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A incrível história de como a Marvel saiu da falência para virar a maior empresa geek do mundo

Sean Howe, autor do livro 'Marvel Comics – A História Secreta', conta os segredos da trajetória da empresa, que complete 75 anos

Marvel (Divulgação)

Marvel (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 4 de abril de 2014 às 09h20.

É difícil imaginar um paralelo na indústria do entretenimento para ilustrar o que a Marvel Comics fez e está fazendo neste exato momento. Da mesma forma que reescreveu as regras das histórias em quadrinhos de super-heróis e deu legitimidade para uma mídia chamada de infantil, a empresa chega aos 75 anos de idade testando e apontando caminhos para um novo mundo digital, transformando seus personagens não apenas em uma obsessão nerd, mas também em um fenômeno global para crianças e adultos. São HQs em papel, revistas digitais, filmes, programas de televisão, seriados no Netflix, jogos de videogame, brinquedos em parques temáticos, bonequinhos e uma afiadíssima máquina de merchandising que sabe como transformar essas narrativas em milhões de dólares de faturamento. Tudo isso amarrado como se fosse apenas um único enredo multimídia, um universo que começa no papel, continua na tela cinza do cinema, passa para a televisão ou para tela do iPad e só termina quando os fãs se cansarem. E, vale dizer, parece que o fôlego ainda está longe, bem longe, de acabar.

“Se você olhar a cultura pop como uma intersecção entre interesses comerciais e artísticos, a Marvel é o melhor exemplo a ser estudado”, disse a INFO o jornalista e pesquisador Sean Howe, autor de Marvel Comics – A História Secreta, livro vencedor do prêmio Eisner 2013 como melhor obra relacionada a quadrinhos, recém-lançado no Brasil pela editora Leya. “Sempre houve um embate entre os dois lados, o dinheiro e a arte, mas isso também sempre foi muito claro. Não imagino nenhuma outra empresa em que as crianças saibam de cor os nomes dos diretores e funcionários.”

Nas mais de 500 páginas do livro, Sean Howe acompanha a trajetória da Marvel Comics desde suas origens até a venda para a Disney, e de seus protagonistas, como Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko. Heróis, obviamente, sempre foram uma fonte inesgotável de fantasia, escapismo e reflexão. Desde a lenda de Gilgamesh, rei da Suméria em 2750 AC e um dos mitos mais antigos de que se tem conhecimento, existe no imaginário popular a noção de um ser parte humano, parte divino, dotado de grandes poderes. O que a Marvel fez foi colocar seres fantásticos em um mundo real, possivelmente em um apartamento logo ao lado do seu, com personalidades facilmente reconhecíveis. Os personagens de Stan Lee e Jack Kirby estão sempre falhando, discutindo, aprendendo. Eles podem até mesmo ficar resfriados ou ser despejados por falta de pagamento do aluguel.

“A Marvel sempre foi magistral em criar uma sensação de que os leitores faziam parte de um clube especial, junto com os personagens, nos lendários boletins do Merry Marvel Bullpen”, diz Howe. “Era a segunda família de todo mundo. No fim das contas, os quadrinhos da Marvel falam de modo bem real sobre as dificuldades dos adolescentes, e nenhum outro meio consegue expressar tão bem essa emoção do reconhecimento”, diz o escritor. É uma luta universal, esses anos adolescentes””

Se do lado artístico a Marvel entendeu as aflições juvenis, a editora também foi espertíssima ao extrair daí o seu plano de negócios. Kirby e Lee sempre tiveram um apurado senso de continuidade em suas aventuras, algo que não existia na empresa concorrente, a DC Comics. Isso significava que algo que acontecia em uma história continuaria em outra, e em outra, até mesmo na revista de outros personagens. Todos partilhavam o mesmo universo. Se o Homem de Ferro estivesse machucado ou passeando por um planeta distante em sua revistinha, ele não poderia nunca aparecer na HQ do Capitão América ou dos Vingadores, por exemplo.

“A continuidade ajuda a explicar o sucesso da Marvel em tantos formatos diferentes”, afirma Howe. “Um produto promove o outro, e isso estimula uma mentalidade do tipo ‘colecione tudo’. Isso facilita o trabalho da empresa de explorar ao máximo o potencial comercial de suas propriedades”.

