Tecnologia

Não foi para salvar o planeta que a Apple cortou o carregador; entenda

Iniciativa de não enviar carregadores para reduzir emissões de carbono é contraditória com outros produtos, que frequentemente demandam adaptadores.

Carregadores da Apple: empresa envia carregadores há anos para os consumidores. Dos 4 presentes nesta foto, nenhum é compatível com o cabo que a empresa está enviando com os iPhones (Thiago Lavado/Exame)

Carregadores da Apple: empresa envia carregadores há anos para os consumidores. Dos 4 presentes nesta foto, nenhum é compatível com o cabo que a empresa está enviando com os iPhones (Thiago Lavado/Exame)

Lucas Agrela

Lucas Agrela

Publicado em 15 de outubro de 2020 às 07h00.

Última atualização em 16 de outubro de 2020 às 11h07.

O anúncio de novos iPhones pela Apple é sempre grande notícia no mundo da tecnologia. Mas o choque de realidade da apresentação do iPhone 12 veio não pela inclusão de uma nova tecnologia, mas pela remoção dela.

A empresa anunciou que não mais enviará carregadores de parede, nem fones de ouvido, nas caixas dos aparelhos. Isso vale tanto para os novos modelos quanto para os que permanecem no portfólio da empresa — versões novas de iPhones antigos, como XR e 11, já estão sendo enviadas sem esses acessórios.

A mudança veio trajada de verde. De acordo com a Apple, há 2 bilhões de adaptadores disponíveis nas casas dos usuários, além de 700 milhões de fones de ouvido com entrada lightning (nome dado à entrada proprietária que a Apple inclui nos iPhones). A redução de espaço significaria caixas menores, mais iphones por containers, menos espaço tomado na logística. O impacto final, dados da empresa apontam, seria equivalente a menos 450.000 carros nas ruas todos os anos.

O problema é real: de acordo com dados do Monitor de E-Waste Global, 53,6 milhões de toneladas métricas de lixo eletrônico foram produzidos no mundo em 2019, um número que só deve aumentar na próxima década. Em 2030, é esperado que a humanidade produza o dobro de lixo eletrônico que produziu em 2014.

A decisão até que faz sentido. Há um legado da Apple de 8 anos enviando carregadores e cabos que ainda funcionam com os celulares lançados nesta terça e a fabricante é a que tem os consumidores mais fiéis — ou seja, muita gente que já tem um iPhone provavelmente está municiado de carregadores e fones, que tendem ao fundo das gavetas. Além disso, o fato dribla os diferentes padrões de tomada existentes ao redor do mundo e a necessidade de fabricação de diferentes modelos.

O verde morre na praia

Mas o sentido por trás do anúncio acaba quando analisa-se o grosso dos produtos da empresa. O apelo verde morre na praia já com a existência do Lightning. Concorrentes, principalmente nos modelos topo de linha, estão há anos enviando smartphones com entradas do tipo USB-C, compatíveis com mais fones de ouvido, carregadores e cabos. A Apple trabalha com esse tipo de entrada em alguns de seus produtos, como iPads Air e Pro, além dos Macbooks.

Por que não enviar smartphones com uma entrada amplamente disponível no mercado se o objetivo é reduzir o lixo eletrônico? Se o foco é reduzir emissões por que permitir que usuários precisem de dois cabos diferentes para carregar um iPad e um iPhone?

Por que não fazer isso com o longo histórico de adaptadores, “dongles” e uma série de outros equipamentos que a empresa vende para que donos de laptops possam ter conectividade?

No final, é possível carregar um Samsung, um Chromebook e um iPad com um mesmo cabo, mas o iPhone não. Isso sem tocar no ponto que novos iPhones serão enviados com um cabo do tipo USB-C para Lightning, um padrão que a empresa só começou a enviar nos carregadores de 2019, diminuindo a prevalência desses acessórios para muito abaixo dos 2 bilhões anunciados pela fabricante.

Usuários que precisarem do novo modelo, que é compatível com os cabos que a empresa agora envia em todos os smartphones, precisarão colocar a mão no bolso para comprar um produto adicional, com embalagem, envio e lixo adicionais.

“A verdade é que a Apple é mestre em vender gadgets adicionais”, afirma Arthur Igreja, especialista em tecnologia e inovação e professor convidado da FGV. “Hoje, quem compra um Mac não consegue fazer nada com ele sem adquirir adaptador para HDMI e USB, por exemplo.”

Durante a WWDC 2019, a última conferência de desenvolvedores da empresa realizada fisicamente em San José, na Califórnia, sobravam adaptadores para cabos ethernet nas mesas e nos computadores dos participantes do evento.

Para Renato Meireles, analista de mercado da consultoria IDC, é preciso levar em consideração que componentes, como tela, memória e acessórios, têm um custo para fabricantes de dispositivos móveis. “Até que ponto isso está relacionado a uma estratégia específica em questões ambientais e até que ponto isso reflete um planejamento de custo e margem em relação ao preço praticado do produto no mercado?”, disse. 

Os novos iPhones foram lançados por valores semelhantes aos do ano passado, com alguns modelos tendo preços mais altos. Em países como o Brasil, fortemente impactado pela desvalorização de moeda, os preços dos modelos lançados no ano passado subiram.

A Apple tem um marketing forte voltado para sustentabilidade. Frequentemente, a empresa afirma que substitui componentes como PVC por resíduos menos tóxicos, ou mesmo que utiliza materiais recicláveis na composição de novos aparelhos.

Recentemente, a empresa até se envolveu em um processo legal contra uma companhia no Canadá que deveria reciclar dispositivos da marca, mas que, na realidade, estava recauchutando os aparelhos e vendendo no mercado paralelo. A Apple acionou a empresa na Justiça.

“Sabemos bem que [o discurso] envolve redução do custo de produção, fabricação de menos itens e aumento de margem. É mais um argumento conveniente da marca”, afirma Igreja, da FGV.

É, sim, importante reduzir a fabricação de eletrônicos que viram, invariavelmente, lixo eletrônico. Mas a Apple tem um longo histórico para olhar se quiser mesmo solucionar esse problema.

 

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