Satya Nadella, da Microsoft: a demanda pelo serviço de computação em nuvem da empresa subiu 59% (Anshuman Poyrekar/Getty Images)
Beatriz Correia
Publicado em 2 de julho de 2020 às 05h30.
Última atualização em 11 de maio de 2021 às 14h48.
A ideia surgiu ainda em 2003, quando dois engenheiros de software da Amazon tiveram uma sacada genial. Eles propuseram que o gigante do varejo online usasse sua vasta infraestrutura tecnológica para hospedar os serviços digitais de outras companhias. Fazia sentido, uma vez que a capacidade de processamento dos data centers da Amazon ficava ociosa durante boa parte do tempo. Passados mais de 15 anos, a divisão de computação em nuvem da empresa, conhecida como Amazon Web Services (AWS), tornou-se um negócio de 35 bilhões de dólares e uma operação que se mostrou vital durante a pandemia do novo coronavírus — não só para a Amazon mas também para empresas de diversos segmentos.
Se o leitor participou de uma reunião por videoconferência, assistiu a uma série da Netflix, usou um programa de edição de textos online, fez um pedido a um restaurante por meio de um aplicativo ou realizou algum pagamento usando uma plataforma digital, é bem provável que tenha utilizado uma das redes públicas da Amazon ou de um dos outros gigantes provedores de computação em nuvem, como Microsoft, Google, IBM, Dell, Oracle, HPE e Cisco.
Nenhuma empresa deve sair ilesa da crise. No entanto, as companhias de tecnologia tendem a ser beneficiadas pela digitalização impulsionada (para não dizer forçada) pela pandemia. Em todo o mundo, milhares de companhias das mais variadas áreas tiveram de migrar, às pressas, suas operações para o ambiente digital, o que provocou uma corrida aos serviços das provedoras de nuvem. No primeiro trimestre deste ano, as três companhias líderes do setor (Amazon, Microsoft e Google) tiveram juntas um incremento de 6,1 bilhões de dólares no faturamento de suas unidades de computação em nuvem, um aumento de 32% em relação ao ano passado.
Ao todo, elas faturaram 25,2 bilhões de dólares nos primeiros três meses do ano. Só na Microsoft, a demanda pela plataforma de computação em nuvem Azure saltou 59%. No Google, o faturamento da área subiu 52%. “A covid-19 mudou a percepção que muitas empresas tinham sobre a computação em nuvem”, afirma Thomas Kurian, presidente global da unidade de nuvem do Google (leia entrevista abaixo). Por esse motivo, o setor de computação em nuvem tende a ser um dos mais resilientes na crise.
Enquanto os gastos com tecnologia da informação devem cair 8% no mundo em 2020, o mercado de nuvem deverá crescer 19%, de acordo com a consultoria Gartner. Olhando para a frente, a digitalização dos negócios é um caminho sem volta. Nos próximos quatro anos, a expectativa é que o mercado de computação em nuvem dobre de tamanho, chegando a 550 bilhões de dólares. “Quando sairmos da pandemia, as empresas terão de investir em tecnologia. O digital é o caminho para superar a crise”, diz John-David Lovelock, vice-presidente de pesquisa da Gartner.
Mais do que nunca, os serviços online foram fundamentais para que as empresas pudessem manter suas operações. “O mundo só não parou por causa dos serviços de nuvem. Eles também são os heróis desta pandemia”, diz Pietro Delai, gerente de pesquisa da consultoria IDC para a América Latina. A expectativa de maior demanda reflete-se no preço das ações das companhias de tecnologia.
Depois de uma queda brusca nos meses de fevereiro e março, o valor dos papéis de empresas como Microsoft e Amazon já haviam se recuperado em junho e as companhias voltaram a bater recordes de valor de mercado. Juntas, as duas valem mais de 2,8 trilhões de dólares, três vezes o valor de todas as 330 companhias brasileiras listadas na B3 (760 bilhões de dólares). “A gente está apenas no início de uma jornada, dado que hoje só 5% do investimento global de TI é gasto em nuvem. Há uma oportunidade grande para crescer”, diz Cleber Morais, presidente da AWS no Brasil.
Um dos símbolos da transformação digital na pandemia é a plataforma de videoconferência Zoom, cujas ações valorizaram 270% em 2020. A empresa projeta que o faturamento quase triplicará neste ano fiscal, chegando a 1,8 bilhão de dólares. O Zoom já vale 72,4 bilhões de dólares, mais do que a montadora Ford ou a companhia aérea American Airlines. E o número de participantes diários em reuniões passou de 10 milhões em dezembro para mais de 300 milhões em abril.
No fim de fevereiro, a empresa já tinha conquistado mais novos usuários do que em todo o ano de 2019. Em um cenário de home office prolongado, o objetivo do Zoom e dos concorrentes Microsoft Teams, Google Meet e outros não é só surfar a onda na pandemia, mas aproveitar a mudança de comportamento de longo prazo acelerada por ela.
