Tecnologia

A nova aposta de US$ 20 bilhões da Intel para sair do atoleiro

Atrasada no desenvolvimento de chips das novas gerações, a fabricante de processadores líder no mundo quer investir na produção local nos EUA e colocar os erros do passado para trás

 (Anadolu Agency/Getty Images)

(Anadolu Agency/Getty Images)

FS

Filipe Serrano

Publicado em 26 de abril de 2021 às 07h00.

Última atualização em 28 de abril de 2021 às 18h51.

Sede da Intel, nos EUA: os problemas de gestão atrapalharam a empresa nos últimos ano (David Paul Morris/Bloomberg via/Getty Images)

A declaração, feita no terceiro destaque de um relatório trimestral de lucros, foi tanto desconcertante do ponto de vista técnico quanto incompreensivelmente lacônica – a ponto de quase não ter feito sentido para qualquer um que não fosse um investidor profissional ou um analista. “Estamos acelerando a transição de produtos 10nm”, dizia o comunicado. “A transição de produtos 7nm está atrasada ante as expectativas prévias."

Para aqueles que ganham a vida vasculhando comunicados financeiros, isto era desastroso. Significava que a Intel estava com dificuldades para produzir seus últimos e melhores chips. A empresa prometera que fabricaria chips com transistores de dimensões minúsculas de até 7 nanômetros, ou 7 bilionésimos de metro, e estabeleceu 2021 como o prazo mais recente. Quanto menores os transistores, mais é possível colocar neles, o que resulta em processadores mais rápidos ou mais eficientes. O atraso significava que a Intel não teria opção a não ser vender a geração mais antiga de chips por mais um ano.

A Intel tem sido um colosso da produção americana desde o fim da década de 60, quando Robert Noyce e Gordon Moore deram início à empresa em Mountain View (Califórnia), e ao fazê-lo ajudaram a criar a moderna indústria de chips e o próprio Vale do Silício. A empresa, hoje estabelecida em Santa Clara, já teve problemas com atrasos no passado, mas os engenheiros da Intel sempre cuidaram para que cada contratempo tivesse vida curta.

Em julho de 2020, as coisas tinham mudado. Durante a call realizada após o comunicado de faturamento, o modesto executivo-chefe da Intel, Bob Swan, indicou que as fábricas futuristas de produção de chips da empresa – as “fabs” – poderiam não sair do papel. Em vez disso, a empresa estava cogitando usar fornecedores externos para construir os chips de 7nm. “À medida que precisarmos usar a tecnologia de processamento de outros, e se decidirmos acionar estes planos de contingência, estaremos preparados para fazer isso”, disse Swan em resposta à primeira pergunta de um analista.

As palavras dele foram vacilantes e de uma frieza técnica, mas todo analista na call ouviu isso e pensou a mesma coisa: Caramba. A sugestão de Swan foi possivelmente a coisa mais radical que já aconteceu à Intel nos 52 anos de história da empresa. A Intel havia chegado ao topo de um setor de produção de chips de faturamento annual superior a US$ 400 bilhões criando processadores sofistiscados e dominando as complicadas técnicas necessárias para fabricar milhões deles para alimentar os computadores do mundo – tudo isso trabalhando em seu próprio território.

Esta proeza técnica fez da Intel a líder em chips, além de peça-chave da mitologia do capitalismo americano do século 20. Sim, a maioria dos aparelhos eletrônicos foi feita em fábricas na Ásia, mas esse era um trabalho de margem curta e de baixos salários que os EUA nem queriam mesmo. As fábricas americanas da Intel, por outro lado, fabricavam os componentes mais sofisticados e de maior margem de lucro para estes dispositivos. Os presidentes Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama visitaram fábricas da Intel, e “Intel Inside” enfeitava desktops e laptops do mundo todo. Nos anos 90, no auge da fama cultural da empresa, a Intel veiculou comerciais de TV com trabalhadores de limpeza vestidos com trajes de proteção Tyvek da cabeça aos pés e dançando “Play that Funky Music”, sucesso dos anos 70 da banda Wild Cherry. O plano proposto por Swan rejeitaria o legado e possivelmente prejudicaria a liderança dos EUA na produção de ponta.

