Tecnologia

O Império Nerd contra-ataca

A popularização da tecnologia acabou com anos de humilhação sofrida pelos nerds. E alguns deles se transformaram nos homens mais poderosos do mundo e causam inveja

Uma pausa no congresso do Chaos Computer Club alemão: o evento, um dos muitos dirigidos ao público nerd, reúne mais de 3.000 pessoas a cada ano (Sean Gallup / Getty Images)

Uma pausa no congresso do Chaos Computer Club alemão: o evento, um dos muitos dirigidos ao público nerd, reúne mais de 3.000 pessoas a cada ano (Sean Gallup / Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 17 de junho de 2011 às 17h14.

São Paulo -- A primeira coisa que a maioria das pessoas faz ao acordar é escovar os dentes, certo? Nem todas. Essa regra básica não é seguida, por exemplo, pelo comediante Rafinha Bastos. Ainda na cama, ele pega seu smartphone e se esconde embaixo das cobertas. É um jeito de não incomodar a mulher, Júnia, enquanto passa os olhos nas críticas e nos comentários postados pelos seus mais de 2 milhões de seguidores no Twitter durante a noite.

Mensagens checadas, só então o apresentador do programa CQC e de A Liga sai da cama, mas nunca da internet. Acessa os e-mails e a rede de microblogs quando tem uma brecha durante a gravação de programas e dos shows de stand-up comedy. Depois de uma longa jornada de trabalho, o dia termina da mesma maneira como começou — só que, nesta vez, sentado diante do computador em casa, onde checa pela enésima vez o que estão falando sobre (e para) ele nas redes sociais.

Eleito em março passado o tuiteiro mais influente do mundo pelo jornal americano The New York Times, à frente de personalidades como o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e o líder budista Dalai Lama, Rafinha Bastos, 34 anos, é viciado em internet e redes sociais. Seu lado nerd surgiu ainda na infância, quando passava horas na frente do videogame. Essa característica ficou ainda mais evidente há três anos, ao conhecer o Twitter. “Hoje tuíto até quando estou no banheiro”, disse Rafinha a INFO.

Mas não o imagine como aquele estereótipo do nerd, com óculos de lente fundo de garrafa e todos os diálogos de Guerra nas Estrelas na ponta da língua. Também não andava pelos corredores da escola com um bilhete “me chute” colado nas costas. Com a popularização das redes sociais, todos ganhamos um lado nerd. Do famoso comediante ao jogador de futebol consagrado, da VJ da MTV ao roqueiro, da chef de cozinha badalada aos membros da sua família. Nerds como Bill Gates, Steve Jobs, Mark Zuckerberg e, mais recentemente, Rafinha Bastos dominaram o mundo. Bem-vindo à era do poder nerd.

Conhecimento no topo

O bastão do poder passou por diferentes mãos ao longo da história. Na antiguidade, os homens que influenciavam a vida das pessoas eram os donos de terras. Tome como exemplo o imperador romano Júlio César. Nascido em 100 AC., conquistou um território que começava em Roma e ia até o Oceano Atlântico, passando pelo norte da África. Juntas, as terras somavam 2,75 milhões de quilômetros quadrados, dez vezes a área do estado de São Paulo, e abrigavam 60 milhões de pessoas.

Mais adiante, nos séculos 18 e 19, a revolução industrial fez com que o poder se transferisse para os grandes grupos econômicos. Um dos empresários que se beneficiaram com a mudança foi Henry Ford, fundador da montadora que leva seu nome. Produzindo veículos em série, a empresa virou uma das maiores fabricantes de carros do mundo. Agora, na era da informação, poder é sinônimo de conhecimento. “Qualquer cara com uma boa ideia pode conquistar o mundo”, diz Alexandre Ottoni, cofundador do site Jovem Nerd, uma espécie de ponto de encontro digital de quem gosta de cultura nerd.


A revolução causada pela popularização da tecnologia mudou a forma como os nerds são percebidos e até classificados. Antes, eles eram divididos em dois tipos: os nerds propriamente ditos, mais ligados a software, e os geeks, cuja paixão são os gadgets. Nos últimos anos surgiram ao menos mais três denominações. É o caso dos hipsters. De acordo com o dicionário criado pelo escritor americano Benjamin Nugent, autor do livro Nerd Americano: A História do Meu Povo, os hipsters usam óculos de aros grossos e camisetas justas, mas nem sempre são profundos conhecedores de um assunto, como jogos de RPG. Mais sociáveis do que o nerd clássico, só têm essa aparência porque querem parecer cool.

