Tecnologia

A Twitch inventou o livestreaming. Agora precisa provar que ele dá dinheiro

Onze anos após ser comprada pela Amazon por US$ 970 milhões, plataforma enfrenta novos competidores — e ainda busca o caminho da lucratividade

Twitch: onze anos após ser comprada pela Amazon, a empresa tenta provar que o livestreaming pode ser um negócio rentável. (Robin L Marshall/Getty Images)

Twitch: onze anos após ser comprada pela Amazon, a empresa tenta provar que o livestreaming pode ser um negócio rentável. (Robin L Marshall/Getty Images)

Mariana Martucci
Mariana Martucci

Head de distribuição e audiovisual

Publicado em 3 de novembro de 2025 às 20h30.

De San Diego, Califórnia* | É sábado de manhã no San Diego Convention Center, e o pavilhão da TwitchCon 2025 está lotado. Há filas de duas horas para conhecer streamers, adolescentes gritando diante de telões de Fortnite, estandes onde se joga Mario Kart em telas gigantes. Mas o que mais chama atenção é que quase todo mundo está com um gimbal na mão, transmitindo o próprio evento ao vivo — não apenas documentando, mas atuando para uma audiência remota, trocando comentários em tempo real, pagando “bits” (a moeda virtual da plataforma) para aparecer no chat. A convenção se tornou uma meta-experiência: um evento sobre livestreaming que é, ele mesmo, transmitido ao vivo por milhares de pessoas simultaneamente.

Nos últimos dez anos, a Twitch transformou algo que antes era nicho em uma das formas de mídia de crescimento mais rápido da internet. Criou indústria bilionária, profissionalizou milhares de criadores e deu origem a um novo formato de entretenimento que mistura TV ao vivo, rádio, rede social e comunidade. Mas fazer livestreaming dar dinheiro sempre foi mais difícil do que parecia.

O problema que ninguém resolveu

Todas as grandes plataformas de mídia social tentaram livestreaming em algum momento. O Facebook lançou o Facebook Live em 2016, contratou celebridades; o Microsoft comprou o Mixer e pagou para trazer criadores, mas fechou em 2020; o Periscope do Twitter virou lembrança. O consumo de vídeo ao vivo cresceu 45% durante a pandemia, chegando a cerca de 24 bilhões de horas assistidas em 2021, ou seja, problema não era falta de audiência, mas o modelo de negócio.

Enquanto plataformas como YouTube ou TikTok podem tratar o live como funcionalidade adicional, para a Twitch a live é o negócio inteiro. E, diferente de Netflix ou Spotify, onde o usuário paga para acessar conteúdo, na Twitch o conteúdo é gratuito. As pessoas pagam porque querem apoiar o criador, não porque precisam.

“É patronagem”, explica o CEO da Twitch, Dan Clancy. “As pessoas pagam por status na comunidade, emotes exclusivos, para mostrar apoio. Não é para acessar conteúdo, já que ele é gratuito.”

O modelo cria vínculo profundo e lealdade, mas não escala com rapidez. Publicidade programática cresce conforme mais gente assiste, enquanto patronagem depende de relações profundas, que levam tempo para construir.

Durante anos, a Twitch era o padrão-ouro do live. Agora as rivais se aproximaram — e cresceram. O YouTube Gaming passou de coadjuvante a protagonista ao integrar lives, vídeos e “Shorts” num mesmo ecossistema. O TikTok Live explodiu em popularidade, especialmente em conteúdos “mobile first”, lifestyle e live commerce. E plataformas novas, como a Kick, fundada em 2022, oferecem splits agressivos e contratos milionários para criadores.

Dados recentes mostram a mudança de cenário. No primeiro trimestre de 2025, o TikTok Live teria ultrapassado a Twitch em horas assistidas globalmente. Segundo o relatório da Stream Hatchet, no segundo trimestre de 2025 o mercado de live streaming global atingiu mais de 29,6 bilhões de horas assistidas. A Twitch, entretanto, registrou queda de participação por três trimestres consecutivos.

Mesmo com liderança consolidada em gaming, estimada em cerca de 60% desse sub-mercado, a Twitch perdeu terreno nas categorias de música, talk-shows, lifestyle e live commerce. E perdeu parte da vantagem competitiva que vinha pela falta de rivais. Agora, ela precisa justificar por que vale ser escolhida. “A Twitch está jogando para não perder, não para ganhar”, resume o analista Casey Newton.

Dan Clancy, CEO da Twitch (PATRICK T. FALLON/AFP/Getty Images)

Em 2024, a Twitch gerou aproximadamente US$ 1,8 bilhões em receita — queda de 8,1% em relação a 2023. Deste montante, cerca de US$ 667 milhões vieram de publicidade, e aproximadamente US$ 1,3 bilhões da “economia de criadores” (assinaturas e bits) segundo estimativas. Um declínio num momento em que a categoria ao vivo como um todo cresce mostra o aperto que a Twitch enfrenta.

Segundo a empresa, a média de espectadores simultâneos em 2024 foi de cerca de 2,37 milhões. Para além dos números brutos, o desafio está no mix de receita: enquanto duas-terços vêm de assinaturas e “patronagem”, apenas um terço é publicidade — o oposto de YouTube, TikTok e Meta. A Twitch busca inverter esse quadro: “Queremos que o ads representem 50 % da receita”, afirmou a empresa em 2022.

