Redação Exame
Publicado em 7 de junho de 2025 às 07h01.
A prorrogação da entrada em vigor da nova NR-1 para 2026 trouxe consigo um efeito colateral preocupante: o congelamento de diversas ações voltadas à saúde mental no trabalho. O que era para ser um momento de amadurecimento das estratégias virou, em muitas empresas, uma pausa motivada pela incerteza das sanções.
Isso em um contexto em que, segundo o Ministério da Previdência Social, o ano passado registrou o maior número de afastamentos por transtornos mentais da última década (472 mil licenças médicas por condições como ansiedade e depressão). Infelizmente o senso de urgência parece depender do risco de multa, e não da urgência real do sofrimento humano.
Mesmo onde existem esforços, observo um padrão comum: ações paliativas, pouco eficazes na prevenção de adoecimentos. E é nesse cenário que entra um tema cada vez mais aquecido: o bem-estar corporativo. É fundamental ter uma cultura de bem-estar nas empresas, mas precisamos repensar o que estamos chamando de “bem-estar corporativo”.
Benefícios como incentivo à prática de exercícios físicos, alimentação saudável, meditação, terapia, higiene do sono, entre outros, são importantes porque proporcionam aos trabalhadores acesso a recursos relevantes para o autocuidado. Mas não devem ser o ponto final. Quando oferecidos sem considerar a revisão da estrutura de trabalho, esses programas podem, na prática, transferir ao trabalhador a responsabilidade por resistir ao adoecimento, como se fosse ele quem precisa “aguentar mais”.
Chegou a hora de questionarmos as regras e os processos que moldam o trabalho. E de enxergarmos a NR-1 não como um fardo burocrático, mas como uma grande oportunidade de estruturar, de forma inteligente e sustentável, um novo modelo de bem-estar corporativo, um que vá além de salas de descompressão e cadeiras de massagem e ajude nessa jornada de prevenção do adoecimento mental.
A história das Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) nos oferece um paralelo revelador com a crise de saúde mental que vivemos hoje.
Com a automação e o uso massivo de computadores, surgiram inúmeras lesões relacionadas a movimentos repetitivos e jornadas prolongadas. A resposta inicial foi a negação: trabalhadores eram desacreditados, médicos eram questionados, empresas evitavam assumir responsabilidades.
Foi somente com o reconhecimento científico e a criação dos conceitos de LER/DORT que o problema foi legitimado. Vieram os litígios e, então, as primeiras tentativas de resposta, como a ginástica laboral. Mas a verdadeira transformação só aconteceu quando se começou a adaptar o trabalho ao ser humano — e não o contrário — surgindo então a ergonomia osteomuscular.
Hoje, na saúde mental, repetimos esse mesmo roteiro. O sofrimento mental foi inicialmente tratado como “frescura”, “mimimi” ou “falta de resiliência”. O reconhecimento da Síndrome de Burnout como doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde foi um marco justamente por oficializar a relação entre trabalho e sofrimento psíquico. Costumo dizer que o Burnout é o “LER DORT da cabeça”.
Vieram os processos judiciais. E, mais uma vez, a resposta organizacional recaiu em soluções individuais: meditação, mindfulness, yoga, programas de resiliência, rodas de conversa e workshops, a “ginástica laboral da mente”. Práticas importantes, sim, mas que ignoram o essencial: o modelo de gestão e organização do trabalho. No momento, ainda estamos nessa fase.
Em vez de apenas oferecer ferramentas para suportar o sofrimento, por que não repensar as regras que o provocam? Podemos complementar os programas de bem-estar com essa avaliação profunda dos riscos psicossociais que não se restringe aos questionários e aos “mapas de calor”. É aqui que entra a Ergonomia Mental, uma abordagem fundamentada na psicodinâmica do trabalho, campo desenvolvido pelo médico e psicanalista Christophe Dejours.
A Ergonomia Mental parte de uma pergunta fundamental: o que no trabalho gera saúde e o que gera sofrimento?
Ela propõe intervenções estruturais em processos, metas, políticas de avaliação de desempenho, produtos de RH e práticas de liderança. Seu objetivo é criar ambientes:
E, ao contrário do que muitos pensam, não se trata de um gasto a mais para a empresa, mas de um investimento vantajoso, com resultados eficazes como:
A ergonomia osteomuscular já nos ensinou que o bem-estar no trabalho depende de ajustar as condições às capacidades humanas. Agora, é hora de aplicarmos esse mesmo raciocínio à dimensão mental do trabalho.
Se continuarmos oferecendo soluções individuais para problemas estruturais, prolongaremos o sofrimento e aumentaremos os custos — humanos, financeiros e reputacionais.
Mas, se encararmos a saúde mental com a seriedade que ela exige, poderemos redesenhar o trabalho de forma mais empática, colaborativa e produtiva. Essa é a verdadeira inovação que o mundo do trabalho precisa.
Dr. André Fusco é médico-psicanalista e consultor em saúde mental no trabalho. Graduado pela USP e com mais de 20 anos de experiência, incluindo uma década como responsável pela área de saúde ocupacional do Itaú-Unibanco, é um dos principais embaixadores do conceito de Ergonomia Mental no Brasil. Por meio da Psicodinâmica do Trabalho, desenvolveu uma metodologia para diagnosticar e identificar as causas de problemas relacionados à saúde mental, além de propor soluções eficazes para desafios complexos nessa área.