Engenharia de alimentos: é a área "menos pior", segundo a pesquisa (jordachelr/Thinkstock)
Claudia Gasparini
Publicado em 26 de janeiro de 2017 às 06h00.
Última atualização em 26 de janeiro de 2017 às 06h00.
São Paulo — Misture tecnologia e saúde, acrescente porções generosas de inovação e uma pitada de gastronomia: está pronta a receita de atuação do engenheiro de alimentos.
A carreira é uma ótima pedida para quem gosta de trabalhar com a multidisciplinaridade, diz Antonio Meirelles, professor e diretor da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde foi criado o primeiro curso superior do Brasil na área, em 1966.
“A profissão tem múltiplas facetas, embora seu coração seja a engenharia, que vai da supervisão da matéria-prima, animal ou vegetal, à gestão da distribuição dos alimentos e bebidas, passando pelas etapas de processamento industrial e controle de qualidade”, explica ele.
Também é possível atuar com o desenvolvimento de máquinas usadas na elaboração ou transporte de produtos — inclusive aqueles usados como insumos pelas próprias indústrias (como ovo em pó, por exemplo), para a fabricação do que chega ao consumidor final (como espaguete).
Comida também é cultura
O olhar técnico, porém, não basta. “É preciso aliar eficiência na produção com segurança alimentar, riqueza nutricional e qualidade sensorial do produto”, explica Meirelles. “Isso porque comer não é meramente uma forma de obter energia e preservar a saúde, é também um ato cultural”.
Sabor, cheiro, textura e aparência são fatores cada vez mais importantes para decidir qual produto escolher na prateleira do supermercado. Nas últimas décadas, o consumidor se tornou muito mais sensível e exigente quando o assunto é comida — ainda mais com a “onda gourmet” que se manifesta, por exemplo, na popularização de programas de TV sobre culinária.
Isso para não falar em outra onda, a “fitness”, que exige da indústria alimentícia cada vez mais recursos para oferecer produtos saudáveis. Segundo Meirelles, o engenheiro precisa pensar em formas de reduzir a quantidade de sódio, açúcar e conservantes das receitas, evitar a perda de nutrientes no processamento industrial e acrescentar ingredientes úteis, como o ferro, a produtos como achocolatados ou biscoitos, por exemplo.
A interface da engenharia de alimentos com saúde e nutrição também se manifesta na crescente demanda por alternativas de consumo voltadas a pessoas com doença celíaca (intolerância ao glúten) ou diabetes, por exemplo.
O desafio de conjugar todas essas demandas exige muito jogo de cintura e capacidade de trabalhar em equipes multidisciplinares, além de um grande apetite por inovação.
“O engenheiro de alimentos precisa constantemente desenvolver novas soluções para reduzir custos, de forma ambientalmente responsável, sem comprometer o valor nutricional, a qualidade e outros atributos culturais do que está produzindo”, resume o diretor da FEA-Unicamp.
O perfil de quem se dá bem
Quem consegue liderar projetos inovadores na área tem grandes chances de ter sucesso no "faminto" mercado brasileiro. De acordo com a professora Claudia Treumann, coordenadora do curso de engenharia de alimentos da Faculdade de Engenharia de Sorocaba (Facens), a carreira está entre as que menos sofrem com a atual crise da economia.
“Todo mundo precisa comer e beber, é uma necessidade básica do ser humano”, afirma. “O segmento sofreu uma certa desaceleração, mas continua oferecendo ótimas oportunidades para quem está preparado”, explica ela.
Grande parte das vagas está em multinacionais e conglomerados, mas também existe a possibilidade de atuar como consultor em empresas de pequeno porte ou até na esfera governamental, na área de fiscalização de órgãos como a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
De acordo com Treumann, a pós-graduação não é obrigatória para começar a atuar na área, mas aumenta consideravelmente as chances de sucesso em qualquer especialização escolhida, inclusive do ponto de vista salarial.
No caso da engenheira de alimentos Laura Aguiar, gerente corporativa da Ambev, continuar estudando após a faculdade fez toda a diferença. Formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007, ela acumulou qualificações ao longo de quase 10 anos de trabalho na empresa.
Além de um curso técnico no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), ela fez pós-graduação em cervejaria na Universidade da Califórnia, em Davis, e na escola alemã Doemens Akademie. Desde 2015, frequenta aulas de MBA na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Segundo Aguiar, a profissão exige estudo constante e atualização permanente — principalmente se você quiser transitar por várias áreas diferentes da indústria alimentícia e, em algum momento, assumir uma posição menos técnica e mais estratégica.
A engenheira cumpriu exatamente essa trajetória. De estagiária numa maltaria, ela passou por setores como processos e qualidade, foi mestre-cervejeira, e em 2016 assumiu a posição de gerente do departamento de ciências do consumidor da Ambev.
Hoje, seu trabalho está ligado diretamente à estratégia de inovação da companhia: na ponte entre as equipes de desenvolvimento e marketing, ela tem a missão antecipar tendências do mercado, captar oportunidades e lançar novos produtos, como foi o caso da “Brahma 0,0%”, linha de cerveja sem álcool lançada pela marca em 2013.
Além do conhecimento técnico sobre a bebida, seu trabalho envolve criar diálogos entre pessoas com perfis muito diferentes para desenvolver e aperfeiçoar o produto. “Meu trabalho é sempre em equipe”, diz ela. “Liderança e gestão de pessoas são habilidades fundamentais na minha rotina”.
Química, português e muito jogo de cintura
No cotidiano da engenheira de alimentos Mariane Ramos também não falta diálogo e negociação. Gerente de qualidade da Nestlé, ela precisa conversar com diferentes departamentos e níveis hierárquicos para garantir que sopas, caldos e cereais da marca saiam da fábrica segundo todos os critérios de segurança e qualidade exigidas pelo governo e pela própria empresa.
Ramos é formada pela Escola de Engenharia de Mauá e tem dois MBAs, um na Fundação Getúlio Vargas e outro na Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. “A pós foi essencial para fazer um ‘ajuste fino’ das minhas competências, porque me apresentou uma visão do todo da companhia, com foco em finanças e gestão de pessoas”, explica ela. “Isso abriu as portas para que eu não me restringisse ao aspecto técnico da profissão”.
É claro que gostar de exatas continua sendo essencial: conhecimentos de matemática, física e principalmente química são exigidos diariamente da gerente da Nestlé. Segundo ela, raciocínio lógico e facilidade para lidar com números são características fundamentais para um jovem que deseja ingressar na profissão.
Línguas também são uma exigência cada vez mais comum, já que muitas empresas da indústria de alimentos são multinacionais estrangeiras e produzem muitos relatórios, instruções e documentos em inglês. Porém, o idioma materno também merece atenção. Segundo Ramos, dominar português e redação faz toda a diferença para escrever relatórios e pareceres compreensíveis para leigos, por exemplo.
Dito isso, investir nas chamadas “soft skills” — isto é, competências ligadas a aspectos comportamentais — é o grande segredo para se diferenciar.
“Todo mundo sai da faculdade com uma base técnica mais ou menos igual, isto é, o engenheiro sempre tem um olhar crítico, racional e lógico para melhorar processos”, afirma a gerente da Nestlé. “O que faz alguém realmente se destacar na área são as habilidades de relacionamento e comunicação”.
Afinal, criar vínculos entre pessoas de cargos, perfis e funções diferentes é o maior desafio de quem trabalha com um algo tão complexo quanto comida. Esse é o “ingrediente secreto” dos alimentos saudáveis, seguros, bonitos e saborosos — aqueles que o consumidor não pensa duas vezes antes de levar à boca.