Araquém Alcântara: Fotógrafo tem que exercitar a paciência e a contemplação, se não jamais será fotógrafo
Repórter
Publicado em 12 de outubro de 2023 às 09h43.
Última atualização em 12 de outubro de 2023 às 14h03.
Araquém Alcântara consegue ser original em suas obras assim como o seu nome. Com origem tupi, “Araquém” significa “pássaro que dorme”, mas segundo o próprio fotógrafo o nome escolhido pelo pai (um cozinheiro de navio que viu esse nome no livro “Iracema”, de José de Alencar) não combinava muito com ele. “Por um lado, meu nome é algo profético, uma ligação com a natureza brasileira que hoje é o meu chamado. Mas um dia falei para o meu pai que eu não sou o pássaro que dorme, eu sou o pássaro que ama voar”.
Como fotógrafo do Brasil, como ele mesmo se titula, Araquém já voou muito pelo país em seus 53 anos de carreira, buscando por meio de suas fotografias retratar o belo e o trágico que impacta o bioma brasileiro. Muitas dessas fotos estarão expostas em uma mostra na região Norte, onde estão as grandes florestas brasileiras.
Além da mostra, considerando a data de 12 de outubro, Dia Nacional da Leitura, o fotógrafo adianta que lançará seu primeiro livro infantil em novembro, após 60 livros publicados. “Quero que as crianças conheçam a nossa natureza e se impactem com o que temos de bonito, assim como eu fiquei encantado quando fotografei a primeira onça. Elas são as nossas chances de termos um futuro melhor.”
O livro terá histórias de crianças indígenas, ribeirinhas, extrativistas, quilombolas, urbanas e beiradeiras, que representam a diversidade da cultura brasileira.
Natural de Florianópolis, SC, Araquém mudou-se para Santos, litoral paulista, aos 6 anos de idade com sua mãe, pai e duas irmãs. O fotógrafo acredita muitos nas conexões da vida e viver em Santos é uma delas – foi neste lugar que ele conquistou o primeiro emprego como jornalista, depois como fotógrafo e logo depois como um militante da natureza. Após ganhar um concurso, se tornou jornalista aos 18 anos no jornal Cidade de Santos. “Era terrível trabalhar lá naquela época, tínhamos que escrever correndo porque o jornal era impresso em São Paulo por pertencer à Folha. Era uma loucura,” afirma Araquém.
Em 1970 ele já não aguentava mais escrever, e a fotografia surgiu em sua vida como uma epifania. “Em janeiro de 1970, mês do meu aniversário, assisti um filme japonês chamado A Ilha Nua na sessão da meia-noite, e tudo mudou.”
O filme de Kaneto Shindo relatava a história de uma família que resolveu se mudar para uma ilha deserta. O movimento dos remos, a dificuldade de buscar a água, a música quase como mantra tocou Araquém. “Toda aquela beleza e simplicidade que eu via nas imagens me fez ficar transido naquele escuro. Comecei a entender que eu era um contemplador. Fotógrafo tem que exercitar a paciência e a contemplação, se não jamais será fotógrafo,” disse.
Após a sessão, Araquém recusou uma festa e foi caminhar na beira da praia do Gonzaga, questionando a si mesmo sobre o que havia mudado e pensou: “Puxa, Araquém, bem que você podia dizer as coisas deste modo”. Naquele instante Araquém disse que decidiu mudar de profissão e ser um fotógrafo.
A mudança da redação para o mundo das imagens foi instantânea. No dia seguinte, ele pediu uma máquina fotográfica emprestada para sua amiga da faculdade e buscou em Santos um lugar que tivesse uma atmosfera diferente, que trouxesse uma mensagem real. “Descobri que eu não queria mais fazer textos e sim fotografia.”
A primeira foto de Araquém não tem relação com sustentabilidade. O porto de Santos na década de 70 não tinha contêiners, o que demorava muito para os navios serem carregados e descarregados. Perto do porto, foi criado uma zona de prostituição, onde os profissionais desses navios costumavam passar as noites. “A minha primeira foto foi de uma prostituta levantando a saia em um ponto de ônibus. Encontrei naqueles bordeis a atmosfera, o clima, o objeto fotográfico,” disse Araquém.
O registro da primeira fotografia se perdeu com o tempo, segundo o fotógrafo, que ficou observando Santos com um outro olhar, procurando algo diferente, assim como viu no cinema. “Encontrei em Santos a minha aldeia, falo isso porque sempre lembro da frase do russo Tolstoi, que dizia que quem canta bem a sua aldeia, faz um canto universal.”
Ele começou a explorar a cidade, os bairros, os cais e os movimentos dos navios e foi com essa “varredura” que ele descobriu Cubatão - e o tema que na época era futurista, se tornou contemporâneo hoje. “Cubatão foi a primeira epifania da minha vida sobre sustentabilidade. Era impressionante esse lugar porque os resíduos eram jogados nas águas, tenho foto de maquinários dentro das lagoas com urubus por cima. Você precisava ver as camadas de poluição em cima das casas da Vila Parisi,” diz o fotógrafo.
