadrantes do ser (interior-exterior, individual-coletivo) (Olga Strelnikova/Getty Images)

Desenvolvimento humano: condição requer equilíbrio entre os quadrantes do ser (interior-exterior, individual-coletivo) (Olga Strelnikova/Getty Images)

Da Redação
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Redação Exame

Publicado em 4 de novembro de 2025 às 20h38.

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Há algo profundamente simbólico no movimento de olhar para as empresas pelos olhos das famílias.

Desde 2023, a Winx vem conduzindo a pesquisa Melhores Empresas para se Trabalhar na Perspectiva das Famílias: uma iniciativa pioneira no Brasil, que propõe uma inversão: em vez de perguntar ao colaborador como ele se sente, pergunta-se à sua família o que ela enxerga nele e na sua experiência de trabalho.

Essa mudança de perspectiva não é trivial. Ela desloca o eixo da análise organizacional do eu profissional para o nós relacional, ou seja, do indivíduo isolado para o ecossistema humano que o sustenta.

Trata-se de uma lente sistêmica e integral, inspirada no modelo de Ken Wilber, que propõe compreender o ser humano como uma totalidade de Corpo, Emoção, Mente e Espírito, cada qual representando uma dimensão do bem-estar e do engajamento.

A lente integral: quando o bem-estar é mais que clima

Na base conceitual da pesquisa, está a ideia de que o engajamento não é apenas uma variável de desempenho, mas uma condição existencial.

Assim como Wilber propõe que o desenvolvimento humano requer equilíbrio entre os quadrantes do ser (interior-exterior, individual-coletivo), a Winx traduz essa integralidade em quatro dimensões observáveis no mundo do trabalho:

  • Corpo: energia vital, saúde, sono, ritmo e autocuidado;
  • Emoção: segurança psicológica, afeto, empatia, confiança e regulação emocional;
  • Mente: aprendizado, reconhecimento e clareza de propósito;
  • Espírito: orgulho, sentido, pertencimento e transcendência.

Essa abordagem desloca a psicometria clássica, centrada em indicadores unidimensionais, para uma leitura holística e relacional, onde cada dimensão representa um nível de consciência organizacional. Como diria Peter Senge, “a saúde de um sistema depende da capacidade de ver o todo.”

E a edição 2025 da pesquisa mostra, de forma contundente, que o todo está desequilibrado.

Os resultados: uma espiritualidade sem corpo

Em 2025, os resultados consolidaram uma tendência iniciada no ciclo anterior: as empresas seguem com Espírito elevado, mas Corpo fragilizado, da seguinte forma:

  • Espírito: 90% (estável, alto e sólido)
  • Mente: 83% (leve recuperação)
  • Emoção: 79% (estagnada)
  • Corpo: 64% (ainda o elo mais fraco)

O diagnóstico é simbólico: as empresas pesquisadas despertaram espiritualmente, mas seus corpos continuam cansados. Essa dissociação entre propósito e vitalidade é o que se pode nomear como “espiritualidade desencarnada”.

A cultura corporativa fala de propósito, bem-estar e significado, mas opera sobre corpos exaustos, ritmos pesados demais e hábitos de cuidado interrompidos.

Nas palavras de Ken Wilber: “Todo crescimento autêntico envolve integração ascendente e descendente: subir para o Espírito, mas também descer para o Corpo.”

A pesquisa sugere que as empresas ascenderam na consciência do Espírito (orgulho, pertencimento, reputação), mas ainda não desceram à consciência do Corpo (descanso, limites, sono e saúde).

O que as famílias veem (e as empresas não ouvem)

As famílias são, por natureza, espelhos emocionais das organizações.

Elas percebem o que os indicadores internos raramente captam: o tom da voz ao final do expediente, a ausência no jantar, o olhar cansado nas manhãs de segunda-feira.

É por isso que os dados da Winx são tão úteis. Eles não medem apenas percepções cognitivas sobre o trabalho, mas efeitos colaterais humanos.

Como aponta Tracy Maylett , autor do modelo MAGIC de engajamento, o verdadeiro vínculo com o trabalho nasce da experiência combinada de Meaning, Autonomy, Growth, Impact e Connection.

A pesquisa mostra que o Meaning (Espírito) está consolidado, mas o Growth e o Connection (Mente e Emoção) ainda se reconstroem, enquanto o Corpo (fator pré-condicional de engajamento) segue negligenciado.

Em síntese: há propósito, mas falta energia. Há orgulho, mas falta fôlego.

A mente se reconecta

Depois da forte queda entre 2023 e 2024, a dimensão Mente mostra leve recuperação (82% → 83%).

Essa inflexão se deve, em parte, à institucionalização de práticas de feedback contínuo, aprendizado organizacional e programas de desenvolvimento de lideranças.