Antes que Swan pudesse seguir em frente com o plano de terceirização, a empresa mudou o projeto mais uma vez, substituindo o CEO por Pat Gelsinger, ex-diretor de tecnologia e até aquela época alguém que acreditava na potência produtiva da empresa. Em março, Gelsinger anunciou um plano para investir US$ 20 bilhões em novas fábricas americanas capazes de fabricar chips para outras empresas de semicondutores dispostas a terceirizar sua produção. Ele apresentou este plano de transformar a Intel em uma fabricante para terceiros –  também conhecida como “foundry” (fundição em português) – como exemplo de suas ambições de dar uma guinada. “A Intel está de volta”, afirmou Gelsinger aos jornalistas. “A antiga Intel é a nova Intel. Vamos ser líderes de mercado, e vamos satisfazer os novos clientes de fundição, porque o mundo precisa de mais semicondutores, e vamos preencher esta lacuna de modo poderoso e relevante.”

Até hoje, mesmo que em sua encarnação menor atual – após perder o título de empresa de chips mais valiosa para a Nvidia, que produz processadores gráficos e terceiriza para a Ásia a maioria de sua produção –, a Intel ainda controla cerca de 80% do mercado de processadores de computadores, com uma parcela ainda maior do setor de servidores, as poderosas máquinas que controlam data centers. Porém, os maiores clientes da Intel, que incluem Amazon, Apple e Microsoft, começaram todos a criar chips próprios e a contratar fabricantes terceirizados para fabricá-los. A adversária da Intel Advanced Micro Devices (AMD), outra das chamadas empresas de chip sem-fábrica, está há meses vendendo componentes de 7nm. Isto fez muita gente se perguntar, apesar das promessas de restauração feitas por Gelsinger, se a empresa consegue se recuperar dos tropeços na produção. “O avanço na produção saiu completamente dos trilhos”, diz JoAnne Feeney, parceira na Advisors Capital Management e analista de chips de longa data.

A encrenca da Intel não surgiu da noite para o dia. É consequência de uma década de deslizes – entre eles, um fracasso em entrar nos chips para smartphones – e da decadência cultural que cegou a empresa a complicações sérias, na visão de mais de uma dúzia de funcionários e ex-empregados, a maioria dos quais pediu para não ser identificada por meio de retaliação ou de pôr em risco suas perspectivas de trabalho. É também uma consequência das mudanças mundiais que levaram à ascensão das gigantes da produção asiática como a Samsung e a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC). Cada vez mais, estas empresas ocupam o centro da indústria, e são os chips delas que estão cada mais aparecendo no interior dos dispositivos mais avançados, e não os famosos “Intel Inside”.

Embora os fundadores Moore e Noyce estejam entre os pais dos primeiros semicondutores na época em que a península de San Francisco era mais conhecida por seus pomares de amêndoas do que por seus produtos de silício, o indivíduo no centro da ascensão da Intel foi Andy Grove. O engenheiro nascido na Hungria foi a primeira contratação de Moore e Noyce, e atuou como CEO da empresa de 1987 a 1998. A Intel de Grove, que influenciaria uma geração inteira de pensamento gerencial, valorizava disciplina, honestidade intelectual e foco.

Grove era famoso por ser exigente, chegando a introduzir uma “lista de atrasos” que obrigava os empregados que chegassem depois das 8 da manhã ao serviço a assinar seus nomes em um papel na recepção, e um sistema de avaliação que enquadrava todos os engenheiros em uma de quatro categorias de desempenho. O sistema de classificação, e muitas outras técnicas de Grove, seria adotado por quase todas as empresas grandes de tecnologia, e a abordagem de Grove à disciplina organizacional influenciou livros de negócio que viraram bestsellers, como Vencedoras por Opção e Radical Candor (“Sinceridade Radical”, em tradução livre do inglês). Em seu trato com gestores sênior, ele promovia o “confronto construtivo”, que ele via como uma franqueza direta destinada a garantir que os problemas fossem trazidos à luz e solucionados com eficiência. No dialeto grovês, a expectativa era que os empregados “discordassem e se comprometessem”.