Nem tudo foi tão colorido assim nesta narrativa marveliana, obviamente. Após pedir demissão em 1970 e até sua morte em 1994, Jack Kirby sempre reclamou publicamente de Stan Lee por não lhe dar o devido crédito por suas criações, utilizando palavras que vão de “oportunista” a “fraude”. Em uma revista publicada em 1971 pela rival DC Comics, Kirby chegou a representar a Marvel Comics como uma antiga fazenda com escravos. Stan Lee é retratado como um homem ganancioso que manipula os subordinados e vive dos caprichos de Martin Goodman. A briga resume bem o lado nefasto da indústria de quadrinhos americana, que pagava centavos para artistas criarem e desenharem personagens, sem que eles fossem creditados ou tivessem participação nos lucros. Até a década de 90, tudo era feito por encomenda e ganhava-se por página, ponto final. Jack Kirby e os colegas não podiam sequer manter os originais que desenhavam, pelas regras de contrato, e não tinham o direito a copiar, expor ou doar sua arte.

“A continuidade das histórias da Marvel fez com que fosse cada vez mais difícil identificar quais criadores fizeram contribuições significativas. São muitos cozinheiros entrando e saindo da cozinha”, diz Howe.

Após decisões empresariais controversas assim e outras burradas comerciais, como inundar o mercado com histórias ruins e comprar empresas de outras áreas que nunca deram lucro, a Marvel chegou a entrar com processo de falência em 1996, com contas vencidas na casa dos 600 milhões de dólares. Pode parecer estranho, mas uma greve dos times de beisebol nos Estados Unidos em 1994 quase enterrou a companhia por completo. Explica-se: o dono da indústria de cosméticos Revlon, Ron Perelman, havia comprado a Marvel em 1989 com o objetivo de transformá-la em um gigante do merchandising, tendo a produção de cards de esportes e de entretenimento como sua atividade mais importante. Tudo ia muito bem, obrigado, até a tal greve, que arrasou o mercado de cards e fez com que a empresa tivesse de recorrer à Justiça.

“A Marvel acabou arrastando a indústria toda com sua estratégia tosca”, diz Howe. Tal momento difícil transbordou para as páginas dos quadrinhos. Em uma edição de Spiderman Unlimited, um empresário corrupto aconselha o editor de jornal J. Jonah Jameson a abrir o capital de sua empresa. “Eu nunca abriria o capital do Clarim”, responde Jameson, “porque sei que a integridade do jornal acabaria sendo vítima de executivos espertalhões como você, que ficam inventando esqueminhas ridículos só para cumprir metas de curto prazo.” Até na própria crise as revistas da Marvel eram realistas.

Atolada em dívidas, a Marvel foi obrigada a vender os direitos cinematográficos dos principais personagens, como o Homem-Aranha, que foi parar nas mãos da Sony por 10 milhões de dólares, e os X-Men e o Quarteto Fantástico, repassados para a Fox. Era o fundo do poço. A Marvel perdia controle do licenciamento e já negociava nos bastidores até a venda de boa parte dos heróis para outra editora, a Image Comics. A decisão desesperada, no entanto, acabou se transformando em um divisor de águas para a indústria do entretenimento. X-Men, o filme da Fox, arrecadou 300 milhões de dólares em bilheteria em 2000, além de arrebatar críticas positivas até do mais chato resenhista de jornal. Era a produção certa, na hora certa – bons atores, um diretor respeitado e efeitos especiais que tornavam realistas todas aquelas aventuras sonhadas por Stan Lee e Jack Kirby. Dois anos depois, o Homem-Aranha do diretor Sam Raimi conseguiu impressionantes 850 milhões de dólares.

“De certa forma, a comunidade dos quadrinhos precisou da validação de Hollywood, o que é triste”, diz Sean Howe. “Mas foi a partir daí que começou a dominação completa da Marvel.”

