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Os concursos públicos estão (mesmo) com os dias contados no Brasil?

O governo anunciou o fim dos concursos públicos do Executivo Federal. Os impactos da decisão afetam quem já trabalha na área e quem quer se tornar servidor

Sala vazia: apenas oito concursos do Executivo Federal deverão ocorrer neste ano (kontrast-fotodesign/Getty Images)

Sala vazia: apenas oito concursos do Executivo Federal deverão ocorrer neste ano (kontrast-fotodesign/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 21 de julho de 2019 às 06h00.

Última atualização em 21 de julho de 2019 às 10h06.

No começo de junho, uma notícia caiu como uma bomba para quem sonha em fazer carreira pública: a suspensão dos concursos do Executivo Federal. A decisão foi anunciada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, durante uma audiência na Câmara dos Deputados em que debatia os impactos econômicos e financeiros da aprovação da proposta de reforma da Previdência.

O economista afirmou que, em gestões anteriores, houve excesso de contratações, acompanhado de aumento de salários. Esses dois elementos, segundo ele, prejudicaram as contas governamentais. A suspensão dos concursos, ao lado da aposentadoria dos servidores, diminuiria o inchaço da máquina pública. Segundo o ministro, “40% dos funcionários públicos devem se aposentar nos próximos cinco anos. Não precisa demitir, não precisa fazer nada. Basta desacelerar as entradas, que vai acontecer naturalmente”.

Não à toa, o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, entregue em abril pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), não prevê a realização de concursos públicos do Executivo Federal — estados, municípios e os Poderes Judiciário e Legislativo continuam podendo aplicar provas para contratar novos servidores.

Em tramitação no Congresso Nacional, até a publicação desta reportagem a proposta ainda não havia sido aprovada pelos deputados. Mas uma medida já foi tomada pelo governo, com o decreto que atrela a autorização dos concursos ao aval do Ministério da Economia.

Em nota enviada a VOCÊ S/A, a Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal, ligada à Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, assegurou que não há previsão de autorizações de concursos em 2019. A regra é trabalhar com os recursos disponíveis. “Os cidadãos não serão prejudicados. O governo utilizará ferramentas, como a Portaria no 193, para movimentar servidores e levar profissionais para as áreas que mais necessitam”, diz a nota.

Apenas oito concursos do Executivo Federal deverão ocorrer neste ano, pois haviam sido autorizados no ano passado durante o governo de Michel Temer — juntos, vão gerar 1 174 vagas. Além disso, há dois editais específicos para o Censo 2020 que vão recrutar 234 816 temporários para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A tentativa de diminuir a máquina pública não é nova. Em 2015, o governo Dilma Rousseff (PT) propôs suspender todos os editais em andamento no setor federal, como forma de economizar 26 bilhões de reais no orçamento de 2016.

Prêmio salarial

Para entender o impacto dos servidores nas contas do país, é preciso se debruçar sobre alguns dados. Um deles é o que mede a quantidade desses profissionais no Brasil. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), em abril deste ano, 12,42% do total de trabalhadores ativos está na vida pública — o que representa 11,462 milhões de pessoas. Em números absolutos, a quantidade de servidores no país é uma das menores do mundo. De acordo com o relatório Government at a Glance, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o índice de brasileiros que vivem do funcionalismo é inferior à média dos países que compõem a OCDE, que é de 21%. Para exemplificar, nações como Dinamarca e Noruega têm mais de um terço da população na vida pública.

Para os especialistas, o problema não está no número de pessoas que trabalham servindo ao Estado. A questão perpassa por outros fatores. O primeiro deles é a falta de uma visão mais ampla sobre as necessidades de cada setor. “O governo não tem um planejamento da força de trabalho e não sabe a quantidade de pessoas de que cada área precisa. É preciso fazer, urgentemente, um mapeamento do administrativo que indique as necessidades para uma atividade enxuta e funcional”, diz Nelson Marconi, economista e professor adjunto dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em administração pública e governo na Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

Esse mapeamento deveria ser transparente, para que a população compreendesse a real utilidade das contratações. “Realizar análises sobre as atividades e os quadros necessários para esse desempenho é também um dever do Estado”, diz Adriano Biava, professor na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e especialista em finanças públicas.

O segundo fator que impacta as contas governamentais são os salários. E quem diz isso é o Banco Mundial, no relatório Um Ajuste Justo — Propostas para aumentar a eficiência e equidade do gasto público no país. O texto da instituição internacional diz o seguinte: “Embora o funcionalismo público brasileiro não seja grande para padrões internacionais, o nível dos salários dos servidores públicos federais é”.