Esta abordagem podia fazer das reuniões na Intel algo um tanto hostil – em sigilo, empregados falavam de uma “Inquisição húngara” –, mas também significava que Grove estava disposto a ouvir críticas. Ele buscava os opositores mais novos da empresa (a quem chamava de “Cassandras” – referência à personagem da mitologia grega em cujas profecias ninguém acreditava), que aprenderam a se pronunciar sobre potenciais problemas sem medo de retaliações. “Ser acompanhado por Andy Grove era como ir a um dentista que não usa xilocaína”, lembrou Gelsinger em uma entrevista em 2016, logo após a morte de Grove. A intenção era fazer um elogio, louvando a “busca agressiva pela resposta certa” de Grove.

Durante a gestão de uma década de Grove, os engenheiros mais ambiciosos competiam pela honra de ser o “assistente técnico” do CEO. Este papel, que hoje existe na Amazon e na Microsoft, envolvia tarefas subalternas, como servir de chofer dos executivos e ajudar a planejar a agenda de Grove, mas também exigia preparar apresentações e representar o CEO nas reuniões de alto nível. Muitos assistentes técnicos passaram a ocupar posições sênior na Intel ou nas rivais da empresa. O ex-CEO Paul Otellini foi assistente técnico de Grove.

Parte da razão da abordagem de Grove ser tão influente é que ela gerava progresso técnico e financeiro de modo incrivelmente consistente, o que era algo tão garantido que, com o tempo, passou a ser visto como uma espécie de força da natureza. A disciplina de Grove garantiu que os chips da Intel se tornassem mais poderosos mesmo quando ficaram mais baratos de fabricar, conforme a Lei de Moore, que previu o ritmo de melhorias nos chips e leva o nome do cofundador da empresa. A Intel foi uma das poucas fabricantes americanas de eletrônicos que prosperou nos anos 80 e 90 enquanto Japão, Coreia do Sul e Taiwan surgiam como potências produtivas.

Grove atuou como presidente até 2005 e aconselhou de perto executivos da empresa até sua morte, mas nem mesmo sua formidável influência conseguiria impedir um dos maiores tropeços da Intel. Em meados dos anos 2000, à medida que a Apple se preparava para lançar seu novo smartphone, Steve Jobs conversou com Otellini, então CEO, sobre a empresa fazer os chips do iPhone. A Intel já havia vendido à Apple os processadores de seus Macs. Mas Jobs fez o que Otellini considerou uma oferta baixa demais, e a Apple acabou agraciando a Samsung com o contrato. Mais tarde, a empresa começou a produzir seus chips sozinha e, eventualmente, terceirizou a produção para a TSMC, fabricante de Taiwan fundada em 1987 e dedicada a atender empresas de semicondutores sem-fábrica.

A Intel fez outras tentativas de ir mais fundo nos chips para smartphones. Em 2011, a empresa adquiriu por US$ 1,4 bilhão a divisão da Infineon Technologies que fazia processadores para telefones móveis, mas o departamento já sofria com a competição intensa da Qualcomm, então líder do mercado. A Intel tentou pagar aos clientes, como a coreana LG, para fabricar dispositivos baseados em seus chips, ainda que estes nunca tenham vendido volumes significativos. Por fim, segundo diversas pessoas com conhecimento da estratégia e operações da Intel, a empresa nunca esteve disposta a desviar seus recursos de design e produção dos chips de PC e de servidores, e o resultado foi que seus esforços no setor de dispositivos móveis pagaram o pato.

A Intel não só abriu mão de bilhões de dólares de receita, mas também deu a seus adversários uma abertura para conquistar o know-how de produção obtido com a fabricação de chips em volume altíssimo e de acordo com as especificações técnicas. Há muito mais telefones móveis do que PCs e servidores no mundo, e os chips deles precisam ter um consumo de energia eficiente para preservar a vida útil da bateria. Ter a Apple como cliente “se tornou um impulso imenso para a TSMC”, diz Risto Pahukka, presidente da VLSI Research. “A combinação se mostrou bastante frutífera e vai continuar assim.”

