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Com bicicletas vandalizadas, a China se pergunta: “Onde erramos?”

Alguns dizem que o abuso das bicicletas reflete uma mentalidade de cada um por si, que tem suas raízes na extrema pobreza da China do século passado

Bicicletas em Pequim: há mais de 16 milhões de bicicletas compartilhadas nas ruas das cidades já congestionadas da China (Gilles Sabrie/The New York Times)

Bicicletas em Pequim: há mais de 16 milhões de bicicletas compartilhadas nas ruas das cidades já congestionadas da China (Gilles Sabrie/The New York Times)

LA

Lucas Amorim

Publicado em 13 de setembro de 2017 às 19h17.

Última atualização em 13 de setembro de 2017 às 19h19.

Pequim O mecânico de Pequim Liu Lijin geralmente não presta muita atenção às boas maneiras. Ele não se importa quando as pessoas ouvem música alta e passeia pelos becos perto de sua casa com uma regata manchada de graxa. Mas recentemente, quando um estranho abandonou uma bicicleta nos arbustos em frente à sua porta, Liu ficou furioso.

Segundo ele, startups inundaram a cidade com bicicletas compartilhadas, e as pessoas as deixam por todo o lado sem pensar nos outros moradores. “Não há mais sensação de decência. Nós nos tratamos como inimigos”, afirmou, pegando a bicicleta descartada e levando-a ao ar com raiva.

Atualmente, há mais de 16 milhões de bicicletas compartilhadas nas ruas das cidades já congestionadas da China, graças a uma feroz batalha pela participação de mercado travada entre mais de 70 empresas que lutam por um total de mais de 1 bilhão de dólares em financiamento. Essas startups remodelaram a paisagem urbana, colocando bicicletas equipadas com GPS e fechaduras digitais em quase todos os cantos, algo com o qual o Vale do Silício apenas sonha.

Mas sua popularidade foi acompanhada por uma onda de mau comportamento. Como as startups não usam estacionamento fixos, os ciclistas abandonam as bicicletas ao acaso ao longo das ruas e praças públicas, atrapalhando o trânsito e enchendo as calçadas. Os ladrões levam dezenas de milhares, tanto para uso pessoal quanto para venda de peças. Os vândalos, irritados ou maliciosos, penduram as bicicletas em árvores, enterram-nas em locais de construção e as jogam em lagos e rios.

Tais problemas levantaram questões sobre a sustentabilidade do boom da bicicleta na China. Mas a questão também levou muitos chineses a procurar explicações mais profundas e a se perguntar se o compartilhamento de bicicletas revelou falhas de caráter nacionais, levando a um amplo debate sobre a decadência social e o declínio do decoro e da moral no país.

“Olhamos para nós mesmos e perguntamos: ‘O que há de errado com a nação chinesa, o povo chinês?'”, disse Xu Qinduo, comentarista político da China Radio International. Muitas pessoas estão orgulhosas das conquistas econômicas do país e da crescente influência global, acrescentou, mas preocupam-se com a falta de um forte senso de moral.

Alguns dizem que o abuso das bicicletas reflete uma mentalidade de cada um por si, que tem suas raízes na extrema pobreza da China do século passado. Outros estão incomodados pelo que veem como uma falta de preocupação com o próximo e com recursos públicos. As transgressões foram relatadas nas notícias locais com um tom de descrença, em parte porque os chineses em geral se veem como uma sociedade respeitadora da lei, e as taxas de criminalidade são relativamente baixas.

Em alguns lugares, as autoridades confiscaram dezenas de milhares de bicicletas e impuseram restrições de estacionamento. Os meios de comunicação documentam o desperdício com imagens surpreendentes de montanhas de bicicletas coloridas, cada tom representando uma empresa de bicicletas diferente.

Funcionários municipais também estão lidando com diferentes tipos de vandalismo, que vão de destruir os cadeados até incendiar a bicicleta por inteiro. Algumas das destruições foram atribuídas a moradores irritados com as bicicletas enferrujadas que se acumulam em seus bairros. Mas, em várias cidades, a polícia também citou motoristas de tuk-tuk e táxis descontentes com o compartilhamento de bicicletas, que atrapalhou seus negócios.

