Tecnologia

A rachadura na economia da App Store da Apple

Há um inegável ímpeto para revisar o funcionamento das lojas de aplicativos da Apple, responsável por grande faturamento em vendas

iPhone: há um inegável ímpeto para revisar o funcionamento das lojas de aplicativos da Apple, responsável por grande faturamento em vendas (Don Arnold/WireImage/Getty Images)

iPhone: há um inegável ímpeto para revisar o funcionamento das lojas de aplicativos da Apple, responsável por grande faturamento em vendas (Don Arnold/WireImage/Getty Images)

TL

Thiago Lavado

Publicado em 3 de outubro de 2021 às 09h00.

Quando a Apple Inc. lançou sua App Store em 2008, o fundador e executivo-chefe da empresa, Steve Jobs, deixou uma mensagem para os desenvolvedores de aplicativos para iPhone. “Não estamos tentando ser parceiros de negócios”, disse ele ao New York Times. Jobs queria dizer que os desenvolvedores não precisavam se sentir ameaçados porque o principal negócio da Apple era vender telefones, não receber comissões de 30% nas vendas de aplicativos. Mas o comentário poderia ser interpretado de forma muito diferente hoje, quando muitos desenvolvedores — e dirigentes governamentais — veem a Apple menos como um parceiro negociando de boa-fé do que como um senhor feudal cobrando um inevitável imposto.

Em 10 de setembro, um juiz federal justificou parcialmente a visão crítica da empresa ao decidir que ela deveria permitir que desenvolvedores de aplicativos direcionassem os usuários aos sistemas de pagamento da web para concluir as transações. A decisão decorre de uma rixa com a Epic Games, a criadora do grande sucesso Fortnite, sobre se ela poderia usar seu próprio serviço de cobrança dentro do jogo, contornando a taxa padrão da Apple. Quando a Epic o fez, apesar das objeções da Apple, a fabricante de telefones removeu o Fortnite de sua loja de aplicativos e a Epic entrou com uma ação contra a Apple.

Em sua decisão sobre o caso, a juíza Yvonne Gonzalez Rogers escreveu que afrouxar o sistema de pagamento da Apple aumentaria a competição de forma positiva. Ela, no entanto, não concordou com a Epic de que a Apple era monopolista. “O sucesso não é ilegal”, concluiu a juíza, e mandou a Epic pagar à Apple US$ 6 milhões em royalties. A Epic pretende apelar. A Apple declarou vitória. Mas embora a Apple tenha conseguido evitar o pior cenário possível, o caso poderia ser a primeira grande rachadura na base da indústria de aplicativos de smartphone de U$ 142 bilhões que ela e o Google da Alphabet criaram quando lançaram lojas de aplicativos paralelas há 13 anos. A onda de aplicativos móveis que se seguiu revolucionou a maneira como os consumidores interagem com os dispositivos, concentrando uma enorme quantidade de poder — financeiro e outros — com as empresas que haviam se estabelecido como guardiãs.

Muitos desenvolvedores de aplicativos se deram bem com esse acordo, mas tem havido uma crescente onda de descontentamento. Epic, Spotify e o proprietário do Tinder, o Match Group, lideraram o ataque contra as lojas de aplicativos, culpando-as por produzirem enormes danos enquanto promoviam os próprios serviços concorrentes. (Tanto a Apple quanto o Google operam serviços de música que competem com o Spotify. Match e Spotify elogiaram a decisão da Epic.)

Se o veredito da Epic se mantiver, ele se aplicaria apenas à forma como as pessoas pagam aos desenvolvedores de aplicativos, em vez de se estender a preocupações sobre outros comportamentos supostamente anticompetitivos. Mas há um inegável ímpeto para revisar o funcionamento das lojas de aplicativos. “É um grande negócio”,  diz David Bos, diretor de operações da Maple Media, uma holding que possui uma série de aplicativos para o consumidor, de Stocks + até Mahjong. Os desenvolvedores podem começar a direcionar as pessoas que fazem compras no aplicativo da App Store da Apple para a web, onde processadores de pagamentos como o PayPal Holdings o e Stripe Inc. normalmente cobram taxas de 2% a 3%. (A juíza não exigiu que a Apple permitisse que os desenvolvedores incorporassem seus próprios sistemas de pagamento dentro dos próprios aplicativos.) Haveria alguns custos indiretos para tarefas de processamento interno que a Apple administra atualmente, incluindo gerenciamento de reembolsos e detecção de fraude. Ainda assim, neste novo mundo, Bos acredita que a economia resultante seria uma "porcentagem significativa".

Richard Crone, um estrategista do segmento, prevê que os desenvolvedores podem cortar um quarto dos custos contornando a Apple. No ano passado, a empresa fez algumas concessões em pagamentos de aplicativos, cortando taxas para desenvolvedores menores e anunciando que permitiria que serviços de assinatura de mídia, como Netflix e Hulu direcionassem os usuários para pagamentos pela web, a partir de 2022. A Apple pode fazer concessões adicionais para persuadir os desenvolvedores a manter seu faturamento com ela. Melhor economia e mais competição podem ajudar desenvolvedores a aumentar as vendas. “Quanto mais lugares onde as pessoas possam pagar você”, diz Bos, “certamente, tanto mais pessoas o farão”.

