Segmento de alta renda alimenta novos negócios pelo lado do atendimento ao cliente (HAKINMHAN/Thinkstock)
Karin Salomão
Publicado em 21 de abril de 2018 às 15h45.
The Tyranny of Metrics (“A tirania das métricas”, numa tradução livre)
Autor:Jerry Z. Muller
Editora: Princeton University Press
240 páginas
Preço: R$ 56,89 (e-book)
Um dos discursos mais memoráveis da ex-presidente Dilma Rousseff (e mais característicos de sua dificuldade com as palavras) foi quando, referindo-se ao programa Pronatec Aprendiz, de ensino técnico para jovens em pequenas empresas, ela disse: “Não vamos colocar meta. Vamos deixar a meta aberta, mas, quando atingirmos a meta, vamos dobrar a meta”.
Não era essa a intenção de Dilma, mas em poucas frases ela acabou sintetizando alguns dos maiores problemas do sistema de métricas e metas que se tornou um dos alicerces da administração moderna. É difícil definir a melhor meta; é difícil atingi-la; e, quando estamos quase a alcançá-la, ela muda de lugar.
É muito mais fácil definir a meta, como queria a presidente, a posteriori. No entanto, se a meta é aberta, o sucesso é um termo em eterna disputa, uns dizendo que os objetivos foram plenamente atendidos, outros dizendo que não.
É por isso que, no reino dos negócios, que se pretende da objetividade, as metas (definidas a priori) se tornaram onipresentes. Espalhou-se o mantra proferido pelo consultor e palestrante Tom Peters, na década de 1980: o que é medido é feito (“what gets measured gets done”).
Como solução, porém, as metas são um baita problema. Vários anos atrás, o presidente de uma consultoria de estratégia me disse: “Durante toda a minha carreira eu defendi que a melhor maneira de gerir um negócio é estabelecendo metas. Agora já não tenho tanta certeza”.
O que abalou suas convicções foi uma onda de escândalos em sequência na economia americana, no início do milênio: Dennis Kozlowski, presidente da Tyco; Bernard Ebbers, da WorldCom; John Rigas, da Adelphia; Jeff Skilling, da Enron; todos foram parar na cadeia, por crimes que envolviam fraudar metas e, obviamente, as métricas que as sustentavam.
Mas, à parte um ou outro exame de princípios, os escândalos não foram capazes de barrar o avanço das metas. De lá para cá, seu uso continuou a se expandir. E não só entre empresas, mas na gestão pública, nas avaliações de escolas, hospitais, polícias…
É claro, se metas e métricas se espalham com tanto vigor, é porque algum bom resultado estão trazendo. Em geral, porém, seus defensores só medem os bons resultados – e não tomam conhecimento dos maus.
A não ser quando surge algo tão errado quanto as milhares de contas fantasmas do Wells Fargo, um banco que pressionou seus funcionários tão fortemente a atingir metas que vários deles passaram a inventar resultados (as contas fantasmas serviam para eles fingirem que estavam vendendo serviços extras aos correntistas, conforme suas metas).
Há quem diga até que a crise financeira de 2008, que atingiu todo o planeta, tem sua origem no sistema de metas e métricas que incentivou corretores a vender cada vez mais títulos de fundos imobiliários com cada vez menos lastro em dívidas de alto grau de confiança.
Afinal, as metas ajudam ou atrapalham?
Um pouco de cada, diz Jerry Muller, professor de história da Universidade Católica da América, em Washington, em seu livro recém-publicado The Tyranny of Metrics (“A tirania das métricas”, numa tradução livre).
Ele se detém bem mais, no entanto, nos aspectos negativos das metas.
Muller decidiu escrever o livro por ter sofrido na pele a tirania das métricas, como diretor de departamento da universidade. A instituição é submetida a uma avaliação da agência que garante a qualidade do ensino no país. E isso é feito, é claro, com base em várias métricas. “Alguns dos relatórios são genuinamente úteis”, diz Muller. “Por exemplo, tabelas que mostram a nota média dos alunos em cada curso.”
Mas as métricas produzem efeitos colaterais. No caso dele, os professores relataram que o engessamento do currículo, promovido para maximizar o desempenho nas provas, estava lhes tirando o entusiasmo de ensinar.
Mas há outros, até piores.
As metas promovem a atenção ao curto prazo. Trazem custos extras, por tomar o tempo dos funcionários para preencher relatórios das métricas e dos objetivos atingidos. Desencorajam a tomada de riscos e a inovação (o empreendedorismo pode ser definido como a aceitação de um risco impossível de medir, como disse o economista Frank Knight, “pois os benefícios potenciais de uma inovação não estão sujeitos a cálculos precisos). Degradam o ambiente de trabalho (por mecanizar as tarefas).
Isso sem falar nas distorções. Em educação, é disseminada a prática de “ensinar para a prova”, o que pode ser bem diferente de ensinar para a vida. Isso ocorre porque as escolas vêm sendo cada vez mais cobradas a atingir metas.
