Megaphone message (Jasmin Merdan/Getty Images)
Agência de notícias
Publicado em 17 de junho de 2023 às 19h14.
Ouvimos tudo o tempo todo. O canto dos pássaros, a sirene da ambulância, a respiração ofegante, o tilintar dos talheres, o miado do gato, o latido do cachorro, a água caindo no copo, o trinco da porta, a risada da criança – e o choro também –, a roda da bicicleta em movimento, o motor do carro, o agito da máquina de lavar, o alerta de nova mensagem recebida no celular e mais uma miríade de sons nessa polifonia diária – alguns por demais agradáveis, outros nem tanto.
Mas, se ouvimos muito, por outro lado pouco escutamos verdadeiramente. A diferença é simples: ouvir é um processo mecânico relativo à audição e não pode ser impedido. Já a escuta pede nossa presença, é doar-se ao próximo e implica cuidado e preocupação com o outro. Apesar do bem que faz e de ser um dos caminhos sólidos para a transformação das relações humanas, a ausência dessa escuta ativa vem sendo, infelizmente, uma das marcas da sociedade contemporânea, regulada em grande medida pela competição e apelo pela alta produtividade.
Dentro desse contexto, estar atento de forma profunda ao que o outro tem a falar tem sido tratado como perda de tempo ou colocado como tarefa secundária na lista infinita de afazeres diários. E assim a presença se torna ausência.
“Uma escuta verdadeira implica estar presente, e a presença parece pouco comum nos tempos atuais, quando estamos em vários locais ao mesmo tempo”, opina a psicóloga Laíra Batista Gama. “Enquanto alguém está jantando com outra pessoa, ela escreve e-mails para o trabalho; enquanto pais brincam com os filhos, também olham as redes sociais; além de tantos outros exemplos. Mas, para construirmos bons relacionamentos, é preciso primeiro validar a presença desse outro. Sem isso não há uma escuta verdadeira”, observa.
Quem soma conhecimento a esse diálogo é o antropólogo, tradutor e escritor Edgard de Assis Carvalho, vice-presidente do Instituto de Estudos da Complexidade, sediado no Rio de Janeiro. Destaca ele que olhar, imaginar e escutar são marcas humanas de todas as épocas. Entretanto, na era atual, as duas primeiras coisas foram deixadas de lado, enquanto a escuta ativa ficou restrita basicamente aos divãs psicanalíticos.
“É urgente restabelecê-la no cotidiano, nas relações comuns no dia a dia dos pais com os filhos, nas relações domésticas, afetivas, profissionais. E, assim, criar ilhas de fraternidade capazes de resistir à crueldade do mundo. Trata-se de um exercício de tolerância, concórdia, solidariedade e empatia. Os alicerces de sociedades verdadeiramente democráticas.”
Cada um de nós tem uma história para contar e saberes para compartilhar. Aliás, como dizem o professor e escritor Severino Antônio e a psicopedagoga Katia Tavares, companheiros de vida há 40 anos e dedicados integralmente à área da Educação, um dos modos mais significativos de tratar o ser humano como sujeito é reconhecer que ele tem voz, tem o que dizer e precisa ser escutado. “Com a escuta, as pessoas podem se reconhecer umas às outras, umas nas outras. Sem ela não há diálogo genuíno, não há encontros singularmente humanos.“
E certamente já nos encontramos ou ligamos para uma pessoa amiga necessitados de alguém para nos escutar e nos ajudar a atravessar momentos de preocupação e tristeza. Às vezes, tenho certeza disso, fomos socorridos pela atenção de um desconhecido que possamos ter cruzado na fila do mercado, na mesa ao lado em algum café ou em tantos mais lugares. Em outras ocasiões, fomos nós os interlocutores requisitados para escutar e ajudar uma pessoa a mergulhar em emoções pouco ou nunca visitadas.
Como nos saímos nesse papel? Fomos apenas ouvintes ou de fato escutamos a outra pessoa? Estivemos 100% presentes ou, cansados das aflições alheias, encerramos a conversa depois de poucos minutos dizendo que tínhamos outro compromisso? Deixamos o outro falar tudo o que sentia ou logo interrompemos e já começamos a contar nossas próprias histórias? Qual é o limite entre quem fala e quem escuta?
