Mosquito Aedes aegypti: objetivo era multiplicar o vírus e compartilhar com grupos do Brasil e do exterior que planejavam estudá-lo (Thinkstock/Damrongpan Thongwat)
Da Redação
Publicado em 29 de janeiro de 2016 às 09h57.
Vestida como uma cirurgiã, a pesquisadora Stella Melo trabalhava em total silêncio em um laboratório de biossegurança da Universidade de São Paulo (USP) na tarde da sexta-feira 11 de dezembro.
No interior de uma cabine na qual só circula ar filtrado, ela semeava células de rim de macaco em garrafas plásticas contendo um líquido rosado nutritivo.
Embora usasse máscara, evitava falar para não correr o risco de contaminar o material.
Dias mais tarde aquelas células serviriam para reproduzir o vírus Zika, um agente infeccioso que por décadas foi considerado inofensivo e agora assusta o Brasil e o mundo porque, suspeita-se, está associado ao nascimento de bebês com o cérebro menor que o normal, um problema sem cura conhecido como microcefalia congênita.
Na quinta-feira seguinte, dia 17, a virologista Danielle Leal de Oliveira usou parte das células preparadas por Stella para iniciar a cultura de Zika e anunciou em um e-mail: “Inoculei os vírus hoje. Estamos de dedos cruzados para ver se eles crescem”.
Danielle e Stella integram a equipe do virologista Edison Durigon no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e trabalhavam duro para replicar as amostras de Zika recebidas do Instituto Evandro Chagas, no Pará.
O objetivo era multiplicar o vírus e compartilhar com grupos do Brasil e do exterior que planejavam estudá-lo. Interessados não faltavam.
Desde que o Zika ganhou importância mundial em novembro com os casos de microcefalia, o virologista Paolo Zanotto, colega de Durigon e seu vizinho de sala na USP, não pensa em outra coisa a não ser conter o vírus.
Especialista em evolução dos flavivírus, o grupo a que pertence o Zika, Zanotto sabe que é grande o risco de o vírus se espalhar pelo país – em especial pelo estado de São Paulo, onde se encontra disseminada a população urbana de seu transmissor, o mosquito Aedes aegypti. Ele sabe também que só há chance de conter o Zika com um esforço coordenado de pesquisadores, poder público e população.
Por essa razão, ainda em novembro, Zanotto iniciou a mobilização de virologistas, epidemiologistas, médicos e entomologistas de São Paulo e do exterior para estudar tudo o que for possível sobre o Zika.
No final de dezembro, 32 grupos paulistas (quase 300 pesquisadores) já haviam aceitado integrar essa rede de investigação do vírus – que recebeu o nome informal de Rede Zika – e vários aguardavam amostras de vírus do laboratório de Durigon para iniciar as pesquisas.
Essa pronta reação foi possível porque, no passado, a FAPESP apoiou a criação de laboratórios de virologia em todo o estado de São Paulo que mantiveram forte interação entre si.
Muitos deles detêm projetos temáticos ou auxílios regulares financiados pela Fundação e, para reativar o trabalho coletivo do grupo, a FAPESP concedeu pequenos aditivos aos projetos já existentes. Esses aditivos somarão cerca de R$ 550 mil e permitirão complementar o trabalho que já está sendo realizado.
Jean Pierre Peron é neuroimunologista e, entre outras coisas, estuda em seu laboratório na USP inflamações no cérebro provocadas pelo sistema de defesa do próprio corpo.
Ele é um dos que aderiram à Rede Zika e está com sua equipe preparada para começar ao menos dois experimentos. Em um deles, Peron planeja injetar o vírus diretamente no cérebro de camundongos, com dois objetivos. O primeiro é deixá-lo se multiplicar e gerar mais amostras para suas pesquisas e a de outros grupos. O segundo, e mais importante, é verificar se o próprio vírus lesa o cérebro ou se os danos decorrem de um ataque exacerbado do sistema de defesa contra o Zika.
Imagens do cérebro de bebês que nasceram com microcefalia e são filhos de mães possivelmente infectadas por Zika na gravidez em geral mostram pequenos círculos brancos bem próximos uns dos outros, como as contas de um colar.
Segundo neurologistas, são sinais de calcificação, uma espécie de cicatriz que se forma em áreas lesadas do cérebro e ocorrem também em bebês cujas mães tiveram infecção por citomegalovírus ou toxoplasmose na gestação. No caso do Zika, não se sabe se essas calcificações são provocadas pelo vírus ou são uma lesão secundária, resultado de um superataque das células de defesa ao invasor.