Outra estratégia é o creaming (“efeito de nata”), quando se descarta uma parte mais problemática da amostra para mostrar resultados melhores. De acordo com Muller, vários estudos mostram que, quando os cirurgiões são remunerados de acordo com sua taxa de sucesso, alguns passam a evitar cirurgias nos pacientes em condições mais críticas.
Na Inglaterra, quando o Departamento de Saúde passou a punir hospitais com filas de espera de mais de quatro horas, alguns passaram a deixar pacientes esperando nas ambulâncias, fora do hospital, até que as equipes tivessem certeza de que poderiam atendê-los dentro do tempo estipulado.
A questão não é simplesmente mudar a meta. Médicos que são remunerados com base nos procedimentos que realizam tendem recomendar procedimentos demais (com alto custo para o sistema); se são remunerados com base no número de pacientes que atendem, passam a restringir o tempo das consultas para atender mais gente (como grande parte dos médicos em listas dos convênios), pedindo mais exames, custosos, para tomar decisões mais rápidas.
Já em 1976, o psicólogo Donald Campbell alertou que a campanha contra o crime do então presidente Richard Nixon “teve seu principal efeito na corrupção dos indicadores de crime”, com os policiais ignorando certos delitos ou registrando-os como menos sérios do que foram – uma invasão de casa vira danos à propriedade, um roubo vira propriedade perdida, um estupro vira assédio.
Em 2013, conta Muller, um denunciante da polícia de Londres disse a um comitê parlamentar que “amaciar” as estatísticas havia se tornado uma parte integrante da cultura policial.
Campbell era um crítico do uso indiscriminado das metas. A “lei de Campbell”, uma expressão inspirada nele, dita que “quanto mais um indicador social quantitativo é usado no processo de tomada de decisões, mais ele é sujeito a pressões de corrupção e mais afeito ele é a distorcer e corromper os próprios processos que deveria monitorar”.
Em outras palavras, quando você mede, interfere no processo. Especialmente quando se atrela uma recompensa ao cumprimento de metas. Aí se criam os incentivos para manipular as metas. Quando se passou a punir companhias aéreas por atrasos, elas responderam aumentando o prognóstico de duração de seus voos.
E as metas têm uma tendência a se multiplicar. As pessoas percebem que as atividades mais importantes não podem ser reduzidas a duas ou três métricas. Uma solução, para várias empresas, é criar mais metas, subdividi-las, casar metas contraditórias, inventar mais e mais e mais indicadores. A burocracia toma conta do processo de trabalho.
Metas específicas demais robotizam as pessoas e tendem a criar paranoia, além de dar espaços para manobras. Mas metas genéricas demais costumam ser ineficientes, ou mesmo danosas.
Após a série de escândalos do início do milênio em empresas americanas, percebeu-se que grande parte dos diretores de empresas eram remunerados simplesmente de acordo com o crescimento da receita e dos lucros. Ora, num ambiente em que a economia crescia, vários deles ganhavam fortunas por um trabalho medíocre (crescendo menos que os concorrentes e perdendo participação de mercado, por exemplo).
Em muitas ocasiões, as metas remuneram as pessoas pela sorte – quando elas têm pouco controle sobre os resultados de suas ações.
O problema da rejeição às métricas é que ela põe em questão a própria noção de uma gestão profissional. No início do século 20, as escolas de negócios preparavam seus alunos para trabalhar em indústrias específicas. A partir dos anos 1950, criou-se o ideal de um gerente geral, capaz de atuar em qualquer empresa, de qualquer setor, por estar munido de um corpo de conhecimentos comum a todas elas.
Ora, esse corpo de conhecimentos é todo baseado em métricas: contabilidade, leis, incentivos etc.
Os números passaram a suplantar a noção de conhecimento intrínseco. Ou, pelo menos, foram colocados acima deles na hierarquia.
Não foi um fenômeno apenas do mundo dos negócios. Uma crescente desconfiança das figuras de autoridade, a partir dos anos 60, alçou o conhecimento técnico a uma importância acima das experiências e opiniões daqueles que detinham poder.
Nos Estados Unidos, a evolução para uma sociedade de litígio, com um crescente número de processos contra médicos, empresas, autoridades, criou a necessidade de documentar todas as decisões do modo mais objetivo possível. E para isso eram necessárias métricas.
Se não foi o campo exclusivo das métricas e metas, as empresas foram sem dúvida seu campo mais fértil. Já no início do século passado, quando as grandes companhias ficaram tão grandes a ponto de não poderem ser geridas por um único dono, nascia a classe gerencial – e com ela o que viria décadas mais tarde a ser definido como a teoria de agência.
Essa teoria nasce da questão de passar as responsabilidades do principal para outra pessoa, o agente. Como confiar que a pessoa contratada está agindo no melhor interesse do contratante? A resposta clássica era: construção de confiança, fé. A resposta do mundo dos negócios é: com metas. E remuneração atrelada a elas.
A partir dos anos 80, esse sistema passou a ser visto como solução também para a gestão pública. Os altos custos e os insuficientes resultados de organizações sem fins lucrativos levaram à crença, hoje praticamente um consenso, de que elas precisam ser geridas “mais como um negócio”. E isso significa ter metas.