A Apple argumentou que suas taxas e o estrito controle sobre a App Store são necessários para manter altos padrões de privacidade e segurança. Mas os irritados desenvolvedores de aplicativos, dizem que a Apple usou seu poder de mercado para forçá-los a dar a ela uma parte de sua receita. A Proton Technologies, empresa suíça que produz e-mail criptografado e software, reclama que a Apple forçou-a a instituir compras no aplicativo em 2018 para recursos que antes eram cobrados pela web. Andy Yen, seu presidente-executivo, comparou a ação da Apple a uma "extorsão de máfia".

A Proton concordou em fazê-lo, mas aumentou os preços das assinaturas de e-mail em 26% nos dispositivos da Apple. “É muito, muito prejudicial”, diz Jurgita Miseviciute, líder de políticas da empresa. “A Apple tenta nos pintar como se fôssemos rivais gananciosos e menos bem-sucedidos. Mas, no âmbito de privacidade, é preciso pagar pelo serviço. ” A Apple mudou suas políticas em setembro de 2020 para permitir que empresas como a Proton evitem pagamentos no aplicativo, mas a Proton diz que a mudança na regra não resolve suas preocupações.

Por muitos anos, a Apple contentou-se em ganhar dinheiro vendendo  dispositivos eletrônicos portáteis, ou gadgets. Mas serviços como a App Store estão crescendo em importância à medida que a empresa busca novas, mais lucrativas maneiras de crescer. A receita da Apple com as comissões de venda de aplicativos em 2020 foi de US$ 21.7 bilhões, de acordo com a empresa de pesquisa de mercado SensorTower. Analistas estimam que ela pode perder de US$ 1 bilhão a US $ 4 bilhões anualmente se o veredicto da Epic for confirmado; ele aplica-se apenas aos EUA.

A área que provavelmente verá a maior mudança é a dos jogos. Cerca de 70% das vendas de aplicativos da Apple vêm de jogos para dispositivos móveis, e a juíza Rogers disse que a Apple administra "principalmente uma loja de jogos e, secundariamente, 'qualquer outra' loja de aplicativos". A Google Play Store, ela observou, apesar de menos evidências disponíveis, funciona da mesma maneira. Ações de produtores de jogos para celulares como Zynga e Activision Blizzard estouraram após a decisão. A empresa de pesquisa de ações Baird & Co. acredita que o lucro da Zynga poderia subir 115% se as taxas da Apple fossem cortadas pela metade.

O impacto no Google, cuja loja de aplicativos tem mais usuários, mas gera menos receita, é menos claro. Ao contrário da Apple, o Google permite que outras lojas de aplicativos rodem em smartfones Android, e o Google também tende a ser mais tolerante com as taxas. Mas a Epic também está processando o Google, e os críticos acusaram o gigante das buscas de também recorrer à intimidação. Durante uma audiência no Senado em abril, a respeito das lojas de aplicativos, Jared Sine, chefe de negócios e diretor jurídico do Match, grande anunciante do Google, testemunhou que representantes do Google ligaram para sua empresa na noite anterior para interrogá-lo sobre os comentários preparados para o Senado. “Eles podem nos prejudicar muito”, disse Sine aos senadores. "Todos nós estamos com medo." Um advogado do Google na audiência disse que a empresa "nunca ameaçaria" seus parceiros.

No final, o Google, que se recusou a comentar a decisão, provavelmente terá que seguir qualquer ação que a Apple tome em relação aos pagamentos.

Os maiores críticos da Apple consideram os pagamentos apenas o começo. Após a decisão, membros do Congresso de ambos os partidos pediram novas leis antimonopólio. Vários projetos de lei em análise restringiriam o acesso especial que a Apple e o Google às vezes dão a seus próprios aplicativos e forçariam a Apple a permitir que lojas de aplicativos de fora operassem em seus dispositivos. Ainda assim, até mesmo essas medidas não desfariam diminuiriam necessariamente o domínio dos líderes. Depois de uma derrota regulatória na Europa, o Google teve que configurar uma tela de escolha nos dispositivos Android, permitindo que os consumidores escolhessem seu mecanismo de busca ou rivais menores. A maioria ainda escolheu o Google.

Os desenvolvedores que imaginam ganhos inesperados com as revisões da app store sabem que isso não acontecerá da noite para o dia — ou tão facilmente. Essas empresas ainda precisam persuadir os consumidores a ignorar os métodos de pagamento que a Apple e o Google oferecem com apenas alguns toques. “As pessoas geralmente fazem o que é mais fácil”, diz Bos. “E estamos há mais de uma década com pessoas sendo condicionadas a usar somente o aplicativo para realizar pagamentos”.

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