Profissional da saúde: a maioria dos entrevistados que apresenta sintomas de depressão ainda não foi diagnosticada (Jean-Sebastien Evrard/AFP)
Da Redação
Publicado em 2 de abril de 2015 às 10h16.
Violências de vários tipos, sofridas durante o exercício da atividade profissional, estão provocando depressão entre os profissionais da Estratégia de Saúde da Família (ESF), principal programa de atenção básica do Ministério da Saúde.
Uma pesquisa realizada junto a 2.940 integrantes da ESF no município de São Paulo constatou que formas de depressão leves a moderadas afetavam 36,3% desses profissionais e depressões mais graves acometiam outros 16%.
No total, 52,3% dos entrevistados, englobando agentes comunitários de saúde, auxiliares de enfermagem, enfermeiros e médicos, estavam sofrendo de algum tipo de depressão por ocasião do inquérito.
A informação foi veiculada no artigo “Violence at work and depressive symptoms in primary health care teams: a cross-sectional study in Brazil”, assinado por Andréa Tenório Correia da Silva, Maria Fernanda Tourinho Peres, Claudia de Souza Lopes, Lilia Blima Schraiber, Ezra Susser e Paulo Rossi Menezes, publicado na revista publicado na revista Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology.
O estudo foi realizado no âmbito do projeto “Esgotamento profissional e depressão em profissionais da estratégia saúde da família do município de São Paulo”, coordenado por Paulo Rossi Menezes, professor titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e apoiado pela FAPESP.
Na amostra investigada foram contabilizados os seguintes percentuais de exposição à violência durante o exercício da atividade profissional nos 12 meses anteriores às entrevistas: insultos (44,9%), ameaças (24,8%), agressão física (2,3%), testemunhar violência (29,5%).
Segundo o coordenador, a ideia de fazer essa pesquisa começou a tomar corpo cerca de 10 anos atrás, a partir da observação pessoal de Andréa Tenório Correia da Silva.
“Na época, ela trabalhava como médica de família em uma equipe da ESF em São Paulo e percebeu que os agentes comunitários que participavam de sua equipe estavam muito estressados. Elegendo como tema a saúde mental desses profissionais, Andréa desenvolveu seu mestrado, com a minha orientação. No curso de sua pesquisa, usando um questionário padrão, percebemos, para nossa surpresa, que uma proporção muito grande apresentava sintomas de depressão e ansiedade. A partir disso, elaboramos o projeto, financiado pela FAPESP, que gerou o trabalho atual”, disse Menezes à Agência FAPESP.
A Estratégia de Saúde da Família é considerada, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um modelo de atenção primária à saúde para países de renda média ou baixa. No Brasil, seus 320 mil trabalhadores prestam assistência a mais de 118 milhões de pessoas espalhadas pelo território nacional. E um indicador de seu êxito é que ele vem sendo copiado por outros países, como a África do Sul e o Peru.
“O grande diferencial da ESF é que, além de atender nas unidades básicas de saúde (UBS), cada equipe vai às comunidades, faz visitas domiciliares e assume a responsabilidade pela saúde dos moradores de uma determinada região”, afirmou Menezes.
Mas esse contato íntimo com a população, que constitui o maior mérito da ESF, é também o fator que expõe seus profissionais a vários episódios de violência no trabalho.
“Durante as visitas à comunidade, pode ocorrer de os agentes do PSF serem insultados, ameaçados ou até agredidos pelas pessoas que vão atender, ou por outros moradores, que também fazem parte de sua clientela.
Além disso, é comum esses profissionais presenciarem cenas de violência praticadas contra terceiros”, informou o pesquisador.
Alvo de frustrações
Os motivos são fáceis de entender. Em um contexto conflituoso, com múltiplas causas para insatisfação, é comum que o descontentamento seja direcionado contra qualquer pessoa que ocupe posição associada com autoridade.
Embora os trabalhadores da ESF estejam lá para atender a população, eles podem se tornar eventualmente alvos das frustrações dessa mesma população.
“A variável ‘presenciar violência’ foi uma novidade incorporada por nossa pesquisa.
Foi, provavelmente, a primeira vez que se mediu essa variável em uma enquete sobre violências sofridas por profissionais de saúde”, disse Menezes.
Como constatou a pesquisa, essa exposição reiterada à violência pode levar a um quadro depressivo passageiro ou mesmo a uma depressão duradoura, de intensidade leve, moderada ou grave.
“Os critérios atuais utilizados para o diagnóstico de depressão, como, por exemplo, os adotados pela CID 10 (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), da Organização Mundial da Saúde, estabelecem uma tipologia com base na conjunção de uma série de sintomas, como alteração do humor, alteração do sono, alteração do apetite, dificuldade de concentração, sentimento de culpa, perda de autoestima ou pensamentos suicidas”, disse Menezes.
Esses critérios, ele sublinha, não classificam como sofrendo de depressão um grande número de indivíduos que apresentam sintomas mais leves ou em menor número, mas que interferem significativamente na vida dessas pessoas.
Como os trabalhadores da ESF são indivíduos “concretos” – sujeitos, portanto, a múltiplas determinações –, os pesquisadores procuraram isolar as causas decorrentes do estresse profissional de outros fatores de risco para depressão também comumente experienciados pela população.
“A população em geral está sujeita a episódios depressivos. E há evidências bem estabelecidas de que as mulheres têm mais chance de apresentar depressão que os homens, os adultos de idade intermediária mais do que os jovens ou os idosos, os solteiros ou separados mais do que os casados”, ele diz.
As pessoas com menor poder econômico também apresentam, proporcionalmente, mais depressão do que aquelas com maior poder econômico, assim como as pessoas com menor escolaridade, em comparação com aquelas com maior escolaridade, completa.
“Às condições de vida associa-se um fator importante, chamado ‘evento de vida estressante’, como a morte ou doença de um parente ou amigo, o fim de um relacionamento, a perda do emprego, ficar preso ou presa no alagamento durante as chuvas de verão etc. Quando fizemos nossa análise, nós isolamos o efeito desses outros fatores, para examinar especificamente a relação entre exposição à violência no trabalho e depressão”, explicou Menezes.
“Comparando com dados de um recente estudo sobre transtornos mentais na Grande São Paulo, o ‘São Paulo Megacity Mental Health Survey’, também financiado pela FAPESP, percebemos que a prevalência de transtornos depressivos entre os profissionais da ESF é praticamente o dobro daquela observada na população em geral. Ou seja, os profissionais de saúde estão com muito mais casos de depressão do que a população à qual eles têm que prestar cuidados”, ressaltou Menezes.
Segundo o pesquisador, a maioria dos entrevistados que apresenta sintomas de depressão ainda não foi diagnosticada e, portanto, não recebe cuidados de saúde adequados.
E uma das consequências desejáveis de seu estudo seria conscientizar os gestores dos serviços de saúde sobre a importância de elaborar programas de atenção à saúde mental desses profissionais.
A investigação, coordenada por Paulo Rossi Menezes, nomeada pelo acrônimo Pandora (de “Panorama of Primary Health Care Workers in São Paulo, Brasil”), gerou um grande volume de informações sobre condições de trabalho e saúde mental dos profissionais da ESF, e novas análises estão sendo realizadas, para auxiliar no desenvolvimento de programas e políticas para a saúde mental desses profissionais.