Em 2010, o aparente herdeiro de Otellini, Sean Maloney, sofreu um derrame que o incapacitou, seguido dois anos mais tarde pelo repentino anúncio de Otellini de que estava se aposentando. Seu substituto foi Brian Krzanich, veterano com 53 anos de casa, mas que não tinha mergulhado na cultura de autocrítica incansável de Grove. O que Krzanich tinha, segundo pessoas que trabalharam com ele, era uma fé quase inabalável na astúcia de engenharia da Intel, especialmente na perspicácia da divisão que até então ele tocava com outro executivo – o grupo de tecnologia e manufatura, responsável por elaborar o processo de produção de cada chip novo.

Em 2013, logo após sua nomeação, Krzanich reuniu 250 dos gestores mais sênior da empresa de chips na sala de conferências de um hotel próximo ao enorme campus de pesquisa e produção da Intel em Hillsboro (Oregon). Para muitos na sala, era a primeira oportunidade de ter uma ideia de como seria trabalhar com ele.

Krzanich usou sua fala para definir algumas regras novas. Gestores sênior, que vinham tentando encontrar maneiras de passar um tempo com o novo chefe, ouviram que deviam parar de perguntar se podiam se juntar a Krzanich em uma de suas corridas regulares em torno do campus. “Eu gosto de correr sozinho”, participantes do encontro lembram ter ouvido. “E não gosto de gente em geral.” Houve um silêncio constrangedor enquanto os executivos esperavam pela piada que viria a seguir, e que nunca veio.

Ao longo dos cinco anos de sua gestão, Krzanich reverteu a política de Grove de acolher Cassandras. Em vez disso, ele humilhou publicamente executivos dos quais discordava, ignorando alertas de que a Intel estava ficando para trás em sua capacidade de fabricar produtos-chave. “Brian não criou um ambiente em que as pessoas podiam trazer a ele problemas que pudessem ser trabalhados”, diz um ex-executivo. “Limitar a verdade é a morte para uma empresa complexa como a Intel.”

Nas reuniões de avaliação que seus antecessores usavam como fóruns para debate, Krzanich respondia emails, fazia compras online ou saía para fazer telefonemas, afirmam pessoas que trabalharam para ele. Colegas dizem que este era o jeito dele de mostrar a quem estivesse fazendo apresentações que ele não estava interessado, já havia se decidido ou não dava valor ao que eles estavam dizendo. Quando ele participava, geralmente era para ridicularizar apresentadores ou abusar verbalmente deles, em alguns casos dizendo a especialistas que eles não tinham ideia do que estavam falando, segundo uma dúzia de fontes. Krzanich não respondeu a diversos pedidos de entrevista.

Krzanich reservou uma parte de seu desprezo mais severo para Aicha Evans, que cuidava da divisão móvel da Intel e era uma das mulheres negras mais bem posicionadas no setor de chips. Evans foi encarregada de tirar a produção de um componente-chave da TSMC para as fábricas da Intel, que tinha feito chips móveis para a Infineon, mas concluiu que a transição não iria dar certo. As fábricas da Intel foram feitas para servidores de alto desempenho e chips de PC, e não processadores que tinham de se virar com bateria de vida útil limitada. Em uma extensa apresentação de três horas, ela detalhou suas dúvidas a Krzanich, ao presidente Andy Bryant e a outros 10 executivos do alto escalão. Sua apresentação, segundo pessoas que participaram do evento, foi rigorosa e convincente. A TSMC deve continuar a fabricar os produtos, insistiu ela.

Porém, após ela terminar, Krzanich parecia não ter entendido nenhum daqueles pontos. Em vez disso, ele levantou seu braço no ar e desceu-o, esmurrando a mesa.

“P... nenhuma, Aicha Evans”, gritou ele. “Você não entende a Intel, e você não tem um c... de um colhão.”

Ela o encarou. “Você está certo”, disse ela.