Entre fotos de ar poluído e lagoas contaminadas na baixada, Araquém viu que não poderia mais trabalhar em apenas um lugar, no caso a redação, e encontrou no final de 1970 a sua missão: ser um cantador (aquele que relata acontecimentos diversos) da natureza, sejam esses acontecimentos belos ou terríveis em diferentes cantos do Brasil.
Três fotos marcam a carreira de mais de 50 anos de Araquém Alcântara:
Como ele mesmo disse, ele é como um “pássaro que ama voar” e seu destino predileto é a Amazônia. Foi lá que ele fez as fotos mais emblemáticas de seus 53 anos de carreira. “A primeira onça a gente nunca esquece”, diz ele ao se referir a uma de suas fotografias prediletas.
Ele tinha 28 anos quando foi convidado para fazer um freelancer no Amazonas pela primeira vez. Ao chegar em Manaus ele escutou um rapaz perguntando para outro homem. “E aquela onça, Manuel, continua passando por lá?”. Para Araquém essa fala foi uma conspiração, porque foi assim que ele chegou no manauara, que o levou até o local onde provavelmente ele encontraria uma onça-pintada. “Não faço as imagens sozinhos, sempre busco apoio de biólogos ou moradores da região que conhecem o habitat do animal e até onde podemos chegar.”
Seguindo o novo contato, Araquém percorreu por cerca de 4 horas, em um barco, até a ilha de Xiborema. A onça demorou tanto para aparecer que ele teve que dormir na casa do manauara, onde ele teve o primeiro contato com a cultura da Amazônia. “A casa era de madeira, almocei a comida que eles tinham e presenciei o modo de vida local. Isso faz muita diferença para o trabalho,” afirma Araquém.
No dia seguinte saíram cedo, já estavam desistindo, quando no caminho de volta encontraram um pescador no Igarapé do Guedes. Ao perguntarem onde a onça poderia estar, o pescador respondeu: “Ela está aí dentro,” apontando para a lagoa.
Ao chegar em silêncio, encostaram a canoa de lado, mantendo distância do animal – ela estava lá, a cabeça saiu lentamente da lagoa. Parecia tranquila. “Fiquei anestesiado. Foi uma mistura de medo e respeito. Senti um tremor enorme,” disse Araquém, que tirou a câmera, e mesmo tremendo regulou o zoom para registrar as imagens do animal. “Ela se levantou, puxou um galho e mordeu. Parecia que ela estava se protegendo de uma enchente, mas não, ela estava brincando com o galho,” disse Araquém.
Para ele foi algo tão incrível e bonito registrar de perto aquele bicho, com toda aquela estrutura, que ele não parou mais.
Outra foto que Araquém conta como marco de sua carreira é a do seu pai que serviu de modelo em uma região onde pretendiam construir duas usinas nucleares (Iguape I e Iguape II), era 1980: “Fiz a foto do meu pai segurando esqueletos dos sepultos de Hiroshima de uma fotografia que eu reproduzi. E ela correu o mundo e viralizou mesmo sem internet.”
As usinas não chegaram a ser construídas, porque segundo Araquém, além da questão econômica, teve também uma forte movimentação pública, com até passeata na Avenida Paulista.
A foto, além da repercussão histórica, mostra a ligação de pai e filho com a natureza. “Meu pai me estimulou desde o início, desde o nome tupi até ao incentivo de amar a natureza. Ele queria que eu voasse, que eu fosse a pessoa que abraçasse a árvore, e eu abracei,” disse Araquém.
As imagens de Araquém sobre a natureza Amazônica saíram do Brasil para vários países, com exposição que chegaram na França, Reino Unido e Japão. Outra fotografia que se tornou muito emblemática, e que foi usada até em uma manifestação em Amesterdã, Holanda, foi a do tamanduá cego saindo de uma floresta queimada em 2019.
“Lembro que quando eu cheguei no local, de carro, eu fiz a famosa varredura, foi quando eu vi um animal saindo da floresta. Com o binóculos, vi que era um tamanduá. Mesmo sem autorização, atravessei a cerca e me aproximei. Ao ouvir meus passos, ele se levantou com os braços abertos. Vi nessa hora uma queimadura no peito dele e vi também que ele estava cego. De alguma forma o movimento dele era para se proteger, mas também para pedir socorro,” afirma o fotógrafo.
Araquém não imaginava que essa foto tomaria tanta repercussão. “Esse registro é um dos exemplos do que podemos ver de terrível na natura, a devastação das nossas florestas e a morte dos animais. Essas imagens precisam ser mostradas para que possamos tomar atitudes,” diz Araquém, que reforça que ser fotógrafo é de longe uma profissão glamurosa. “Andamos e navegamos quilômetros, e em alguns casos corremos riscos de vida para registrar uma realidade nunca vista, locais por vezes ignorados.”
Em seus mais de 50 anos de carreira, Araquém produziu 60 livros sobre temas ambientais, 75 exposições individuais, além de inúmeros ensaios e reportagens para jornais e revistas nacionais e estrangeiras. A The National Geographic, por exemplo, fez duas revistas só de bichos com imagens do Brasil feitas por ele.