Numa empresa como a IBM, outra importante fornecedora de computação em nuvem, a crise fez com que as equipes tivessem de correr para auxiliar os clientes a migrar para a nuvem. O primeiro desafio foi configurar todos os sistemas para que os funcionários pudessem trabalhar remotamente. Depois, o objetivo foi ajudar os clientes a criar aplicações já adaptadas ao novo cenário digital. “Em uma grande varejista, vimos um aumento do comércio eletrônico de 40%, 45%”, afirma Ana Paula Assis, presidente da IBM para a América Latina. “Clientes com resistência à tecnologia não tiveram alternativa senão buscar essa solução.”
Foi com um serviço de nuvem, fornecido pela AWS, que a empresa de meios de pagamentos Cielo foi capaz de expandir um novo serviço criado no ano passado, chamado Super Link. A ferramenta permite aos lojistas enviar um link a um cliente (pelo WhatsApp, por exemplo) para que ele faça o pagamento remotamente. Antes da pandemia, 3.000 estabelecimentos estavam cadastrados para utilizar o recurso.
Em poucos meses, esse número saltou para 800.000 em todo o país e a quantidade de transações subiu 650%. “A vantagem da nuvem é o tempo para desenvolver uma solução desse tipo. E nos dá uma flexibilidade de ligar e desligar a infraestrutura de forma muito simples”, diz Danilo Zimmermann, vice-presidente de projetos e tecnologia da Cielo.
A digitalização favoreceu também as companhias brasileiras do setor de tecnologia. Uma delas é a empresa de serviços de internet Locaweb. A empresa de 22 anos abriu o capital em fevereiro. E o coronavírus não atrapalhou os planos. Os meses da pandemia foram os melhores da história. Em abril, o número de novas lojas online que usam o serviço saltou 252%.
“Somos um ecossistema em que as PMEs encontram tudo o que estão precisando agora para se digitalizar”, diz Fernando Cirne, presidente da Locaweb. Uma das estrelas do portfólio é o app para restaurantes Delivery Direto, comprado em 2018, cujo o número de clientes quadruplicou. Com a demanda em alta, a empresa fez 152 contratações — e há mais de 70 vagas em aberto. A ação, que começou sendo vendida na casa dos 20 reais, acumula alta de mais de 100%.
Se a crise assusta alguns e empolga outros, há quem encare a pandemia de forma mais natural. “Nós crescemos em todas as crises. Em 2008 e 2009, dobramos de tamanho sem realizar nenhuma aquisição”, afirma Marco Stefanini, fundador da Stefanini, uma das maiores empresas de tecnologia do Brasil, com um faturamento estimado em 3,3 bilhões de reais em 2019. Para este ano, a previsão é que haja um crescimento de 15% a 20%. O grande trunfo da companhia foi um contrato de cinco anos firmado com um cliente americano, de nome não revelado, no valor de 100 milhões de dólares.
A empresa apostou em um plano de aceleração dos negócios e alcançou em três meses algumas das metas previstas para os próximos três anos. A companhia atende clientes dos mais diversos segmentos. A queda no volume de negócios da indústria automotiva e das redes de academias foi compensada pela alta no setor financeiro e por um forte crescimento do varejo impulsionado pelo comércio eletrônico.
Com o capital aberto na B3 desde 2013, a companhia de software para o varejo Linx viu o valor de suas ações cair e se recuperar no primeiro trimestre. A alta recente se deu pelo impulso ao comércio eletrônico. Um dos pontos-chave para a virada foi a aquisição de duas empresas para auxiliar na digitalização do varejo. Em janeiro, a empresa adquiriu a fintech PinPag por 135 milhões de reais. No mês seguinte, pagou 17,6 milhões pela Neemo, uma plataforma de delivery de restaurantes.
“O timing não poderia ter sido melhor”, diz Alberto Menache, presidente da companhia. Segundo ele, as vendas em maio pela plataforma cresceram 350% em relação a janeiro, adicionando 540 restaurantes ao serviço. A plataforma de e-commerce, que atende desde varejistas tradicionais, como Walmart e Lojas Pernambucanas, até redes de padarias, lojas de conveniência e drogarias, teve um crescimento de 154% entre janeiro e maio.
Não serão só as empresas de capital aberto que sairão vencedoras da crise. Companhias bem posicionadas para atuar no mercado digital estão registrando crescimento significativo. Uma delas é a VTEX, que possui uma plataforma que unifica os canais de venda do varejo. Fundada em 1999, a empresa tem cerca de 3.000 clientes em 41 países, com escritórios em 16 cidades do mundo. No final de 2019, recebeu um aporte de 580 milhões de reais liderado pelo fundo japonês SoftBank.
Em maio e junho de 2020, as vendas online pela plataforma subiram mais de 100% em relação ao ano passado no Brasil. “A demanda aumentou nos mais diversos níveis. Desde aquela loja que abriu no digital durante a pandemia até a outra que achava que estava preparada e não deu conta do número de pedidos”, diz Rafael Forte, presidente da VTEX no Brasil. A equipe de vendas, composta de 30 pessoas em março, dobrou de tamanho.
