Os pecados da CLT (Ilustração Hare Lanz)
Da Redação
Publicado em 27 de novembro de 2013 às 07h06.
São Paulo - “Trabalhadores do Brasil!” A expressão tornou-se célebre na boca do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), que assim costumava iniciar seus inflamados discursos. E foi dirigindo-se aos trabalhadores que lotaram o Estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, numa pomposa cerimônia realizada no dia 1o de maio de 1943, que Getúlio anunciou a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Ele unificou toda a legislação trabalhista, que até então se encontrava esparsa em diversas normas legais, e passou a regular as relações entre empregadores e empregados. Apesar de quase septuagenária, a CLT está firme e forte.
A grande maioria de seus artigos continua em vigor, mas algumas de suas disposições já estão claramente ultrapassadas, o que, muitas vezes, dificulta o trabalho dos profissionais de recursos humanos.
O tamanho do problema? É a distância que separa o Estado Novo getulista do século 21. A VOCÊ RH ouviu especialistas para saber quais são os principais problemas que a longevidade da CLT impõe à administração moderna de recursos humanos. A maioria dos entrevistados apontou o que considera os quatro maiores “pecados” da CLT.
Inflexibilidade
A inflexibilidade é, possivelmente, o mais recorrente dos “pecados” da CLT. Ela está diretamente relacionada à essência paternalista da legislação da Era Vargas.
“O grande problema é que a estrutura da lei, da visão do pai protetor, não compete mais. Temos uma legislação caótica, ultrapassada, ineficiente e que não está mais voltada para a realidade”, afirma Nelson Mannrich, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Para Sandra Munhoz, diretora de RH da Chris Cintos de Segurança, a CLT, por ser antiga, dificulta muita coisa na administração moderna. “A CLT não deixa você ser flexível.”
De acordo com Sandra, existem momentos em que se poderia criar uma relação de confiança com o funcionário, mas a CLT impede. “Se você deixa um empregado trocar um dia de trabalho porque ele tinha um problema pessoal para resolver, em determinado momento ele pode entrar na Justiça e o juiz entender que, naquele dia, você o perdoou. Então, se ele trabalhar num sábado para repor a falta, você vai ter de pagar hora extra.”
Hora extra é um exemplo clássico de inflexibilidade. Para a Justiça do Trabalho, ela é caracterizada por todo e qualquer minuto trabalhado a mais na jornada normal do empregado, com cinco minutos de tolerância para marcação do cartão de ponto.
“Pela lei, a empresa deve proibir o funcionário de entrar antes e sair depois do horário de trabalho, o que é muito complicado. Imagine colocar isso em prática numa cidade como São Paulo, com o caos do trânsito e o rodízio de veículos”, diz Maria Lúcia Benhame, especializada em consultoria jurídica para empresas.
Protecionismo exagerado
CLT foi criada com a preocupação de proteger o trabalhador e, de fato, em muitos casos ela o protege, por exemplo, no artigo 9o: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
Para Mannrich, esse artigo tem um peso muito importante, porque faz prevalecer a realidade da relação em que, se houve trabalho com subordinação e prestação de contas, o trabalhador tem o direito de ser regido pela CLT, e qualquer contrato que diga o contrário é nulo.
“Algumas pessoas criticam esse artigo, acham que, se a pessoa é maior, leu o contrato, entendeu e assinou, como pode não produzir efeito? O que elas não entendem é que o Direito do Trabalho parte do pressuposto de uma relação desigual, na qual o empregador tem o poder econômico e o empregado não tem força perante isso.”
Duas normas que também deveriam proteger o trabalhador são os princípios de irredutibilidade do salário e da equiparação salarial. No primeiro, o salário não poderá ser reduzido, a não ser mediante acordo coletivo por meio de sindicato. No segundo, nunca, numa mesma empresa e na mesma localidade, os empregados que exercem a mesma função podem receber salários diferenciados.
O que acontece, no entanto, é que o excesso de proteção pode também, paradoxalmente, desproteger o trabalhador. Maria Lúcia Benhame conta que certa vez um erro banal cometido pelo RH de uma empresa cliente acabou resultando na demissão de dois funcionários.
Por erro do sistema, o RH concedeu um aumento maior para dois funcionários em um setor em que todos tinham o mesmo patamar de remuneração. “As únicas soluções seguras para a companhia nesse caso eram: ou aumentar o salário de todo mundo, ou mandar os dois funcionários embora”, diz Maria Lúcia. Imagine o que houve?
Wolnei Ferreira, advogado trabalhista com experiência em gestão de recursos humanos, também diz que a CLT não concede a flexibilidade adequada em alguns casos e que a velocidade com que ela, às vezes, dá uma alternativa não condiz com a prontidão exigida pelo mundo dos negócios.
“Imagine quando surge um problema muito sério em que a empresa precisa alterar drasticamente seu negócio, como ocorreu na crise financeira de 2008, que abalou o mundo”, diz Ferreira. “A legislação impõe amarras que, muitas vezes, desprotegem o trabalhador.”
