Tecnologia

Código falado

O programador Lucas Radaelli, deficiente visual, se guia por áudio para criar linhas de código no Google

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Da Redação

Publicado em 12 de janeiro de 2015 às 14h22.

“Ai meu Deus! O que é que eu vou fazer com você agora?” O paranaense Lucas Radaelli havia se mudado há apenas duas semanas para Belo Horizonte quando ouviu a pergunta da atendente de um restaurante. Parado na porta, segurando a coleira de Timmy, seu cão-guia da raça labrador, ele apenas deu risada e respondeu: “Bom, eu cheguei aqui sozinho, então você pode me dar uma ficha, por favor”. Com paciência, bom humor e sotaque puxado no R, Radaelli já aprendeu a lidar com as diferentes reações das pessoas diante de um deficiente visual. O espanto da atendente não é nada perto das reações que ele presencia quando diz com o que trabalha. 

Aos 23 anos, Lucas Radaelli tem acesso a um dos segredos mais bem guardados do Google. Como engenheiro do time de Search da empresa, ele atua diretamente no mecanismo de buscas, a ferramenta utilizada mais de 3 bilhões de vezes por dia no mundo. Seu trabalho é analisar e modificar esses complexos algoritmos para garantir os melhores resultados sempre que uma palavra, em qualquer idioma, for colocada na caixa de pesquisa. A tarefa requer concentração, conhecimento técnico e capacidade para resolver problemas complexos, todas qualidades que Radaelli possui, apesar de não enxergar nenhuma linha de código. 

“Tive descolamento de retina e fiquei cego quando era criança. Não me lembro de muita coisa, mas minha mãe diz que eu sabia identificar algumas cores”, diz ele, sentando em sua mesa de trabalho. Formado em ciência da computação na Universidade Federal do Paraná, Radaelli é um dos 100 engenheiros do time do Google em Belo Horizonte, o único escritório da empresa na América Latina a ter uma equipe de desenvolvimento. Assim como seus colegas, ele passa o dia com fones de ouvido, digitando freneticamente no desktop Windows ou em um dos dois notebooks, Mac e Linux, em sua bancada. “Uso as mesmas coisas que outros engenheiros: um navegador para a internet e um editor de texto  para os códigos. A única diferença é que, por cima deles, uso leitores de tela.” 

Os leitores ditam para ele tudo o que aparece no computador ou no celular. Comandos no teclado ajudam a especificar o que ele quer saber. É possível ler uma janela de um site, por exemplo, ou o título do resultado de cada busca feita no Google. “Posso navegar por eles até chegar ao resultado que procuro e então dar um comando para ler a descrição do texto”, diz Radaelli. “É assim que funciona também com programação. Eu leio linha por linha, pulo para a próxima, volto.”

A voz robotizada do software está ajustada para uma velocidade de 700 palavras por minuto em português, e 500 por minuto em inglês. Para ter uma ideia de quão rápido isso é, em uma conversa normal, uma pessoa fala, em média, 180 palavras por minuto. Simultaneamente, Radaelli ouve música enquanto trabalha. De seus fones saem dois sons distintos, o dos softwares de leitura e o de bandas de rock pesado, como Amon Amarth.  Complicado? “É questão de costume”, diz. 

Basicamente, as ferramentas de leitura permitem que ele consuma em áudio a mesma informação que seus colegas têm na tela do computador. Seria como baixar o audiobook de um livro, porém com uma história milhões de vezes mais complexa. “No Google, temos componentes  de ranking que variam de centenas de linhas de código a dezenas de milhares de linhas ”, diz Bruno Possas, engenheiro-chefe de buscas. Para propor alguma alteração ou adicionar um novo elemento ao código, é preciso entender antes em detalhes como esses componentes funcionam. 

“Programar está ligado ao conceito de abstração”, diz Radaelli. “As pessoas imaginam coisas em até três dimensões. Com quatro ou mais,  não tem como imaginar a forma como esses espaços vão se relacionar. Acho que sou bom em abstração. Não penso conceitos de imagem, penso na lógica.” Além dos programas de leitura, a única coisa que diferencia o engenheiro de seus colegas na rotina de trabalho é Timmy, que passa o dia em uma cama de cachorro a seu lado. “O Lucas se mostrou tão eficiente quanto qualquer outro engenheiro do meu time”, diz Possas.  

Fora da bancada, no entanto, o escritório precisou passar por adaptações para receber um deficiente visual. Placas em braile foram colocadas nas portas dos banheiros e em equipamentos da sala de ginástica, como a esteira. Na hora do almoço, o chef do restaurante ajuda Radaelli a montar um prato. Latas de suas bebidas preferidas também são colocadas deitadas nas geladeiras, para que ele possa identificá-las. Mas nem tudo sempre dá certo. “Outro dia, inverteram as prateleiras em que ficam as barras de chocolate e peguei uma daquelas ruins de soja. Que decepção quando fui comer”, diz.  