Um cliente da VTEX que teve de repensar sua estratégia digital foi a varejista de moda C&A. Com o fechamento das mais de 280 lojas físicas, a empresa precisou adotar uma solução para que seus vendedores continuassem trabalhando. “Desenvolvemos em um dia uma solução de social selling”, diz Forte, da VTEX. Por meio do WhatsApp, o funcionário conversa com o cliente, apresenta os produtos, monta um carrinho de compras virtual e envia um link para fechar a venda. No total, 500 funcionários da rede trabalham com o WhatsApp.
Empresas que atuam no segmento de educação online foram acionadas como nunca durante a pandemia. A startup mineira Samba Tech, fundada por Gustavo Caetano em 2008, é uma delas. Especializada em comunicação corporativa com a utilização de vídeos online, a companhia recebeu dezenas de pedidos de grupos de educação em busca de ajuda para montar um modelo seguro de ensino remoto.
“Nos primeiros 100 dias de home office, a gente teve mais de 1,7 milhão de alunos novos na plataforma”, diz Caetano. Além dos clientes, a empresa ofereceu seus serviços à rede pública de ensino de Minas Gerais. No total, de janeiro a abril, 19 milhões de pessoas acessaram vídeos dentro da plataforma. De fevereiro a abril, o consumo de vídeos na plataforma via dispositivos móveis subiu 308%; e por computadores, 506%.
Para sustentar o aumento do volume, a empresa contratou mais de 40 pessoas. A Samba Tech também lançou um produto de videoconferência, que estava sendo testado desde 2019, em parceria com a Cisco, para atender a grupos de educação e empresas. Na pandemia, foram conquistados 40 novos clientes. A companhia atualmente tem mais de 400 clientes, entre eles os grupos Cogna, Ser Educacional e Damásio. “A demanda por ensino à distância era crescente, mas agora aumenta mais rapidamente — e a gente continua apostando nisso”, afirma Caetano.
Em todos os setores, a pandemia tem mostrado que a necessidade de adaptar-se ao digital não é mais uma questão de escolha, e sim de sobrevivência. O uso de ferramentas digitais, que já era uma realidade antes da covid-19, só deve acelerar. Um levantamento recente realizado pelo banco suíço UBS estima que na próxima década o volume de dados que trafegam pela internet crescerá dez vezes, chegando a 456 zettabytes, um volume suficiente para ocupar 840 iPhones de 64 gigabytes para cada habitante do planeta.
E, até lá, o número de pessoas com acesso à internet alcançará 6,6 bilhões — 2 bilhões além do nível atual. “A gente tem a oportunidade de olhar as características e as condições dessa nova realidade de outra perspectiva. O digital vai ser o novo normal para a grande maioria das empresas”, afirma Fernando Lemos, diretor de tecnologia da Microsoft no Brasil. É uma virada que veio para ficar.
Para o chefe da unidade de nuvem do Google, a pandemia ressaltou a importância dos negócios online | Filipe Serrano
A pandemia do novo coronavírus impôs uma nova realidade para as empresas. E, mais do que nunca, as plataformas digitais são as ferramentas que possibilitam a continuidade das operações. Essa é a visão de Thomas Kurian, presidente global da unidade de computação em nuvem do Google. A área é a que mais cresce no gigante de tecnologia. Seu faturamento mais do que dobrou em dois anos, passando de 4 bilhões de dólares em 2017 para 8,9 bilhões em 2019. No primeiro trimestre deste ano — na primeira fase da pandemia —, o aumento foi de 52%. À EXAME, Kurian falou sobre os reflexos da digitalização.
Como a pandemia impactou a unidade de computação em nuvem do Google?
Houve um forte crescimento da demanda. Só para dar um exemplo: temos hoje mais de 300 milhões de pessoas utilizando nossa ferramenta de videoconferência. As pessoas querem se conectar umas com as outras. É um crescimento quatro, cinco, até dez vezes maior. Nunca vi nada parecido.
Mas isso ocorre só no serviço de videoconferência?
Não. Mesmo em outros serviços também houve crescimento.
O que foi feito para se adaptar a esse aumento na demanda?
Começamos a nos planejar em janeiro. Vimos que a covid-19 provavelmente não ficaria contida na China. A primeira preocupação era cuidar dos funcionários. Em segundo lugar, aumentamos a capacidade de processamento para sustentar a alta demanda. E, em terceiro, preparamos as áreas de atendimento. O coronavírus fez o digital tornar-se um serviço crucial. Nossa nuvem é a infraestrutura digital fundamental para muitas empresas. Temos de garantir que tudo funcione bem.
Quais setores lideram a transformação?
Seis segmentos estão mudando mais rapidamente: varejo, saúde, o setor financeiro, mídia e comunicação, telecomunicações e, por fim, os serviços governamentais.
O que a pandemia mostrou sobre o papel da tecnologia?
A covid-19 mudou a percepção das empresas sobre a computação em nuvem. Historicamente, sempre houve uma preocupação com a segurança das redes públicas. A pandemia mostrou que as soluções de nuvem estão maduras e são confiáveis. E ficou claro que é um serviço flexível. Essas mudanças levam tempo, mas agora essa tecnologia deve se tornar padrão para toda companhia.