Anacronismo
Há um verdadeiro descompasso entre as exigências de mão de obra profissional qualificada no passado e no presente. Maria Lúcia Benhame explica o problema: “A CLT foi consolidada na década de 1940, mas com legislação ainda anterior, que vem da década de 1930. O que tínhamos no Brasil eram fábricas no meio urbano, algum comércio e algumas empresas de prestação de serviço. Não existia o trabalho intelectual de hoje”.
Um exemplo: torneiro mecânico, autêntico trabalhador fabril. Como esse operário atua na produção de peças, não é difícil saber quanto, em média, ele trabalha durante o dia. Assim, não é difícil calcular as horas extras que esse empregado fizer. A situação é completamente diferente para um trabalhador que exerce atividade intelectual.
Como é possível computar as horas extras trabalhadas? “Esse profissional, às vezes, fica na companhia o dia inteiro e não consegue produzir nada. Quando chega em casa, de repente, tem uma ideia e começa a distribuir e-mails”, diz Maria Lúcia. “Para o juiz do trabalho, se esse trabalhador ficou na empresa o dia inteiro e está mandando e-mail à noite, ele está trabalhando. Então, tem direito a receber hora extra.”
A internet, assim como a telefonia, instrumentos amplamente utilizados hoje no mercado de trabalho, são ferramentas que não encontram parâmetros na época da criação da CLT. Mas não é apenas a tecnologia que evoluiu e deu origem a novos padrões de comportamento.
A própria gestão, em função do dinamismo do mercado, precisou adotar novas formas de condução dos empregados. “São muitas as empresas que não estão presas a horários, e sim à produção, à criação. E várias delas adotaram regimes de controle de formas alternativas”, diz Wolnei Ferreira.
Outro exemplo que evidencia o anacronismo da CLT é a regra descrita no inciso 2 do artigo 154: “Aos menores de 18 anos e aos maiores de 50 anos de idade, as férias serão sempre concedidas de uma só vez”. Segundo Ferreira, na época em que essa norma foi instituída, a expectativa de vida no Brasil era muito baixa, o que justificava esse posicionamento do legislador. Mas hoje a realidade é outra.
“Eu tenho 52 anos. Você acha que não tenho discernimento para dizer se minhas férias podem ou não ser de 20 ou 30 dias?”, questiona Ferreira. “Imagine então esses altos executivos, diretores, presidentes, que chegam ao auge da carreira com 50, 60 anos, em que muitas vezes é impossível se afastar da organização durante um mês seguido.”
Complexidade
Uma das principais críticas à CLT diz respeito a sua complexidade. O texto legal possui nada menos que 922 artigos. Não bastasse isso, no Direito do Trabalho existem centenas de outras leis, portarias, decretos e normas reguladoras.
“É claro que a vida em sociedade é complexa, mas a lei trabalhista é tão abrangente, tão contraditória, que nós não temos clareza. Ela não tem efeito didático. Precisamos de um uma lei eficiente, e para isso é preciso que seja simples e voltada para a realidade”, diz o professor Mannrich.
A gerente de RH da Olympus, Angela Bulotas, acredita que é muito importante para o profissional da área ter um conhecimento aprofundado dessas leis. Mas, pela sua complexidade, é quase impossível não contar com uma assessoria jurídica. “Existem muitos detalhes que passam despercebidos para nós, do RH, porém, quando você passa a ter uma consultoria jurídica, fica mais atento a esses problemas.”
A advogada trabalhista Cláudia Abud afirma que, mesmo que o profissional de RH conheça a CLT, ele vai precisar de uma boa assessoria jurídica. “A lei estabelece regras, contudo, como aplicá-las não está na lei”, diz. Ela cita como exemplo o princípio de imediatidade (a punição tem de ser aplicada imediatamente após a falta).
“Isso não está na lei, no entanto, para uma empresa mandar alguém embora por justa causa, ela deve agir no momento em que toma conhecimento do ato faltoso. Por isso, a lei exige que o empregado seja demitido na hora. Caso contrário, o juiz vai entender que a companhia já lhe concedeu perdão.”
Existem vários detalhes da CLT que podem gerar passivos trabalhistas. É possível deparar até com lei de narrativa imaginária, que simula uma ruptura entre o tempo e o espaço, um elemento do Direito conhecido como “ficção jurídica”. Confuso? Sim, mas podemos explicar. Na jornada noturna, por exemplo, a hora não tem 60 minutos.
Segundo a CLT, todo trabalho praticado das 22h às 5h tem a hora computada em 52 minutos e 30 segundos. Isso porque a lei supõe que existe um desgaste maior do organismo humano nesse período.
Dessa forma, a legislação definiu que as sete horas noturnas trabalhadas equivalem a oito horas, com a possibilidade de haver apenas uma hora de acréscimo à jornada para descanso ou refeição. “Se uma empresa deixar de conceder esses minutos, ela os transforma em contencioso”, afirma Ferreira.