Aviação comercial: crise decorrente da pandemia obrigou empresas aéreas a estacionar a maior parte de suas frotas de aviões (Alex Kraus/Bloomberg/Bloomberg)
Estadão Conteúdo
Publicado em 16 de agosto de 2020 às 16h21.
A crise decorrente da pandemia obrigou empresas aéreas a estacionar a maior parte de suas frotas de aviões e, consequentemente, paralisou a carreira de milhares de pilotos no mundo todo.
No Brasil, parte dos profissionais já vinha sofrendo com a quebra da Avianca Brasil e teve de deixar o País, no ano passado para trabalhar na Ásia, um mercado que vinha crescendo rapidamente e cujos salários são mais elevados. Agora, porém, com a crise global, as saídas são mais escassas. Só na última semana, 700 pilotos (ou 11% dos profissionais brasileiros da aviação regular de carga e de passageiros) foram demitidos pela Latam. Na Azul e na Gol, os pilotos tiveram salários e jornadas reduzidos até o fim de 2021.
Dispensados, profissionais tentam agora voltar à carreira de piloto de jatos executivos, alguns pensam em largar a profissão até que haja uma melhora no setor e outros dizem que vão esperar uma recuperação no mercado asiático, que deve ser o primeiro a ver uma retomada, para procurar uma vaga na China ou no Vietnã.
“Foram 700 demitidos na Latam. Quantos vão conseguir se realocar? Imagino que nem 10% no médio prazo. As empresas aéreas estão sangrando continuamente. O mercado de aviação civil é difícil, com margem pequena. Aí vem uma pandemia e acaba com o setor turístico”, diz o piloto Paul Pic.
Se o grande número de profissionais sem emprego e a baixíssima demanda por eles já tornam o retorno ao mercado de trabalho difícil, os pilotos enfrentarão um problema extra nos próximos anos: precisarão manter suas licenças para voar atualizadas. Normalmente, as companhias aéreas arcam com esse custo, que pode chegar a 5.000 dólares por ano. Agora, esse dinheiro terá de sair do próprio bolso, caso eles queiram estar prontos para serem contratados quando o setor se recuperar.
A Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata) prevê que o mercado global só volte ao patamar de 2019 em 2024. No Brasil, porém, segundo o diretor da entidade no País, Dany Oliveira, a retomada pode ser mais rápida, puxada pela aviação doméstica. “A aviação que a gente tem hoje é 15% do que foi a de 2019. Então, tem um excesso de recursos humanos. Fazendo uma simples correlação, o mercado de trabalho deve retornar aos níveis de 2019 junto com o setor.”
A crise já se reflete no Aeroclube de São Paulo, onde a maioria dos alunos pretende seguir a carreira de piloto. “Estamos com dificuldade para fechar turmas. Agora temos oito inscritos para uma turma que deveria ter 20”, diz Marcos Pereira, diretor do aeroclube. Além do futuro obscuro, a mudança de classes presenciais para virtuais nos últimos meses também prejudicou o andamento dos cursos, diz Pereira. A intenção agora é conseguir fechar uma nova turma presencial.
Com a formação de piloto concluída no começo deste ano, Yuri Prado Silva, de 24 anos, estava participando de uma seleção da Azul quando a quarentena começou. O processo foi interrompido e, agora, ele pretende trabalhar como instrutor de voo até que as seleções sejam retomadas.
“Há uma semana, me tornei instrutor de voo. Meu sonho é chegar a uma linha aérea. Sei que o mercado está parado, mas a aviação não tem hora para ficar boa. Pode ser que, do nada, um companhia aérea comece a contratar. Por isso, é bom estar preparado”, diz.
O trabalho como instrutor ajuda também Silva a somar horas de voos para poder atuar em uma companhia aérea. Enquanto algumas empresas pedem 250 horas de experiência, outras exigem 500 - Silva tem 257.
É um caminho longo e caro. Para tirar a carteira de piloto comercial e ter 150 horas de voo, o custo chega a R$ 200 mil. O salário, porém, costumava compensar. Em média, um comandante recebia R$ 20 mil por mês. Com a crise, tem profissional recebendo R$ 5 mil, diz o presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Ondino Dutra.
Paul Pic, de 45 anos, é filho de piloto. Seu pai tinha uma empresa de aviação agrícola, segmento mais pesado do setor aéreo dado que o piloto trabalha no calor, em aviões sem ar condicionado, voa em altitude baixa e não se hospeda em hotéis confortáveis. “Não queria isso para mim, mas hoje não descarto”, diz ele, que trabalhou em companhia aérea por 13 anos e havia sido promovido a comandante há um.