“É uma batalha todos os dias. É da natureza humana não cuidar”, disse Ke Jin, um guarda de segurança de um complexo residencial no nordeste de Pequim, enquanto abria um caminho que havia sido bloqueado por uma pilha emaranhada de bicicletas azuis e amarelas.

Nas mídias sociais e nas conversas, é comum ouvir as pessoas descreverem o compartilhamento de bicicletas como um “espelho de revelar monstros” que expôs a verdadeira natureza do povo chinês. Nesse sentido, é o último capítulo em uma linha de introspecção crítica que começou antes da Revolução Comunista, quando o famoso escritor Lu Xun atacou a cultura chinesa como egoísta, orgulhosa, servil e cruel.

Grande parte da discussão girou em torno do conceito chinês de suzhi, ou qualidade interna, que pode abranger comportamento, educação, ética, intelecto e o gosto de uma pessoa. Os chineses geralmente apontam “suzhi baixo” quando criticam os maus hábitos ou costumes dos outros e vêm lamentando o déficit de suzhi na sociedade chinesa há gerações, às vezes argumentando que não podem ser confiáveis nas eleições porque seu suzhi é muito baixo.

Os executivos de tecnologia que trabalham na economia de compartilhamento e dependem do bom comportamento para obter lucro estão agora entre os críticos mais proeminentes.

Uma startup, a 3V Bike, foi forçada a fechar em junho, depois que quase todas as suas mil bicicletas foram roubadas nas ruas de cidades pequenas. Em entrevistas à imprensa chinesa, o fundador da empresa, Wu Shenghua, culpou em parte o “suzhi pobre” do público por levar a empresa a abandonar os negócios.

Outros argumentaram que o roubo e o vandalismo das bicicletas haviam sido relatados com exageros, que alguma desordem era esperada com a inovação e que o mau comportamento seria pior em outros países.

Hu Weiwei, fundador e presidente da Mobike, um dos mais populares aplicativos de compartilhamento de bicicletas na China, disse que os benefícios das bicicletas compartilhadas superaram grandemente os inconvenientes, apontando reduções nas emissões de carbono e melhorias no tráfego.

A Mobike projetou um sistema de pontos para punir delitos como deixar uma bicicleta no meio de uma estrada, e Hu revelou que esperava que os problemas desaparecessem à medida que as empresas se tornassem melhores no incentivo ao bom comportamento. “Um bom sistema pode trazer à tona a boa vontade e os valores morais das pessoas”, disse ela.

Yunxiang Yan, antropólogo e diretor do Centro de Estudos Chineses da UCLA, disse que as raízes da China como uma sociedade agrícola tornaram as pessoas mais dependentes de um pequeno círculo de parentes e amigos e que elas confiam menos em estranhos. Como resultado, ele explicou que muitas pessoas não veem o propósito da propriedade pública e são céticas sobre as regras comunitárias.

“As propriedades públicas são vistas como algo sem proprietário, portanto, as pessoas acreditam que podem tirar proveito delas”, revelou.

Mas Yan afirma que o sucesso geral da troca de bicicletas sugere que a confiança mútua está crescendo na China.

Alguns cidadãos formaram grupos de voluntários para assumir a causa da promoção do bem comum.

Zhao Qi, 23 anos, é um arquiteto que gasta muito do seu tempo livre como “caçador de bicicletas”, percorrendo as ruas de Pequim em busca das vandalizadas e dos ciclistas mal comportados.

Zhao disse que estava motivado em parte pelo patriotismo. A China tem se esforçado há anos para desenvolver produtos tecnológicos que sejam sucesso no exterior. Muitos agora veem uma promessa no compartilhamento de bicicletas, com a mídia nacional afirmando que esta é uma das quatro grandes invenções modernas da China, fazendo uma comparação com as invenções antigas de pólvora, papel, impressão e bússola.

“Este é um símbolo do orgulho nacional, um presente da China para o mundo. Não podemos estragar tudo”, disse Zhao.

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