Revista Exame

A vida numa empresa chinesa

Pedágio para entrar na companhia. Funcionários que moram dentro da sede. Bônus de até 30 salários extras por ano. Conheça a improvável receita de gestão forjada pela Huawei, um dos ícones do novo capitalismo chinês

Opções de lazer na área comum dos alojamentos da Huawei, em Shenzhen: 3 000 funcionários moram na própria empresa (Alex Hofford/EXAME.cpm)

Opções de lazer na área comum dos alojamentos da Huawei, em Shenzhen: 3 000 funcionários moram na própria empresa (Alex Hofford/EXAME.cpm)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h38.

De segunda a sexta-feira, toda vez que o ponteiro do relógio marca meio-dia em Shenzhen, cidade de 12 milhões de habitantes no sul da China, um clima de excitação toma conta da sede da Huawei, uma área de 1,3 quilômetro quadrado ocupada pela maior fabricante de equipamentos de telecomunicações da China, com faturamento de 22 bilhões de dólares em 2009. Imediatamente, os cerca de 20 000 funcionários da empresa deixam os 15 prédios espelhados onde ficam seus escritórios e dirigem-se a um dos três refeitórios da companhia. A visão daquela multidão caminhando apressadamente na mesma direção impressiona os visitantes - em poucos instantes, o enxame de trabalhadores toma as ruas do que até então mais parecia um campus universitário mergulhado no mais profundo silêncio. Nos refeitórios, cada empregado paga cerca de 30 renmimbis (ou 8 reais) por sua própria refeição: geralmente uma sopa de arroz acompanhada de legumes, cogumelos e carne de porco. Todos os dias são servidas mais de 15 000 refeições a funcionários de mais de 15 nacionalidades, de chineses a sudaneses. Eles comem rápido - em 30 minutos já estão de volta à sua mesa de trabalho. Na Huawei - pronuncia-se "ráuei" -, assim como em toda a China, não se perde tempo.

O ritual do almoço se encerra com um cochilo de, no máximo, 15 minutos, tirado no meio do escritório em colchonetes espalhados pelos corredores. O breve descanso é necessário para aguentar o ritmo puxado da tarde. Até o expediente se encerrar, às 18 horas, ninguém para de produzir - no complexo da Huawei, não há máquinas de café nem lanchonetes que possam desviar a atenção dos funcionários. "Com concorrentes como a Ericsson e a NokiaSiemens atrás de nós, temos de trabalhar em dobro para ganhar mercado", diz o chinês Xingang Lu, diretor de redes sem fio da Huawei.

O senso de urgência é uma das principais características dessa empresa, que se transformou num dos ícones do novo e diferente capitalismo chinês. Uma das raras companhias locais a não ter o governo como acionista, a Huawei desenvolveu um estilo de gestão que tenta privilegiar a inovação - algo ainda raro numa economia cuja especialidade é copiar o sucesso alheio - e que conta com certa dose de meritocracia. Na Huawei, assim como nas melhores empresas americanas, todos têm metas e ganham bônus ao cumpri-las. Fundada em 1988 pelo engenheiro Ren Zhengfei, um ex-sargento do Exército de Libertação Popular, comandado por Mao Tsétung, em pouco mais de duas décadas a Huawei se transformou na empresa mais internacionalizada da China - hoje, dois terços de seu faturamento vêm das vendas para 45 operadoras de telefonia em mais de 100 países. Nada mal para um negócio que começou com um empréstimo de 3 000 dólares feito por Zhengfei para montar uma pequena importadora de equipamentos de PABX. Hoje com 66 anos de idade, Zhengfei é uma personalidade cultuada por seus funcionários - mesmo entre os muitos que nunca o viram pessoalmente.


Um dos motivos que o tornaram popular foi a decisão de dividir o controle da Huawei com os funcionários que batessem suas metas - atualmente, ele tem apenas 1,4% de participação na companhia. Apesar de ainda ostentar o título de presidente da empresa, quem toma as decisões é um time de nove executivos que deliberam, em conjunto, sobre os rumos da companhia. "Como fundador e membro do conselho de administração, Zhengfei está presente em todas as decisões", diz Kevin Zhang, vice-presidente global de marketing da Huawei (como muitos executivos chineses, Zhang adotou um nome ocidental para facilitar a compreensão por parte de seus clientes internacionais). "Mas nossa gestão é totalmente profissional."