Para explicar o caminho, Mike Minton, Chief Product Officer da Twitch, sintetiza:

“As ferramentas de monetização parecem complexas, mas seguem uma lógica natural. O criador começa com assinaturas. É o primeiro sinal de que a comunidade quer apoiar o que ele faz. À medida que o canal cresce, entram os subs de presente, depois os anúncios e, por fim, os grandes acordos de marca. É uma progressão de amadurecimento. A Twitch é construída sobre essa cultura de patronagem: apoiar quem cria.”

Enquanto a Twitch perde terreno globalmente, há um mercado onde ela ainda se mantém relevante: o Brasil. Criadores como Gaules e Casimiro Miguel dominam rankings mundiais. Um levantamento mostrou que streamers brasileiros são hoje cerca de 18% dos 100 maiores canais da Twitch, contra 9% em 2023. Para a Twitch, o Brasil não é somente mais um mercado — é laboratório de produto e inovação.

“Português e espanhol já representam uma fatia enorme do nosso negócio — e o Brasil está no centro desse crescimento”, afirma Ignacio Estanga, vice-presidente de parcerias para LATAM & Iberia da Twitch. “Testamos aqui muitas das novas ferramentas, como os canais skins e combos de bits. O público brasileiro é extremamente participativo e molda o produto global.”

“O público brasileiro quer histórias, não só competição. O GTA Roleplay é um ótimo exemplo: as pessoas seguem o drama dos personagens, querem saber o que vai acontecer na próxima temporada.”

A Twitch também prioriza o Brasil para testes: “Fizemos alfas e betas de novos produtos aqui por causa do Android elevado e da cultura mobile”, segundo Estanga. O Brasil, com forte penetração de celulares (uma necessidade para o vertical streaming), tornou‐se palco para a estratégia global da plataforma.

A virada publicitária

Para equilibrar contas, a Twitch aposta na publicidade – e no ecossistema da Amazon.

“A Twitch era vista como topo de funil. Com a Amazon Ads, passamos a conversão: agora temos shopping interativo, dados de consumo e integração com o DSP da Amazon. É funil completo dentro das lives.” explica Sarah Iooss, diretora global de agências e Twitch Ads.

Hoje as marcas não são mais só de games. A Twitch já dialoga com setores como automóveis, serviços financeiros, beleza, bens de consumo. “A Twitch é um espelho da cultura: se o esporte vive um momento global, isso se reflete aqui”, afirma Iooss. Uma campanha no Brasil com a Nike em torno do futebol feminino é citada como símbolo dessa mudança — mais do que anúncio: conversa.

No estúdio de parcerias da Twitch (Brand Partnership Studio, BPS), chefiado por Victor Lu, mais de 1.650 campanhas foram executadas desde 2020, injetando cerca de US$ 30 milhões na economia dos criadores.

“Nosso trabalho é pegar o que o público já faz e inserir o anunciante de forma natural. Com a Oreo, por exemplo, criamos o momento em que o streamer fazia uma pausa, comia uma bolacha, comentava o sabor e oferecia recompensa à comunidade. Simples, autêntico e eficaz.” Ele resume: “Na Twitch, o anúncio certo não interrompe, mas participa da história.”

A Twitch também aposta forte em tecnologia para manter vantagem competitiva.

“Estamos usando IA para resolver problemas que antes eram impossíveis no nosso volume — mais de 200 mil transmissões ao vivo simultâneas. Agora conseguimos transformar fala em texto em tempo real, entender o contexto da stream, ajudar segurança e criar highlights. Só um em cada quatro criadores produzia clipes após a transmissão; com o AutoClip isso vai para quase todos.” afirma Minton.

Além disso, há testes com óculos de realidade aumentada da Meta para permitir lives “mãos-livres”, uma aposta de risco para futuros formatos de transmissão. Mas, embora promissoras, as iniciativas soam mais como reação do que como liderança disruptiva. A tecnologia é usada para amplificar o que já existe, e não para reinventar o formato.

A cultura que o dinheiro não compra

A Twitch nasceu de um impulso quase romântico: a ideia de que a internet podia transformar a intimidade em espetáculo e a comunidade em economia. Durante anos, isso bastou. Mas conforme o mercado amadurece, o que antes parecia revolucionário agora é também um problema corporativo.

Neste ano, a plataforma se viu no centro de várias polêmicas, desde regras inconsistentes de moderação e banimentos controversos até a demissão de centenas de funcionários. Criadores reclamam de instabilidade nas políticas de monetização e de um clima de incerteza: o medo de que a Twitch se torne mais uma engrenagem da Amazon Ads, perdendo o caráter de “lar” digital que a fez crescer.

A empresa tenta provar que esses dois mundos podem coexistir. Mike Minton insiste que o equilíbrio é possível: “O maior desafio é garantir que os streamers possam viver do que amam sem perder a confiança do público. Nosso papel é criar ferramentas que ajudem nisso, não substituam isso.”

Mas a tarefa é árdua. O próprio modelo que a Twitch criou — espontâneo, horizontal, alimentado pela cultura do chat — também produz seus conflitos. Há streamers que se tornaram celebridades e enfrentam a pressão de escândalos, assédio e cancelamentos públicos em tempo real. O mesmo espaço que humaniza o criador também o expõe sem filtro.

Mesmo assim, a Twitch sobrevive porque representa algo raro no mundo digital: a sensação de presença compartilhada.

“Na América Latina, o sucesso vem do coletivo. Nossos criadores crescem juntos. Essa é a força da região”, diz Ignacio Estanga.

Para ele, o segredo está menos no algoritmo e mais na empatia: a cultura do “estamos ao vivo”, em que o erro é parte da performance e a audiência é cúmplice. É isso que mantém milhões conectados, mesmo quando os números ou os relatórios financeiros não animam Wall Street.

*A jornalista viajou a convite da Twitch. 

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