Também não se sabe ainda como o vírus chega ao cérebro, como foi observado em um bebê do Ceará que nasceu com microcefalia e morreu minutos após o parto.
Foi a partir de amostras de vários tecidos dessa criança que o virologista Pedro Vasconcelos e sua equipe conseguiram isolar no Evandro Chagas, centro nacional de referência em virologia, as amostras de Zika enviadas para São Paulo. A suspeita principal é de que o vírus – assim como outros dos quase 60 da família Flaviviridae, a mesma do vírus da dengue e da febre amarela – se desenvolva melhor em células do sistema nervoso.
Um segundo experimento planejado por Peron pode ajudar a confirmar a preferência do Zika por células do tecido cerebral e a traçar o caminho percorrido pelo vírus até o sistema nervoso central.
Ele e sua equipe estão prontos para inocular o vírus em camundongos fêmeas prenhes e acompanhar o que ocorre com os fetos. “Isso vai permitir verificar se o vírus chega até o cérebro dos fetos e se causa lesão, morte ou microcefalia”, disse Peron em uma visita ao laboratório de Durigon na tarde em que Stella preparava as células para multiplicar o Zika.
O trabalho de Peron com os roedores deve ser complementado pelos experimentos da bióloga Patrícia Beltrão Braga com células humanas. “A primeira coisa que precisamos saber é se, de fato, o vírus infecta células humanas do sistema nervoso e qual tipo de morte celular ele provoca”, diz Patrícia.
Com base nas informações que circulam entre os pesquisadores e na extrapolação do que se conhece sobre outros flavivírus, o Zika deve invadir as células do tecido cerebral, mas ainda não se sabe quais nem como.
Essa informação pode no futuro orientar os médicos sobre qual terapia adotar para tentar conter o vírus ou os danos que ele pode causar – por ora, no entanto, ainda não há medicamento seguro para combater o Zika.
Patrícia deve analisar os efeitos do vírus sobre células humanas usando uma tecnologia inovadora. Ela vai usar células-tronco adultas extraídas do dente de leite de crianças e reprogramá-las quimicamente para se transformarem em células mais versáteis, capazes de originar diferentes tecidos. Cultivadas em uma matriz tridimensional, essas células, ao receberem os estímulos químicos certos, originam os diferentes tipos de células do sistema nervoso central e se organizam em camadas, como se fossem cérebros microscópicos – alguns têm o tamanho da cabeça de um alfinete.
Patrícia planeja infectar os minicérebros com o Zika e acompanhar as alterações que surgirem. “Minha ideia é avaliar se o vírus prejudica o crescimento das células, a produção de proteínas e a formação de sinapses, que são as conexões entre os neurônios”, diz.
“Acredito que os minicérebros devem permitir termos uma resposta rápida para algumas questões”, conta a pesquisadora, que participou da primeira reunião da Rede Zika no início de dezembro. Até aquele momento o Ministério da Saúde havia registrado a presença do vírus em 18 estados, principalmente no Nordeste, onde foram identificados os primeiros casos. E o vírus podia avançar mais.
Uma das dificuldades de planejar ações eficientes para conter o vírus é que ainda não se conhece seu padrão de circulação na população brasileira – nem em outras populações.
Ninguém sabe com precisão quantas pessoas já foram infectadas no país nem quantos casos novos surgem por mês. Também não há dados sobre a taxa de infecção dos mosquitos e a sua eficiência em transmitir o vírus pela picada.
“Com essas informações, poderíamos calcular a capacidade de a infecção se espalhar”, conta o epidemiologista Eduardo Massad, da Faculdade de Medicina da USP, que aderiu à rede.
Um modo de começar a conhecer essas variáveis é registrar os casos de infecção em tempo real, para ver como evoluem no tempo e no espaço.
Uma das ferramentas necessárias para isso seria um teste de laboratório confiável para identificar infecções antigas por Zika e saber por onde o vírus já passou e quando.
A forma atual de fazer esse rastreamento é por meio de exames sorológicos, que detectam anticorpos contra o vírus no sangue. Esse tipo de teste permite saber se uma infecção é antiga ou recente, mas não funciona bem no caso do Zika. É que os anticorpos contra ele são semelhantes aos gerados contra os vírus da dengue, que ocorre em quase todo o país.
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