Juntamente com empresas como a BYD, uma das maiores fabricantes de pilhas e baterias do mundo, e a Foxconn, que, entre outros equipamentos, produz o iPhone, a Huawei foi uma das primeiras empresas a se instalar em Shenzhen, como parte de um experimento "capitalista" idealizado pelo governo liderado pelo camarada Deng Xiao Ping no final da década de 70. Ali era permitido importar insumos vindos de Hong Kong, localizada a apenas 30 quilômetros de distância, para produzir localmente os aparelhos. A crescente abertura da economia nos anos seguintes fez com que a demanda pelos equipamentos da Huawei explodisse - e a companhia atingisse seu primeiro bilhão de dólares em receita apenas dez anos depois de sua fundação. "Desde o início, sabíamos que seríamos grandes", diz Zhang. "Só não imaginávamos que conseguiríamos ultrapassar as gigantes europeias tão rapidamente." Desde 2004, a Huawei tem crescido, em média, 30% ao ano - desbancando a europeia NokiaSiemens do posto de número 2 do mundo em 2009. Hoje, o faturamento da líder Ericsson é 18% maior que o da Huawei, mas em termos de rentabilidade a chinesa supera de longe a companhia sueca: seu lucro foi de 2,7 bilhões de dólares em 2009, resultado cinco vezes melhor do que o de sua maior concorrente.

Para chegar a números extraordinários em tão pouco tempo, companhias chinesas como a Huawei costumam dividir sacrifícios com os funcionários, a maioria deles engenheiros dedicados à área de pesquisa e desenvolvimento. O almoço de meia hora é apenas uma das demonstrações desse esforço em nome do sucesso da companhia e - mais importante - em nome de um projeto de liderança global da própria China. Cerca de 3 000 empregados moram em alojamentos fornecidos pela empresa, pelo qual pagam um aluguel subsidiado de cerca de 100 dólares - metade do que seria pago num apartamento equivalente em Shenzhen.


Eles praticamente nunca saem da sede, numa simbiose entre a vida de trabalho e a pessoal. Mas, diferentemente da realidade de muitas companhias chinesas, a Huawei, pelo menos em sua aparência exterior, não é o que os americanos chamam de sweatshop, ou uma fábrica de suor. Seus alojamentos contam com uma área de lazer que inclui piscina, quadras de esporte e livraria - numa espécie de reprodução limitada do ambiente do Vale do Silício, na Califórnia. Os salários pagos - cerca de 200 dólares por mês para o pessoal do chão de fábrica - não podem ser chamados de infames, de acordo com os padrões chineses. As jornadas, porém, são exaustivas, uma realidade frequentemente relacionada ao estilo chinês de trabalhar. Só neste ano, a vizinha Foxconn, maior empresa de manufatura por encomendas do mundo, registrou 12 suicídios de funcionários. Na Foxconn é comum que os empregados, normalmente migrantes vindos de regiões agrárias da China, façam até 36 horas extras por mês - o que é permitido pelas leis do país. Nos últimos três anos, cinco funcionários da Huawei "morreram de causas não naturais", um eufemismo encontrado pela companhia para tratar de suicídio. "Para cumprir as metas, muitos executivos continuam o trabalho em casa ou fazem hora extra. É extenuante", diz um funcionário da Huawei que pediu para não ser identificado.

O ritmo alucinante de trabalho é parte de uma cultura que ficou conhecida entre os concorrentes da fabricante como mais capitalista que o capitalismo. Quase 80% da remuneração dos altos executivos é variável, e pode chegar a 30 salários extras por ano. Quem bate as metas ganha o direito de adquirir ações da Huawei. Aqueles que não alcançam os objetivos são expelidos - há uma regra tácita que exige a demissão de 2% dos empregados com pior desempenho.

Em grande medida, a expansão da Huawei pode ser explicada por seus investimentos em inovação. Para o World Intellectual Patent Application, a agência das Nações Unidas responsável por proteger a propriedade intelectual, duas empresas têm se revezado no posto de número 1 do mundo em inovação nos últimos dois anos. Uma delas é a japonesa Panasonic, tradicional fabricante de eletrônicos e uma das maiores pesquisadoras de robótica do Japão. A outra é a Huawei. Em 2009, a empresa registrou 1 847 patentes - 11 vezes o número registrado pela aclamada Apple de Steve Jobs, que somou 159. Para alcançar esse número, foi preciso criar uma estrutura de pesquisa e desenvolvimento gigantesca.