Aqui, a influência de autores como Amy Edmondson é evidente. A noção de “segurança psicológica”, incorporada a muitos programas de cultura e liderança, tem permitido maior abertura ao diálogo e ao erro: fatores críticos para o florescimento da dimensão mental e cognitiva do engajamento.

O aprendizado, quando acompanhado de reconhecimento simbólico, reativa a motivação intrínseca descrita por Daniel Pink: autonomia, maestria e propósito.

A emoção continua pedindo equilíbrio

Já a Emoção, embora estável, permanece fragilizada. O equilíbrio entre pressão e bem-estar ainda não foi restaurado.

As famílias percebem irritabilidade, ansiedade e pouca regulação emocional nas relações de trabalho.

É o preço do que Wilmar Schaufeli, um dos maiores estudiosos do burnout, chama de “engajamento desequilibrado”: quando há alta absorção e dedicação, mas baixo senso de recuperação.

O resultado é uma organização emocionalmente produtiva, mas energeticamente esgotada.

O corpo: o novo campo de batalha do engajamento

A dimensão Corpo expõe o paradoxo central da era pós-pandemia: nunca se falou tanto em bem-estar, mas nunca se dormiu tão pouco.

De 72% em 2023 para 63% em 2024 e 64% em 2025, a curva revela uma crise crônica de vitalidade. As famílias relatam sobrecarga, falta de tempo, refeições apressadas e sono de baixa qualidade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em Sociedade do Cansaço, descreve exatamente essa condição: o indivíduo como “empreendedor de si mesmo”, que se explora sob o discurso da autorrealização.

As empresas, mesmo bem-intencionadas, seguem presas nesse paradigma: o corpo é funcional, não sagrado.

A consequência é uma corporeidade adoecida em culturas hiperconectadas e hiperperformáticas.

Espírito: o capital simbólico que ainda sustenta tudo

A boa notícia é que o Espírito segue forte: 90% de favorabilidade.

É nele que residem o orgulho, a admiração e o pertencimento, fundamentos do que Alex Edmans chama de “Employee Purpose Premium”: a correlação entre empresas com propósito e performance superior.

As famílias continuam acreditando nas marcas, mesmo quando veem o cansaço em casa. Esse orgulho coletivo é o ativo reputacional mais poderoso revelado pela pesquisa.

Mas ele também impõe um risco: o de confundir propósito com suficiência. A cultura do propósito não pode se tornar um anestésico para o corpo exaurido.

Do Family Friendly ao Family Inclusive Workplace

O estudo da Winx destaca um movimento global de inclusão da família como stakeholder legítimo na equação geral das empresas para promover engajamento.

O conceito de Family Friendly Workplace, surgido nas décadas de 1980-90, evoluiu para o modelo australiano Family Inclusive Workplace, que já possui certificação formal com apoio da UNICEF e do Parents at Work.

Os impactos nessas empresas são mensuráveis:

  • +30% de retenção de talentos
  • -25% de turnover
  • +12% de produtividade
  • +15 a +20 pontos no eNPS
  • -18% de absenteísmo

Esses dados sustentam empiricamente o que a Winx tem demonstrado qualitativamente: quando a família aprova a empresa, o colaborador se torna embaixador da marca.

Dois exemplos de integração Espírito–Corpo

SAS Institute (EUA)

Referência mundial em cultura humanista, a SAS integra cuidado físico e propósito de modo exemplar.

Com centro médico no campus, academias, creche, alimentação saudável e jornada média de 35h semanais, a empresa opera sobre o princípio: “Se você cuida da família do colaborador, ele cuida da empresa.”

Clif Bar & Company (EUA)

Símbolo de bem-estar corporativo e propósito ambiental.

Com academia interna, reembolso para esportes, alimentação orgânica e horários flexíveis baseados nos ritmos circadianos, vive o que prega: “Ninguém é punido por descansar.”

Ambas expressam o que Ken Wilber chamaria de “integração descendente”: o Espírito que se encarna no Corpo.

É preciso encarnar o propósito

A edição 2025 da Pesquisa Winx com Famílias traz uma mensagem clara: as empresas do painel analisado já alcançaram um elevado nível de consciência espiritual, pois são admiradas, inspiradoras e simbolicamente fortes, mas agora precisam encarnar o propósito. Um ótimo insight para todas as demais empresas.

Como sintetiza o estudo: “O próximo passo evolutivo da cultura organizacional é o movimento de integração descendente: levar o Espírito de volta ao Corpo.”

Isso significa transformar o discurso em prática, o ideal em descanso, o orgulho em saúde. Trata-se de reumanizar o tempo, o ritmo e o corpo, de permitir que o propósito não apenas inspire, mas também permita respirar.

Quando esse movimento acontecer, as famílias verão algo ainda mais raro: empresas que não apenas falam de significado, mas o vivem, com corpo, mente, emoção e espírito integrados.

 

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