A organização e a sinalização são essenciais para que o deficiente visual possa manter sua independência. Na rua, a falta de semáforos sonoros é uma grande barreira mesmo para aqueles que têm um cão-guia como Timmy. Mas talvez uma das maiores dificuldades de quem não enxerga seja o acesso a conteúdo, em especial, materiais de estudo. Durante a escola e a faculdade, por exemplo, Radaelli contou com a ajuda de colegas e professores para ler aquilo que não estava disponível em braile, em áudio ou em formato digital. Antes de ganhar seu primeiro notebook, aos 9 anos, ele dependia do pai para traduzir as lições feitas em braile para que pudessem ser corrigidas pela professora. 

Radaelli estudou em colégios de Cascavel, cidade de 260 000 habitantes no Paraná. Também frequentou um centro de apoio à tarde para aprender o que não conseguia pegar na sala de aula, como geometria.  No colegial, conheceu um professor com um novo método de ensino para deficientes visuais. O sistema Multiplano, criado por Rubens Ferronato, é uma tábua com furos, pinos e elásticos usada para criar formas geométricas tridimensionais. “Comecei a ter aulas com ele uma vez por semana para fazer exercícios de Olimpíada de matemática. Me diverti muito e acabei desistindo de prestar faculdade de direito”, diz.

Em 2012, quando cursava ciência da computação, ganhou uma bolsa de estudos da faculdade e passou seis meses em um intercâmbio em Karls-ruhe, na Alemanha. Lá, além de estudar, viajou para países como Suíça, Irlanda e Portugal. Quando voltou para o Brasil, entrou em contato com o Google interessado em uma vaga no escritório mineiro. “Nosso critério foi exatamente o mesmo usado em todas as entrevistas. Só fizemos adaptações no processo”, afirma Berthier-Ribeiro Neto, diretor de engenharia do Google para a América Latina e chefe do escritório.

Para entrar no time de engenharia, todo candidato passa por pelo menos cinco entrevistas presenciais em que são avaliadas habilidades teóricas e práticas em programação e capacidade para resolver problemas. Normalmente, candidatos e entrevistadores escrevem códigos em uma lousa branca ou em um pedaço de papel. Radaelli pôde levar seu computador. “O Lucas foi contratado porque atingiu nossos critérios. Mas ele tinha bons indicadores que nos faziam acreditar que ele se encaixaria aqui”, diz Brian Zaki, gerente de recrutamento do Google. “Quando um candidato passa no nosso processo, ele pode ser brilhante em muitos aspectos. Mas ainda não conseguimos saber tudo sobre ele na avaliação. Será que ele é determinado? Esforçado? Nesses pontos, o Lucas já tinha se destacado. Ele superou muitos obstáculos.” 

Desde o início do ano, Radaelli mora sozinho em Belo Horizonte em um prédio a 20 metros do escritório. Além do trabalho, ele pratica pilates, faz aulas de violino e pretende retomar o curso de alemão. Nos fins de semana, sai com os amigos ou viaja para Curitiba para visitar a família e a namorada, com quem está há dois anos. “As pessoas com deficiência costumam ser encaixadas em dois patamares: o de coitado ou o de herói. Não gosto de nenhum deles”, diz. “Não sou exemplo de superação. Superação é quando você passa por uma coisa e ela acaba. Isso é algo que a gente tem de conviver todos os dias. Além do mais, não sou o único que faz isso.” 

Lucas Radaelli integra o grupo Cegos Programadores, que tem hoje 165 cadastrados. Ele reúne deficientes visuais de todo o Brasil que trabalham, estudam ou têm interesse na área de tecnologia. “A maior procura no grupo é de pessoas que estão iniciando a faculdade de análise de sistemas ou ciência da computação”, diz Alexandre Santos Costa, 36 anos, um dos moderadores. Costa nasceu com glaucoma congênito, mas durante muito tempo manteve parte da visão. Há sete anos ficou cego. “Tive de me readaptar e trabalhar com leitores de tela. Hoje, me considero tão produtivo quanto quando enxergava”, diz ele, que é analista de sistema sênior no banco Itaú, em São Paulo. Para chegar ao trabalho, Costa pega todos os dias ônibus, metrô e trem.  Nos fins de semana, além de visitar a noiva no Rio de Janeiro, faz mixagens como DJ. “Cegos fazem qualquer coisa. A gente só faz de forma diferente”, diz.

Costa e Radaelli são hoje dois dos mais conhecidos palestrantes no país sobre acessibilidade na área de tecnologia. Fora do Brasil, outros engenheiros com deficiência visual também falam abertamente sobre seu trabalho. 

O indiano T. V. Raman, por exemplo, é pesquisador do Google Research na Califórnia. O alemão Marco Zehe, da Fundação Mozilla, mantém um blog para ajudar desenvolvedores com soluções de acessibilidade. “Sabe por que eu acho legal falar que sei programar?”, diz Radaelli. “Porque talvez, algum dia, um recrutador de empresa possa ler sobre mim e perceber que um deficiente visual pode, sim, trabalhar com programação. É o mesmo caso da atendente do restaurante. Hoje, se eu voltar lá, ela sabe que pode simplesmente me entregar uma ficha.”  

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