A essa última pergunta, quem me dá a resposta é a psicóloga Ana Vitória Lossavaro Custódio. Ela ressalta que a necessidade de fala e de escuta não é a mesma para todas as pessoas e lugares. Cada um vai observar os espaços por onde circula e se posicionará de um jeito diferente.
“Dentro dessa capacidade de falar e de ouvir, precisamos fazer um recorte de contexto. E nesse momento vivemos algo bem difícil, em que grande parte da população tem uma jornada de trabalho bem rígida para conseguir se manter. Então, como as pessoas vão ter conversas mais presentes, mais genuínas, vivendo situações bastante difíceis? Como vão se dedicar a uma melhor escuta com esse pano de fundo, que não é qualquer coisa, atravessando a realidade delas? Precisa-se considerar quais grupos têm essa oportunidade e quais não”, enfatiza Ana, que ressalta a importância de reconhecermos certos privilégios.
Outro aspecto a ser observado no processo de escuta ativa é o cuidado que o interlocutor necessita ter para não se sobrecarregar emocionalmente com o que escuta, respeitando seu próprio emocional. Justamente por isso, a psicóloga acredita que não é possível ser um bom ouvinte o tempo todo.
“A gente não sabe o que irá escutar e há assuntos que tocam em algo cuja existência a gente nem reconhecia, e isso gera um incômodo. É como se a gente não conseguisse escutar mais. E também não sei se seria interessante ser um bom ouvinte o tempo todo, até porque todos têm algum limite.” Assim, entender até onde vamos também nos torna melhores ouvintes.
A escuta ativa está ainda intrinsecamente relacionada ao estado de presença, que é a matéria-prima básica da vida psicológica. Precisamos estar atentos para que a vida não passe entre nós sem a experienciarmos. E, sem dúvida, trocar o modo desatenção pelo de atenção pode não ser um exercício simples. Necessita de empenho, ainda mais em um mundo no qual, não raramente, somos afogados em milhares de informações irrelevantes nos convidando à distração permanente.
Contudo, quando isso não é alcançado, a ausência dessa escuta reflete de diversas formas nas pessoas. Se não escutamos bem, como enfatiza a psicóloga Laíra Batista Gama, não conseguimos responder de forma adequada, tampouco formulamos soluções reais ou lidamos da maneira correta com determinadas situações, já que elementos importantes ditos não foram considerados.
“Por mais que uma escuta verdadeira seja uma potente ferramenta, ela não resolve todos os desencontros da comunicação. Às vezes ouvimos, mas não escutamos porque não damos conta de enxergar alguma situação no momento”, conta Laíra.
“Porém, acredito que quanto mais falarmos sobre a importância de uma escuta ativa dentro das empresas, escolas e instituições, não apenas trazemos melhoria na comunicação, mas contribuímos para uma sociedade mais consciente, respeitosa, que valide não só suas verdades como as dos demais”, sinaliza.
A escuta ativa não deve ser trabalhada somente entre os jovens e adultos. Pelo contrário, a criança precisa ser estimulada a estar atenta ao próximo. “Tudo deve começar em casa e na primeira inserção social depois da família, que é a escola. Podemos ver atualmente o aumento de escolas preocupadas em contribuir com a formação e desenvolvimento de crianças mais empáticas, conscientes coletivamente, como também de forma individual”, afirma Laíra.
Um segundo passo é cuidar do uso de tela pelos pequenos. Afinal de contas, sendo nativos digitais, eles vivem naturalmente imersos em ambientes repletos de tecnologias que, ao mesmo tempo que encurtam distâncias e democratizam acessos, também desestimulam o olho no olho e o brincar livre, assim como pouco valorizam o tempo da contemplação e o contato com a natureza.
“O mais importante é dialogar, fazer acordos, estabelecer limites, orientar a criança no uso das telas, oferecendo alternativas e cultivando, da melhor maneira possível, essas experiências que têm sido interditadas”, ressaltam Severino e Katia.