Por um tempo, parecia que a confiança de Krzanich na força de produção de chips da Intel tinha lá sua razão de ser. Em 2015, a empresa se tornou a primeira a lançar uma linha de chips com transistores de 14nm, um avanço comparado aos de 22nm da geração anterior. Porém, no início de 2015 um engenheiro procurou Krzanich com outro alerta: A próxima geração de chips da empresa, que seria baseada em um processador de 10nm e cuja previsão de lançamento era 2017, já estava seis meses atrasada.

Krzanich apenas respondeu do mesmo modo que reagiu a Evans, segundo o engenheiro - com um surto verbal recheado de palavrões. No ano seguinte, dois outros engenheiros apresentaram a Krzanich dados mostrando uma tendência alarmante no que é conhecido como a curva de rentabilidade do próximo chip. Uma métrica conhecida como a taxa de erro, ou o percentual de chips defeituosos em determinada etapa de produção, não estava melhorando depressa o bastante. Não só isso, uma rival, a TSMC, podia lançar chips de 10nm primeiro, destacaram eles. Segundo diversas testemunhas, Krzanich disse a eles, na prática, que eles não sabiam do que estavam falando.

O atraso de seis meses eventualmente aumentaria para três anos, e só em 2020 a Intel lançou seus chips de 10nm. O atraso levou a Dell, um dos maiores clientes da Intel, a cortar sua previsão de compras para o ano todo em mais de US$ 1 bilhão. “É óbvio que não estamos morrendo de felicidade com eles neste momento”, disse na ocasião o diretor de finanças da Dell, Tom Sweet. Em declarações públicas, Krzanich continuava a prometer que os chips de 7nm chegariam a tempo, previsão que muitos na empresa já questionavam.

A Intel forçou Krzanich a sair em junho de 2018. A explicação oficial foi que ele teve um caso com uma funcionária. Porém, a Intel já tinha tolerado relacionamentos dentro da empresa entre executivos sênior, e muitos executivos especularam que a diretoria tinha era se cansado de seu desempenho e do modo como Krzanich tratava os subordinados.

Evans, diretora da divisão mobile, durou mais tempo que Krzanich. (Ela saiu em 2019 e se tornou CEO da Zoox, a fabricante de carros autônomos comprada pela Amazon no ano passado.) Porém, à época da saída de Krzanich, vários dos executivos com mais tempo de Intel já tinham sido forçados a pedir demissão. A lista incluía a ex-CFO Stacy Smith, que cuidava das operações; Kirk Skaugen, que tocava a principal área de chips para PCs da empresa; e Renee James, presidente da Intel. Líderes-chave da área de engenharia também tinham saído, como Dadi Perlmutter, diretor-executivo de produto; Rani Borkar, que cuidava de desenvolvimento de produtos para alguns dos chips mais importantes da Intel; e Rony Friedman, que comandava uma equipe de design de microprocessadores. Juntos, eles tinham 200 anos de experiência na Intel.

O aperto da empresa não é só em decorrência de percalços internos. É também reflexo da mudança, que vem ocorrendo há décadas, de migração da produção dos EUA para partes do mundo que passaram por industrialização e desenvolvimento econômico acelerado, auxiliadas em parte por políticas públicas que incentivaram uma expansão na produção voltada à exportação. Uma das maiores beneficiadas pela  mudança está sendo a TSMC, sediada em Hsinchu (Taiwan), pioneira na terceirização da produção de chips. A AMD, rival de longa data da Intel, usa a TSMC, assim como Nvidia, Qualcomm, Broadcom e vários dos maiores clientes da Intel. Em 2018, a Amazon Web Services desenvolveu internamente um chip de servidor, o Graviton, usado pela empresa para substituir alguns dos chips de servidores Xeon da Intel. Desde então a Amazon vem anunciando outros chips, todos fabricados pela TSMC. Google e Microsoft também têm programas internos de chips.