Apesar da crise histórica na aviação, Pic se diz realizado com a carreira que traçou. “Sempre sonhei em pousar no Charles de Gaulle (aeroporto em Paris), em Nova York... Realizei esses sonhos. Fui muito feliz, mas sei que agora tem um risco grande de não entrar em um avião por muito tempo. Talvez minha carreira tenha sido concluída aqui, mas tenho a satisfação de ter chegado a uma empresa grande e ter voado um 777 (avião para 365 passageiros). Eu e meus colegas estamos vivendo um luto profundo porque não é só de emprego, é de carreira.”
Pic diz que as chances de conseguir um emprego novo como comandante são baixas, pois tem pouca experiência no cargo. “Só vou conseguir ser contratado como copiloto. Seria como reiniciar a carreira.” Pessimista com o futuro, ele destaca que as qualificações de pilotos não são muito valorizadas em outras carreiras, o que dificulta uma recolocação. “Sei, por exemplo, me comportar num sistema de tráfego aéreo. Para que serve isso aqui embaixo?”
Fluente em francês e em inglês, está tentando uma vaga em uma startup, onde poderá ganhar um terço da remuneração que tinha. “Isso vai ser por um tempo. Depois vou ter de recomeçar. Piloto tem uma capacidade de se manter sereno no momento de crise. Mas tudo isso não é sem tristeza.”
“Como a aviação é muito sensível à economia, para a gente que busca uma carreira na área, é importante ter sempre um plano B”, diz Peterson Ramos dos Santos, de 37 anos, que está sendo obrigado a recorrer a essa estratégia agora. No caso dele, o plano B é o trabalho como servidor público no governo do Distrito Federal, do qual havia se licenciado quando conseguiu um emprego como copiloto, em 2017.
No trabalho público, porém, Santos recebe um terço do que ganhava como piloto. Antevendo esse cenário, ele já se mudou para um apartamento menor, vendeu o carro e transferiu a filha para uma escola pública. A esposa também trancou a faculdade. “Na aviação, dizemos que temos de estar sempre à frente do avião sempre preparados para tomar alguma atitude. Dentro dessa perspectiva, reduzi despesas e fui me preparando para um cenário mais difícil, que foi o que acabou acontecendo. Mas vamos conseguir passar por essa turbulência e se preparar para a retomada.”
Santos diz estar otimista em relação ao futuro, já que o mercado doméstico brasileiro tem grande potencial. Mesmo assim, não vê uma retomada rápida nos próximos dois anos. “O momento agora é de deixar o tempo passar e continuar estudando”, acrescenta ele, que pretende retomar o mestrado em Transporte - que havia parado por causa do trabalho - enquanto a aviação não se recupera.
“Por enquanto, a situação é muito complicada, mas cada um vai encontrando um caminho. Tem gente já trabalhando como motorista de aplicativo. A questão é que todo piloto quer voar. Quem é piloto nasceu para isso. O olhar está sempre voltado para o céu. Esse é sempre o objetivo.”
Marcelo Americano, de 39 anos, está com o casamento marcado para agosto do ano que vem, após adiá-lo duas vezes por causa da pandemia. Sua noiva e família moram no interior de São Paulo e, mesmo assim, ele não descarta a possibilidade de se mudar para China ou Vietnã. A aposta é que, como esses países foram atingidos antes pela pandemia e conseguiram contornar a crise de modo mais eficiente, eles se recuperem antes e suas empresas aéreas voltem a contratar.
“Tenho ouvido falar que, nesses países, podem começar a contratar no início do ano que vem. A princípio, não gostaria de sair do Brasil. Tenho uma noiva e minha família toda aqui. Mas, se aparecer oportunidade lá fora, vou ter de ir.”
Americano sabe que a concorrência vai aumentar muito no setor nos próximos meses, com a demissão de pilotos em todo o mundo. “Vai ter um excedente de profissionais. Eu estou me atualizando, estudando aviação por conta própria para os processos seletivos. Também comecei um curso online sobre mercado de capitais.”
Apesar de ter tirado sua licença de piloto comercial pouco depois dos ataques de 11 de setembro, que também arrasaram o setor aéreo, Americano logo conseguiu seu primeiro emprego para pilotar um avião de uma siderúrgica. Depois, passou por uma empresa de táxi aéreo e foi contratado pela então TAM em 2007.
“Nunca passei por nenhuma dificuldade no setor como agora. Dessa vez, a crise é grave no mundo todo. Nunca fiquei desempregado e jurava que ia me aposentar na empresa (Latam). Mas, apesar de toda dificuldade atual, vejo muito potencial de crescimento do setor no Brasil, porque as pessoas ainda viajam pouco.”