Mas como saber acolher tudo o que a criança fala, pensa e sente faz parte desse processo de escuta? E como conduzir uma relação com elas que tenha a escuta ativa como uma prática intrínseca? “Em nossos livros, em encontros presenciais ou a distância, na participação em seminários, temos sempre reiterado a necessidade vital de escuta da criança. Mas de que escuta estamos falando? A criança pensa por sentimentos, por imagens, por animismo, por perguntas, por histórias, por empatia. Reconhecer essas características essenciais da infância, acolher essa maneira da criança pensar, sentir e se expressar é imprescindível para uma escuta genuína e sensível e para uma convivência mais harmoniosa e fecunda entre nós e elas”, salientam.
Se por um lado o cotidiano fragmentado, a lógica do hiperconsumismo e o excesso de informações descontextualizadas favorecem adotarmos ou defendermos parcamente uma escuta honesta e presente, há ao mesmo tempo e por toda parte, como destaca o escritor Severino Antônio, movimentos de resistência, buscas de novas formas de viver e conviver, múltiplas experiências de esperança. Nelas, a escuta ativa encontra solo fértil para se desenvolver.
Outros bons sinais que brotam por toda parte são apontados por Edgard de Assis Carvalho. Entre as iniciativas que o marcam estão, por exemplo, o trabalho do Grupo Galpão, que lançou o espetáculo teatral Sonhos de Uma Noite com o Galpão, a partir da coleta e seleção de 150 sonhos de pessoas comuns. Foi com essa base que a companhia mineira fez a dramaturgia e a apresentação online. Outro exemplo é o projeto “Senta Aqui. Conversa Comigo”, conduzido por terapeutas que instalam toldos e cadeiras em calçadas, praças, jardins e escutam relatos do cotidiano, sem nenhum agendamento prévio.
Mas na rotina de cada um há inúmeras coisas que podem ser realizadas para a percepção e prática da escuta ativa. E pontos que precisam ser ponderados. A psicóloga Ana Vitória recomenda que se escute quem puder escutar, mas tenha consciência de que não é possível se doar sinceramente a todas as pessoas com quem se convive.
“Não sei se tem como a gente exigir uma escuta o tempo todo das pessoas que estão ao nosso redor. Por isso, se achar necessário entender por que com algumas a escuta rola melhor e com outras não, busque um espaço e um bom profissional para te ajudar nessa percepção.”
Não devemos também culpabilizar apenas o digital pela ausência ou pouco cuidado com a escuta. Edgard salienta que as tecnologias digitais são um importante veículo de expansão das redes de informação pelo planeta. Em si mesmas, as técnicas não são boas nem más, tudo depende de quem as usa e aplica. “Somos corresponsáveis por esse descaso com o outro, com o conviver, com a fraternização.”
A expansão da escuta ativa para além do aspecto individual está atrelada ao reconhecimento da necessidade de criação de organizações cada vez mais humanas, com uma cultura mais empática, mediadora de conflitos e consciente. “Nós da área da psicologia temos um papel fundamental nesse processo de contribuição de uma nova cultura social e institucional, seja ela na escola, empresas ou organizações”, pontua Laíra.
Aliás, é a psicóloga que contribui com algumas dicas práticas que valem ser observadas. São elas: pare o que estiver fazendo para ouvir, não apenas se mostre interessado, esteja interessado; pense de forma investigativa, fazendo perguntas pertinentes com foco na solução e mediação de conflitos; use o silêncio quando não souber o que dizer, compartilhe que precisa pensar sobre o que dizer, evitando falar algo não assertivo no momento; não julgue ou faça comparações com suas experiências, use o acolhimento e a validação para com o outro.
São posturas simples, como são simples as coisas mais importantes na vida. Se seguidas, exigem que saiamos do automatismo, que estejamos presentes em momentos valiosos, com nós mesmos e com os outros, e que ampliemos posturas conscientes. A escuta ativa, com ternura e afeto, é mais importante do que apenas ouvir e falar. Por isso, é hora de limpar os ouvidos e se abrir para escutar.
Por Gustavo Ranieri – revista Vida Simples
É jornalista e escritor. Ele recomenda a prática constante de meditação para ampliar a escuta ativa e o estado de atenção.