Há também o grupo dos dorks, que assumiram o posto de reis dos nerds. Além da fissura por tecnologia, gadgets, RPG e anime, eles costumam ter problemas de relacionamento e séria aversão a qualquer tipo de esporte. “Mas no futuro os nerds não serão mais interessados em eletrônica ou tecnologia de ponta”, afirma Nugent. “Vão mandar cartas em vez de e-mails, datilografadas em máquina de escrever.” Será?

O lado nerd de cada um

Com a ampliação do uso do termo, ficou mais fácil identificar o lado nerd de pessoas que aparentemente nada têm a ver com a cultura nerd. Veja o caso do nadador Cesar Cielo. A princípio, atletas não podem ser considerados nerds, certo? Errado. Mesmo populares, sociáveis e rodeados de amigos, eles têm, sim, seu lado geek. Cielo não desgruda de seu laptop. Quando não está treinando, saca da mala um PlayStation portátil. “Adoro jogar”, diz Cielo.

E roqueiro? Pode ser nerd? Experimente perguntar a Roger Moreira, vocalista do Ultraje a Rigor, e a resposta virá acompanhada da seguinte descrição: “Coleciono bonecos, séries, HQs e gadgets. Sou um nerd light, mas poderia ser muito mais se tivesse de escolher outra coisa para fazer que não a música. Sou um geek também. E acho que sou visto assim por outros nerds e geeks que sigo no Twitter”. Até o presidente Obama deixou aflorar sua porção nerd. Já foi fotografado com um sabre de luz, a arma dos Jedis e Siths de Guerra nas Estrelas, e é fã dos quadrinhos do Super-Homem.

Nerd assumido, daqueles que vestem camiseta do Debian, uma das versões mais populares do sistema operacional Linux, o engenheiro Eduardo Maçan, 36 anos, sonhava dar expediente em uma empresa do Vale do Silício. Criado numa fazenda em Santa Mariana, cidade de 12 mil habitantes no interior do Paraná, Maçan gastava boa parte do tempo livre assistindo televisão. Foi quando conheceu a ficção científica e a tecnologia. “Fiquei apaixonado por robôs, lasers e espaço”, afirma Maçan. Formado em engenharia da computação pela Universidade Estadual de Campinas, no interior de São Paulo, mudou-se para a capital e hoje é gerente de pesquisa e desenvolvimento do serviço de mapas Apontador.

A nerdice de Maçan, no entanto, não está restrita ao trabalho e à tecnologia. Ele é fã de Guerra nas Estrelas, coleciona réplicas de veículos de séries famosas, como Super Máquina, e tem guardado seu primeiro computador, um MSX. “Por que tentar ser como alguém que tem uma personalidade diferente da minha?”, diz Maçan. “Eu sempre digo para o meu filho ‘seu pai é nerd’.”


A virada

O estereótipo do nerd de óculos grandes, conhecedor profundo de assuntos espinhosos, com pouca ou nenhuma habilidade social e celibatário involuntário surgiu nos Estados Unidos, no início da década de 1930. Além dessas características pouco lisonjeiras, eles tinham em comum a paixão pela eletrônica e pela ficção científica. Naquela época, rádios e revistas com histórias de naves espaciais e as primeiras máquinas a válvula começavam a ganhar um público fiel. Seis anos depois, Hugo Gernsback, dono de uma editora dedicada a títulos sobre esses dois temas, criou uma seção para cartas na revista Amazing Stories (Histórias Incríveis). Surgia aí o primeiro fórum nerd do mundo.

O termo, no entanto, só seria cunhado alguns anos depois, com a publicação, em 1950, do livro If I Ran the Zoo (Se Eu Cuidasse do Zoológico). Nele, o escritor americano Theodor Seuss diz que teria no seu zoológico imaginário um nerd, bichinho esquisito, com cabelo desgrenhado e camiseta surrada. O substantivo passou despercebido até que, dez anos depois, começou a ser usado para descrever pessoas que sentiam prazer em estudar e tinham dificuldades na vida social.

A palavra nerd logo virou sinônimo de perdedor. Na escola, eles eram vítimas de bullying. Nos filmes, quem não se lembra das cenas em que alunos pouco populares eram arremessados contra os armários dos corredores pelos jogadores de futebol fortões do colégio? E dos foras que levavam das garotas? A virada teve início no final dos anos 1980, quando os produtos eletrônicos se tornaram febre no Japão. O Walkman, da Sony, revolucionou a forma como se ouvia música e vendeu milhões de unidades.