A diferença salarial em relação à iniciativa privada é brutal. Segundo dados do estudo, a média de remuneração do funcionalismo público é 67% mais alta quando comparada com os holerites dos funcionários de empresas. Apenas os salários de quem trabalha nos municípios não possuem o que o Banco Mundial apelidou de “prêmio salarial”. A explicação para essas diferenças quem dá é o coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, André Marques. “Há carreiras públicas que ganham muito bem e carreiras que ganham muito mal. As de altos salários têm um poder de articulação política muito forte, o que torna o equilíbrio difícil”, diz.

 

A avaliação do Banco Mundial também alcança os diferentes Poderes. No relatório observa-se que o hiato salarial é particularmente amplo no Poder Judiciário. “O salário de ingresso nos níveis federais é mais alto do que o de muitas ocupações do mercado privado e se tornou o maior diferencial da carreira pública. Se não fossem esses valores e a estabilidade dos cargos, o foco do emprego seria a iniciativa privada”, diz Hélio Zylberstajn, professor na Universidade de São Paulo. “A medida de Paulo Guedes é um primeiro passo para reestruturar o funcionalismo público. A próxima etapa seria uma racionalização dos processos, análise de produtividade e uso de tecnologia”, completa.

E o futuro?

Como o governo tem autonomia apenas para impedir os concursos do Executivo Federal, as portas de entrada para quem quer fazer carreira pública ainda se abrem nas outras esferas, que continuarão demandando os profissionais. “Os grandes concursos estão no Judiciário e no Legislativo, e os Executivos estadual e municipal também podem abrir editais”, diz Vanessa Pancioni, diretora na Damásio Educacional, escola preparatória para concursos. E, mesmo que a LDO seja aprovada e em 2020 não existam mais provas para o Executivo Federal, essa realidade poderá mudar de acordo com o contexto que o país estiver vivendo. “Dependendo do tamanho da saída, é preciso fazer o concurso devido à inviabilidade de operação. Navegar no escuro é um perigo grande, pode ter um iceberg à frente que ninguém está vendo agora”, diz André, do Insper.

De todo modo, o cancelamento das provas traz algumas consequências para os que já atuam nessa área. Uma delas é a possibilidade de ascensão ou de mudança de setor — afinal, é preciso preencher as lacunas deixadas pelos servidores que se aposentarão. “É possível que sejam boas oportunidades”, diz Joel Dutra, professor livre-docente na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e vice-coordenador do curso de MBA em recursos humanos da Fundação Instituto de Administração (FIA). O outro lado da moeda é uma possível sobrecarga de trabalho, principalmente em funções de atendimento direto à população. “A carência de servidores é mais verificada na ponta”, diz Joel.

Foto: Alexandre Battibugli


Segunda opção

Durante os anos de sua graduação em direito, Giulia Yumi Simokomaki, de 29 anos, ainda não tinha uma carreira definida. Em 2012, depois de se formar, ela fez uma análise do perfil de seus trabalhos acadêmicos para entender suas aptidões. Foi assim que percebeu que poderia seguir carreira em magistratura.

“Não foi motivo financeiro que me fez escolher, mas uma questão de perfil.” Em seu plano de carreira, Giulia pensou em trabalhar em escritórios por um período de dez anos, tempo em que ganharia experiência e acumularia dinheiro para começar a se dedicar aos concursos públicos.

Mas, passados quatro anos, ela antecipou os planos. durante um ano fez cursos preparatórios e dedicou-se aos estudos. em caráter de treinamento, entre 2017 e 2018 prestou o concurso de magistratura no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e em São Paulo. Além disso, tentou cargos menores, como o de escrevente. Passou em um deles, mas numa colocação que não garantiu a convocação.

Por questões financeiras, Giulia decidiu parar os estudos e começou a dar aulas em duas universidades. Para ela, ter planos secundários é importante, ainda mais agora com as perspectivas de diminuição das contratações públicas. “Gosto de lecionar. Caso, futuramente, consiga o cargo de magistrada, pretendo continuar lecionando.”

Para quem está de fora e quer ingressar nesse setor, a consequência imediata da diminuição dos concursos é o aumento da concorrência, que, no limite, joga as notas para o alto e dificulta o ingresso no funcionalismo. Mas isso não costuma ser uma barreira para os profissionais que enxergam na carreira pública uma vocação. Essa, aliás, deve ser a real motivação para trabalhar na área — muito mais do que salários e possível estabilidade.

“O aspecto essencial no setor público é a percepção do impacto social de sua ação, pois qualquer segmento, de uma forma ou de outra, presta um serviço à sociedade. Quem tem essa percepção trabalha com outro engajamento, outro tipo de motivação”, diz Joel. O professor completa: “A questão do impacto social é um elemento acalentador. Muitas vezes, esse é o estímulo que se encontra nos momentos de falta de recursos, barreiras burocráticas ou mesmo uma chefia mais difícil”. Esse é o perfil ideal de funcionário público — agora e no futuro.

*Estagiária sob supervisão de Elisa Tozzi

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