Curiosamente, a profusão de metas, hoje tida como sinal do avanço do capitalismo, era no início uma prerrogativa das economias socialistas. O economista liberal austríaco Friedrich Hayek, escrevendo em meados do século 19, ironizou o planejamento econômico em larga escala dos países comunistas como “cientismo”, a tentativa de regrar a vida econômica como se os dirigentes tivessem condições de conhecer todos os dados e resultados que formam a complexa vida em sociedade.
“Assim como os gestores soviéticos responderam produzindo bens fajutos que atendiam às metas dos governantes, também escolas, forças policiais e empresas encontram meios de atingir suas cotas com bens fajutos a seu modo: formando alunos com mínimas habilidades, ou classificando roubos como pequenos furtos, ou abrindo contas fantasmas para clientes do banco”, diz Muller.
A corrupção que as metas proporcionam ocorre pela substituição da motivação intrínseca pela motivação extrínseca. Atividades saudáveis têm as duas: atendem a uma vontade interna, dão prazer a quem as realiza, e comportam uma recompensa externa, seja na forma de ganho de status, respeito, reputação, ou dinheiro.
Não só as metas privilegiam a motivação extrínseca em relação à intrínseca, elas o fazem em geral com um tipo especial de motivação, o dinheiro. Isso é um duplo movimento de retirada do propósito da atividade.
Se os acadêmicos passam a ser avaliados pelo número de artigos que publicam – uma preocupação comum, com o nobre intuito de elevar a produção – vários deles passam a publicar mais, mas não necessariamente artigos melhores. Ou sequer bons.
Se, para suprir essa falha, cria-se uma nova meta, de ordenar os artigos por quantidade de citações a eles, para aferir sua qualidade, estimula-se a criação de “cartéis de citação”, em que um acadêmico cita o outro o máximo de vezes possível, para todos se ajudarem a cumprir a meta.
Quando a gestão é feita em torno de metas, as pessoas aprendem o jogo das metas: enfatizar as dificuldades para baixar o nível em que se consideram as metas atingidas, esconder informações para negociar metas mais fáceis ou, algo relativamente comum, renegociar metas no meio do caminho – justamente porque a motivação intrínseca foi tão reduzida que, ante a baixa perspectiva de atingir metas, torna-se imperioso recalibrá-las, sob pena de os resultados despencarem, na ótica do “perdido por um, perdido por mil”.
Nada disso quer dizer que as metas sejam prejudiciais, por si. A alternativa a não ter metas parece ser abdicar do controle, deixar de administrar.
As metas são especialmente úteis para tirar as decisões do campo da subjetividade completa, para testar se as opiniões se revelam verdadeiras na prática.
O livro Moneyball: O homem que mudou o jogo, que também virou filme, mostra como as estatísticas ajudaram um time de beisebol a escolher jogadores com características antes menosprezadas pelo saber intuitivo. Não há hoje grande clube de esportes coletivos que não preste atenção a essas métricas.
Assim como não há área das nossas vidas que não tenham métricas. Vivemos sob a constante baliza desde a idade em que o primeiro dente caiu, e a curva normal de crescimento até os níveis de colesterol e massa corporal, das notas da escola às tabelas de custo de vida (e salários), do quociente de inteligência ao quociente emocional, do número de amigos nas redes sociais à conta bancária. A economia funciona com metas de inflação e crescimento do PIB. A política funciona com metas de votos, cotas, adesões.
As metas simplificaram e substituíram, na vida moderna, o papel da consciência, no dito de Sócrates: “a vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Mas as metas são um instrumento. Não podem substituir o exame racional. Devem apoiá-lo. Nesse sentido, as recomendações de Muller fazem sentido:
Quando os objetos a ser medidos são influenciados pelo processo de medição, este se torna menos confiável. As métricas são bastante eficientes em identificar os extremos, especialmente as pessoas com desempenho ruim ou desonestas. Mas elas são menos eficazes para distinguir aquelas no miolo do grupo, ou mais perto do topo de desempenho.
Usar metas e métricas para monitorar o desempenho internamente é melhor do que usá-las externamente, para recompensar ou punir. A medição nunca é gratuita; convém descobrir qual o custo de obter os dados, seja o desincentivo aos trabalhadores, seja o custo de oportunidade (o que eles poderiam estar fazendo em vez de organizar dados).
Como e por quem as métricas foram desenvolvidas? Elas tendem a ser mais significativas quando criadas de baixo para cima, por quem entende a realidade e as especificidades do que está sendo medido.
Metas e métricas são um dado da vida. O problema, diz Muller, está no excesso. Em esquecer que nem tudo que conta pode ser contado, e nem tudo que pode ser contado conta. “Embora vivamos hoje inescapavelmente numa era de métricas, nós vivemos uma era de métricas enganadas, exageradas, enganosas e contraproducentes”, diz Muller.
Muitas vezes, as organizações agem como na piada do rapaz que está rondando um poste luz, procurando suas chaves. “Você as deixou cair aí?”, lhe pergunta um amigo. E ele responde: “não, mas aqui está mais fácil de procurar”.
Metas e métricas costumam fornecer uma luz para a eficiência das atividades. Mas incentivam a buscar tesouros embaixo dos postes.