Até mesmo a reputação da Intel como a empresa que alimenta computadores de ponta parece estar correndo risco. A Apple começou a desenvolver chips para os laptops e computadores Mac e, em novembro, lançou três novos computadores com um processador central que os engenheiros da empresa criaram e a TSMC montou. Na ocasião, a Apple declarou que aos poucos irá deixar completamente a Intel, chamando seus novos Macs de “uma categoria de produto totalmente diferente”. A Apple planeja uma série de chips que serão usados nos Macs mais de ponta, que serão lançados ainda neste ano, segundo pessoas por dentro do tema.

O poder da TSMC ficou claro em meio a uma escassez mundial de chips que está desacelerando a montagem de automóveis, com empresas na Europa, Japão e EUA implorando à TSMC que acelere a produção. Em fevereiro, o presidente Joe Biden assinou um decreto executivo que visava lidar com a carência e diminuir a dependência americana de outros países.

O setor de semicondutores, por sua vez, vem pressionando o governo federal americano por incentivos fiscais e outros estímulos que incentivem investimentos domésticos. Isso sem falar nos esforços já feitos, no governo do presidente Donald Trump, para desacelerar os avanços chineses em eletrônicos e na produção de chips. Ao declarar que as empresas chinesas são uma ameaça à segurança nacional americana, a Casa Branca de Trump impôs proibições à grande fabricante de chips de Semiconductor Manufacturing International (SMIC), ao lado de Huawei, ZTE e outras empresas chinesas, negando a elas acesso aos projetos de softwares e semicondutores americanos.

Este movimento pode ajudar a Intel no longo prazo, mas o trabalho imediato de consertar a empresa está totalmente nas mãos de Gelsinger e da equipe que ele montar. Antes mesmo de sua estreia oficial, Gelsinger começou a recrutar executivos da Intel que deixaram a empresa na gestão de Krzanich. Sunil Shenoy, que partiu em 2014, voltou como vice-presidente sênior do grupo responsável pela engenharia de projetos, e Glenn Hinton, que anteriormente comandou o desenvolvimento de um projeto de chip-chave, também retornaram.

Em seu primeiro dia, Gelsinger invocou a memória de Noyce, Moore e Grove, lembrando aos funcionários em um memorando que ele foi “inspirado pela liderança” dos fundadores da Intel. Algumas semanas antes, em janeiro, enquanto falava a Wall Street em uma call, Gelsinger recordou um período na década de 2000 em que a Intel perdeu, e depois retomou, participação de mercado no setor de chips de servidores. “Grandes empresas têm a capacidade de voltar de períodos de dificuldades e desafios, e voltam mais fortes, melhores e mais capazes do que nunca”, afirmou ele.

Gelsinger deu sequência a essa declaração em março, com seu compromisso de construir novas fábricas e entrar no negócio de foundry. Mas, para ter sucesso, a Intel precisará dar jeito em suas pontas soltas, botar de pé novas fábricas – feito que pode levar anos – e, em última análise, descobrir um jeito de equilibrar as exigências de um novo grupo de consumidores com as necessidades já enormes dos atuais.

A TSMC tem mais de três décadas de vantagem sobre a Intel no mercado de foundry. A empresa vem fabricando chips de 7nm desde 2018, e a Apple começou a fazer processadores de 5nm no ano passado. A determinação de Gelsinger de fazer a Intel reconquistar sua posição de liderança é reforçada por sua aposta de US$ 20 bilhões no negócio de fundição. Porém, o plano da empresa de aumentar suas despesas de capital em cerca de 35% em 2021 a coloca quase US$ 10 bilhões atrás do que a TSMC irá gastar neste ano.

Só dinheiro não vai trazer a velha Intel de volta.

* Tradução por Fabrício Calado Moreira

Acompanhe tudo sobre:amdIndústria eletroeletrônicaIntelNvidiaProcessadoresvale-do-silicio

Mais de Tecnologia

Influencers mirins: crianças vendem cursos em ambiente de pouca vigilância nas redes sociais

10 frases de Steve Jobs para inspirar sua carreira e negócios

Adeus, iPhone de botão? WhatsApp vai parar de funcionar em alguns smartphones; veja lista

Galaxy S23 FE: quanto vale a pena na Black Friday?