O dia do nerd

Nos Estados Unidos, despontava um garoto com muita intimidade com tecnologia e que se enquadrava perfeitamente no perfil nerd. Seu nome? William Henry Gates III, mais conhecido como Bill Gates. A empresa que ajudou a criar, a Microsoft, inventou o sistema operacional que permitiu que até pessoas sem conhecimento em programação conseguissem usar um computador. Mas a revolução definitiva viria em meados da década de 1990, com a popularização da internet. “Hoje estamos mais confortáveis com os computadores e os gadgets”, afirma Nugent. “Ficar na internet durante horas não é mais uma atividade nerd.”

A cultura nerd ficou tão pop que, em 2006, ganhou um dia próprio no calendário, o 25 de maio. Assim como os pais, as mães e os índios, os nerds também têm uma data para chamar de sua: o Dia do Orgulho Nerd. Ele foi criado para homenagear um dos mais cultuados e celebrados ícones da cultura nerd, a saga Guerra nas Estrelas, do diretor George Lucas. O filme Uma Nova Esperança, primeiro da série (que, hoje sabemos, é o quarto capítulo), chegou às telas de cinema dos Estados Unidos no dia 25 de maio de 1977. Na mesma data é comemorado o Dia da Toalha, que homenageia outro objeto de devoção dos nerds: a série de ficção científica Guia do Mochileiro das Galáxias, do autor britânico Douglas Adams. Para celebrar, fãs do mundo todo saem às ruas com uma toalha, símbolo do dia porque é um item importante para os mochileiros das galáxias e teve uma página toda dedicada a ela no livro.

Que a Força esteja com você

Funcionário da agência Fisher+Fala!, Rafael Fragoso, 34 anos, sabe bem o que é ter a vida invadida pela tecnologia. O paulistano passa o dia conectado à internet, seja no trabalho ou no smartphone. Acessa redes sociais, mas gosta mesmo de aplicativos para celular. Tem mais de 80 programas instalados no seu telefone com o sistema Android, do Google, e baixa todo tipo de app, de games a receitas culinárias. “Não estou nem aí se é de graça ou pago, vou logo baixando”, diz Fragoso. “Todo mês gasto uma grana com isso.”


Quando chega em casa, seu passatempo preferido são os jogos de tiro, como Call of Duty, e os quadrinhos Mad. Formado em design digital, Rafão, como é conhecido na agência, é um programador nato. Mas nem sempre foi assim. Na época em que descia a serra para surfar, desligava o celular e passava o dia na praia. Hoje, admite: não consegue mais viver longe da tecnologia. “Quem estiver fora do mundo dos gadgets e da internet será o novo nerd”, diz Rafão. “É o nerd da desinformação e da não-tecnologia.”

Humilhados durante muitos anos, os nerds sempre sonharam com o dia em que seu estilo de vida seria considerado cool. Esse dia chegou. Pergunte a qualquer um qual é hoje o modelo de homem de negócio e uma das respostas será Mark Zuckerberg. O fundador do Facebook ganhou esse status por sua popular invenção, que já conta mais de 660 milhões de usuários e que o transformou no bilionário mais jovem do mundo, e pelo sucesso do filme A Rede Social, que mostra a história de um nerd que se deu bem. “Depois do filme recebi muitas mensagens dizendo que minha história é inspiradora”, disse Zuckerberg ao programa 60 Minutes.

O filme é o mais recente exemplo de como a cultura nerd virou mainstream. A série The Big Bang Theory arranca risadas ao juntar um grupo de nerds hardcore com Penny, uma garçonete gostosa cujo sonho é entrar para o showbiz. O assunto também virou tema de um reality show nos moldes do Big Brother. Batizado de As Gostosas e os Nerds, o programa enclausurava numa mesma casa rapazes fanáticos por matemática ao lado de moças lindas e com corpos perfeitos, mas com QI um dedo abaixo da média.

Do basquete ao Twitter

O apresentador Rafinha Bastos faz parte da categoria dos nerds natos. Os indícios começaram cedo. Gaúcho de Porto Alegre, ele sempre foi apaixonado pelo videogame Atari. “Ficava oito horas tentando ver o que aconteceria se você fizesse 1 milhão de pontos num jogo, mas nunca dava em nada”, diz Rafinha. Na escola, se identificava com a turma dos garotos esquisitos e que tinham os boletins repletos de boas notas. Com uma diferença importante: por causa do senso de humor, sempre transitou bem entre todas as tribos. Nos anos 1990, Rafinha mudou-se para os Estados Unidos para tentar a sorte no basquete profissional. Foi lá que ligou a facilidade de criação e edição de vídeo com o poder de distribuição de conteúdo na internet. Montou a Página do Rafinha, site onde publicava suas piadas, e começou a fazer sucesso com sátiras de videoclipes.