Só no ano passado, os gastos com inovação chegaram a 2 bilhões de dólares. "O investimento em novas tecnologias tem permitido à Huawei cobrar preços até mais altos que os da concorrência", afirma Jouni Forsman, analista de tecnologia da consultoria Gartner Research. Ao todo, 45% de seus 95 000 funcionários dedicam-se à área de P&D, o dobro do registrado pela Ericsson. Como a China forma todos os anos uma horda de quase 2 milhões de engenheiros, que trabalham por cerca de 10 000 dólares ao ano - um quinto do que seria pago no Vale do Silício a um estudante recém-formado -, contratar mão de obra especializada não é problema. "A Huawei é hoje uma das empresas mais prestigiadas da China", diz André Almeida, diretor da GSM Association, entidade que reúne as maiores operadoras de telefonia celular do mundo. "Embora seja desconhecida do grande público, ela se tornou uma das maiores definidoras de tendências do setor. Quase 2 bilhões de pessoas no mundo são suas clientes por meio das operadoras."

Essa expansão internacional começou a se desenhar, ainda de forma tímida, em meados dos anos 90, em mercados como Hong Kong e Índia. Depois do estouro da bolha da internet, em 2000, as grandes empresas de telefonia da Europa e da América Latina começaram a buscar soluções para reduzir custos. Encontraram a Huawei. "Eles chegavam a oferecer preços até 70% menores que os dos concorrentes", afirma o diretor de redes de uma operadora europeia (a Huawei nega que tenha cobrado preços tão baixos, mas admite que havia uma diferença de cerca de 30%). O salto seguinte veio em 2004, quando o governo chinês, por meio de seu banco de desenvolvimento, colocou à disposição da empresa uma linha de crédito de 10 bilhões de dólares para que os clientes pudessem financiar a compra de seus equipamentos com juros próximos a zero - e sem a necessidade de efetuar nenhum pagamento nos primeiros dois anos após a assinatura do contrato. Com essa oferta praticamente irrecusável, a Huawei conquistou clientes como a britânica British Telecom e a brasileira Oi, que mantém com a fornecedora uma linha de crédito de 1,5 bilhão de reais.

O súbito crescimento exigiu da Huawei algumas adaptações. Uma delas pode ser observada já na estrada que dá acesso a seus portões. Como quase 50 000 pessoas passam pela companhia todos os dias, o governo de Shenzhen decidiu estabelecer um pedágio na entrada - para entrar, é preciso pagar 4 renmimbis (pouco mais de 1 real). "Nossa sede é praticamente uma cidade", diz Zhang.


"O governo já tem planos de estabelecer um bairro anexo à empresa, nos moldes da Toyota City, no Japão. O projeto deve ficar pronto nos próximos cinco anos." Para receber tantos visitantes internacionais - são pelo menos dez presidentes de operadoras por mês -, a companhia mantém uma frota de 70 carros de luxo, entre Mercedes-Benz modelo C-Class, Audi A8 e BMW. O showroom de 300 metros quadrados, em que é possível verificar em tempo real como funcionam tecnologias como TV por IP e internet de altíssima velocidade, acaba de ser duplicado. Cada pedaço da empresa - o centro de logística, a linha de produção ou o sigiloso data center - é sempre apresentado por uma recepcionista impecavelmente vestida de tailleur azul-marinho. Andar sem algum tipo de escolta pelos corredores da empresa é algo virtualmente impossível.

Fora da China, o crescimento da Huawei tem encontrado alguma resistência nos últimos tempos - sobretudo por causa dos laços próximos que Zhengfei, o fundador, mantém com o governo chinês. A suspeita é que o crescimento da empresa seja secretamente financiado por recursos do Tesouro. "Como a empresa é fechada, ninguém sabe ao certo de onde vem tanto dinheiro", diz o executivo de uma concorrente. "Nem quais seriam os reais interesses do governo chinês ao, supostamente, financiar essa expansão." Em 2008, a Huawei teve de desistir de sua ofensiva para adquirir a fabricante de computadores 3Com depois de enfrentar uma dura oposição do Senado americano, receoso de que a empresa pudesse ter acesso a tecnologias usadas pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Em maio, foi a vez de o governo indiano proibir as operadoras do país de adquirir equipamentos de fornecedores chineses, também alegando questões de segurança. "Ainda existe certo preconceito em relação a companhias ou produtos chineses", diz Zhang. "Estamos trabalhando duro para provar que somos uma empresa como qualquer outra no mundo." Ao que tudo indica, os executivos da Huawei ainda terão um bocado de trabalho - e restringir o horário de almoço não será suficiente.

Acompanhe tudo sobre:Edição 0970[]

Mais de Revista Exame

Aprenda a receber convidados com muito estilo

"Conseguimos equilibrar sustentabilidade e preço", diz CEO da Riachuelo

Direto do forno: as novidades na cena gastronômica

A festa antes da festa: escolha os looks certos para o Réveillon