Ao se inspirar no fotógrafo americano Ansel Adams, ele também produziu o livro “Terra Brasil” - o livro de fotografia mais vendido no país. Agora, o seu próximo livro será o “Amazônia das crianças”, que irá retratar e dar voz a 15 meninos e meninas de seis estados da região amazônica — Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará e Roraima. Os personagens contarão suas aventuras cotidianas, como percorrer longas distâncias de água para pescar ou ir à escola, participar das preparações para uma festa ou um ritual, ir à primeira grande caçada ou jogar futebol no campo da aldeia.
“Quero conscientizar as crianças de vários cantos do Brasil sobre a riqueza cultural do nosso país e o patrimônio ambiental que elas têm que proteger,” afirma Araquém.
O pré-lançamento será no dia 23 de novembro durante a “Virada Sustentável”, evento sobre sustentabilidade realizado em Belém do Pará. O lançamento oficial será no dia 30 de novembro, em evento que reunirá os autores da obra e convidados em São Paulo.
Com 53 anos de carreira, uma das dificuldades de Araquém é reunir todo o material que já produziu. “Já perdi as contas de quantas fotos eu fiz,” diz o fotógrafo.
Para reunir suas principais obras e celebrar seu ciclo de 50 anos, uma exposição foi criada pela “Vento Leste”, plataforma facilitadora de projetos culturais, e pelo “Atelier Marko Brajovic”, que trabalha com curadorias nacionais e internacionais direcionadas pelo arquiteto Marko Brajovic, que trabalha com diversos projetos ligados à Amazônia.
“Neste acervo temos o discurso do Araquém nestes 50 anos. Será possível perceber nesta mostra que ele está no mesmo movimento desde a década de 70,” afirma Monica Schalka, diretora da Vento Leste.
Para quem já publicou 60 livros, Schalka comentou que teve que pensar em algo diferente que não fosse mais um livro ou uma exposição de luxo em São Paulo. “Sabia que essa exposição deveria estar fora de São Paulo em um lugar que ressignificasse o Brasil como um todo, e que de alguma forma representasse a pauta de sustentabilidade.”
A exposição, que contou com incentivos via Lei Rouanet e apoio da empresa Alcoa, tem um formato diferenciado: ela não tem um local físico e chegará à população por meio da água e da terra. A mostra, que conta com uma tela led que passa as imagens digitais do fotógrafo, percorrerá inicialmente por via fluvial no Pará, em Santarém. Depois passará por Belém, onde terá uma parte terrestre com um caminhão itinerante, e por fim terá como destino São Luiz do Maranhão.
“A navegação é um formato novo e ao mesmo tempo ancestral. A mensagem é que navegar pelas águas pode te levar a lugares inesperados. Esses instantes que Araquém captou na fotografia queríamos que fosse captado pelo público que também está na região Amazônica,” afirma Marko Brajovic, diretor criativo do Marko.
O led flutuante e terrestre também tirará fotos das pessoas, da chuva, do sol, em tempo real. A ideia é transmitir a vida acontecendo, afirma o arquiteto, que reforça que a exposição flutuante tem a ideia também de reforçar a importância do uso da água e a riqueza das bacias brasileiras.
“A Amazônia sempre tem algo inesperado, infelizmente agora há uma seca, mas é um lugar mágico que sempre surpreende. A ideia dessa mostra é fechar esse ciclo do Araquém com uma visão cíclica, mostrando a natureza como ela é, e seus ciclos,” diz Brajovic.
A exposição que estará tanto em rios quanto em praças, conta também com uma parte educacional. “Iremos também fazer palestras com a população local e escolas, usando os aspectos do Araquém de sustentabilidade, preservação e estética,” diz Schalka.
Por serem imagens digitalizadas, será possível com que todos os brasileiros acompanhem a exposição pelo site de onde estiver, em tempo real, a partir do dia 16 de outubro.
A mostra apresenta a história de uma obra de mais de 50 anos, ou como o fotógrafo mesmo diz, de uma missão que continua. Aos 72 anos, separado há 48 anos, Araquém é pai de Rita e avô de dois meninos. Vive hoje sozinho em São Paulo, porque sua namorada mora no Rio. Com quadros na parede de xilogravura e com mesas cheias de livros e papéis, Araquém trabalha em seus próximos livros e já tem destinos agendados para a Amazônia, seu principal local de trabalho. “Lá é a minha matriz criativa. É o meu modelo de universo."
Além da região Norte, o fotógrafo já tem uma agenda internacional. No dia 5 de setembro de 2024, com apoio da embaixada brasileira, ele fará uma exposição sobre a Amazônia em Berlin, Alemanha. A próxima grande exposição no Brasil será em Belém do Pará, prevista para novembro de 2025 durante a COP 25.
Para Araquém, seu trabalho se resume em um estímulo e direção: “Eu vejo Deus nos olhos dos bichos e nos olhos das crianças humildes dormindo com fome. Ao ver isso, crio energia para continuar o meu trabalho. Continuo sendo um aprendiz e a fotografia me ajuda em vários sentidos, porque para mim ela é um caminho de autoconhecimento.”