Todas as atenções foram voltadas então para a produção de longas de super-heróis; afinal, qualquer cara com capa e cueca por cima da calça estava lucrando horrores em bilheteria. Batman Begins, de Christopher Nolan, levou 374 milhões de dólares. Superman Returns, 391 milhões de dólares. Até Hellboy, um personagem desconhecido, embolsou os seus 100 milhões de dólares. Criadores de HQs estavam botando no bolso a indústria cinematográfica do século 21. Mas com a venda dos direitos de seus medalhões, vale lembrar, a Marvel não tinha mais seus personagens principais para fazer produções próprias, sem interferências criativas e sem ter que dividir lucros com outros estúdios. O jeito era vasculhar os arquivos de Stan Lee e Jack Kirby, uma biblioteca de quase mil heróis e vilões, para tentar abocanhar um quinhão desse mercado.

Homem de Ferro, personagem do segundo escalão criado em 1963 e inspirado do excêntrico milionário Howard Hughes, foi o escolhido. E tal qual nos quadrinhos, a fórmula Marvel foi posta mais uma vez pra funcionar, com as mesmas palavras-chave: realismo e continuidade. “A Marvel foi perfeita ao criar um universo também no cinema, linkando pistas e situações que só seriam exploradas em outros filmes”, diz Sidney Gusman, um dos maiores especialistas em quadrinhos no Brasil e responsável pela área de planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções. “As produções foram pensadas para atrair não só o público nerd, mas todo mundo. E assim, conseguiram criar uma teia de filmes e produtos que é impressionante.”

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Lançado em 2008, Homem de Ferro arrecadou meio bilhão de dólares, teve duas indicações no Oscar e fez ressurgir a carreira do ator Robert Downey Jr. A esta altura do campeonato, com bonequinhos do personagem vendendo mais rápido do que pipoca, foi um bocado mais fácil vislumbrar o potencial de todo aquele universo – não por acaso, a Disney anunciou no ano seguinte a compra da Marvel por 4,3 bilhões de dólares. O Homem de Ferro levou ao filme do Hulk, que levou ao filme do Thor, que gerou o filme do Capitão América... E aí, em uma jogada que deixou os fãs embasbacados, todos os heróis se juntaram no longa Os Vingadores, o supergrupo que já unia todos esses personagens nos quadrinhos. Resultado: até agora, foram oito filmes lançados, 5,6 bilhões de dólares em bilheteria, mais dois longas com lançamento neste ano e outras nove produções sendo preparadas até 2018.

Hoje, a Marvel tem hoje 29 subsidiárias para cuidar de todas as suas propriedades intelectuais, de games a séries no Netflix (leia tudo sobre a estratégia digital da empresa na edição da INFO deste mês). Juntas, elas formam um conglomerado multimídia avaliado hoje em mais de 7 bilhões de dólares. A preocupação com o departamento de revistas, no entanto, continua como prioridade – afinal, é delas que saem as linhas gerais para filmes, séries, games e colecionáveis. Novos autores foram contratados, linguagens diferentes testadas, personagens mais atuais criados e cronologias consideradas confusas, simplificadas. Em fevereiro, por exemplo, a Marvel colocou nas bancas as aventuras da nova Miss Marvel, que até ano passado era o alter ego de Carol Danvers, uma garota loira, de olhos azuis e major da Força Aérea Americana. Agora, a Miss Marvel atende pelo nome de Kamala Khan, tem 16 anos, é muçulmana e filha de imigrantes paquistaneses. Essas e outras atualizações têm dado resultado: no ano passado, as vendas cresceram 9%, algo impressionante pra um negócio baseado em papel.

“Felizmente para a Marvel, inúmeros autores ainda vão aparecer para criar novas histórias para velhos personagens”, diz Howe. “As revistas ainda vão durar muito, há uma enorme. Mas para o futuro, eu também acho que os quadrinhos vão se tornar cada vez mais ‘auxiliares’ no universo Marvel. Ultimamente, a empresa tem organizado seu universo ficcional para torná-lo mais fácil para apresentar para potenciais licenciadores.” Hoje, a Marvel cria variações de seus personagens para todos os públicos, da versão “baby” dos Vingadores, o Hulk cavaleiro medieval, o Homem de Ferro noir, o Doutor Estranho mangá, o Homem-Aranha do futuro e até a interpretação zumbi de Wolverine, totalizando 5 000 possíveis franquias diferentes. Não duvide se, em breve, elas também estejam no cinema, em uma nova série no Netflix ou estampada na sua camiseta.

 

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