Rafinha foi apresentado ao Twitter quase dez anos depois, por Marcelo Tas, seu colega de bancada no programa CQC, da Band, e fanático pelo microblog. Resolveu arriscar e gostou. Hoje, tuíta no intervalo do programa, na rua e até no banheiro. Muitos vão dizer que nem todos os posts são espontâneos. É verdade. Rafinha recebe até 4 mil dólares para escrever no Twitter algo que tenha ligação com uma empresa. Mas a relação do comediante com a internet vai além do microblog. No YouTube, divulga trabalhos e publica esquetes. Um deles, a série sobre os nojos específicos do seu cachorro Walmor, foi visto mais de 2 milhões de vezes. “Hoje é tão natural ter um lado nerd que esse nome vai acabar sumindo”, diz Rafinha.

O gene do nerdismo

Num mundo em que nerds ficam bilionários, o filme Transformers bate recordes de bilheteria e um iPhone é mais cobiçado do que um carro superesportivo, não surpreende o surgimento e o sucesso de produtos e eventos criados para os nerds. São festivais de música, como o Nerdapalooza, versão do Lollapalooza, ou a Campus Party, que reúne em São Paulo milhares de fanáticos por tecnologia. Mas o maior exemplo da popularização da cultura nerd é a Comic-Con. Criada em 1970, no início ela reunia centenas de pessoas para falar de HQs, ficção científica e séries de TV. Hoje, a feira está bem mais popular.


Em 2010, 140 mil pessoas passaram pelo pavilhão da Comic-Con, que passou a ser conhecida como o salão do automóvel da cultura pop. Durante o evento, estúdios de Hollywood apresentam novos projetos, como a adaptação para o cinema de clássicos dos quadrinhos, como Thor. O consumidor nerd também desperta o interesse das empresas. A fabricante de GPS TomTom, por exemplo, permite baixar a voz de personagens famosos de Guerra nas Estrelas, como Darth Vader e Mestre Yoda, para guiar os motoristas pelas ruas. “À esquerda você deve se manter”, diz a voz do baixinho Yoda para o motorista, na frase com gramática invertida que marcou o personagem.

Um nerd um século atrás?

A história é repleta de nerds considerados gênios que se dedicaram aos estudos para criar produtos e serviços extraordinários. Alguns são conhecidos, como o físico Albert Einstein (criador da teoria da relatividade), o escritor J.R.R. Tolkien (autor de O Senhor dos Anéis) e Steve Wozniak (cofundador da Apple e inventor do primeiro computador pessoal). Mas poucos se lembram de um engenheiro chamado Nikola Tesla. Nascido na Sérvia em 1856, ele transformou em realidade uma ideia que mudaria o mundo: a corrente alternada. Sem ela, não seria possível ter eletricidade em casas, o que inviabilizaria o uso de computadores e telefones celulares. Sua contribuição é tão importante que a montadora Tesla Motors, primeira a vender um carro elétrico em escala comercial, adotou esse nome para homenageá-lo. Dono de uma personalidade excêntrica, Tesla era desacreditado por conta de suas ideias malucas sobre ciência e tecnologia. O preconceito fez com que se isolasse e morresse aos 86 anos, pobre.

É difícil determinar o que faz um nerd ser um nerd. Alguns estudiosos acreditam que existe um componente genético. Ou seja, ter gosto pelos estudos, paixão por tecnologia e ser fã de HQ passaria de geração para geração. “Mas existe uma grande influência da família”, afirma Luciana Ruffo, psicóloga do Núcleo de Pesquisa da Psicologia e Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Uma família que não privilegia os estudos e que arrasta as crianças para praticar esportes no clube nunca terá um filho nerd.” Com o recente sucesso de empreendedores como Zuckerberg, Biz Stone, Dennis Crowley e tantos outros, a tendência é que, num futuro bem próximo, o filho nerd seja o orgulho da família. Por isso, não importa que tipo de nerd é você. A hora é de comemorar. Pela primeira vez, as pessoas estão se espelhando no seu estilo de vida.

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