Revista Exame

Hidrelétrica de Santo Antônio é uma usina de problemas

Prejuízos recorrentes, dívida altíssima, um banco pouco disposto a negociar e acionistas sem dinheiro. Essa é a situação da 4ª maior geradora de energia

Hidrelétrica de Santo Antônio no período de obras: as dificuldades começaram no projeto | Mario Friedlander/PULSAR IMAGEM /  (Mario Friedlander/PULSAR IMAGEM //Divulgação)

Hidrelétrica de Santo Antônio no período de obras: as dificuldades começaram no projeto | Mario Friedlander/PULSAR IMAGEM / (Mario Friedlander/PULSAR IMAGEM //Divulgação)

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Maria Luíza Filgueiras

Publicado em 5 de outubro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 05h56.

No eufórico Brasil de 2007, um consórcio formado por grandes empresas brasileiras, privadas e estatais, arrematou a concessão para construir a usina hidrelétrica de Santo Antônio em plena Floresta Amazônica. Uma das grandes obras planejadas pelo governo federal no Programa de Aceleração do Crescimento, Santo Antônio era um projeto grandioso — e polêmico. As projeções indicavam que a obra demandaria cimento suficiente para construir 40 estádios do tamanho do Maracanã e mais de 100 000 toneladas de aço, com as quais seria possível erguer 18 Torres Eiffel. Quando pronta, a usina atenderia 45 milhões de pessoas nas regiões Norte, Sudeste e Sul. Mas, para formar uma área grande o suficiente para abrigar uma obra desse porte, o governo desapropriou terras de famílias de pescadores e agricultores no entorno do Rio Madeira, onde a usina seria construída, e comunidades indígenas foram afetadas. Ao longo de oito anos, as empresas do consórcio — as então onipresentes empreiteiras Andrade Gutierrez e Odebrecht, além das companhias estatais de energia Cemig e Furnas — e um fundo da Caixa Econômica Federal enfrentaram embates regulatórios e protestos de ambientalistas. Por isso e por dificuldades na construção, as obras atrasaram — em algumas fases do projeto, a demora chegou a nove meses — e o custo total atualizado do empreendimento passou de 12 para 20 bilhões de reais. A usina foi concluída em dezembro  e passou a funcionar com capacidade total neste ano. Em tese, o pior já deveria ter passado. Mas as dificuldades da empresa nunca foram tão grandes.

O maior problema da Santo Antônio é o endividamento, que aumentou com o atraso e a elevação brutal dos custos de construção. As dívidas somam 15 bilhões de reais, valor igual a 15 vezes a geração de caixa e a cinco vezes o faturamento. A empresa tem apenas 40 milhões de reais em caixa e precisa pagar 3 bilhões de reais até 2019. Além disso, a operação passa por um período complicado. A falta de chuvas tem obrigado as hidrelétricas do país (a Santo Antônio entre elas) a comprar energia no mercado para não interromper o abastecimento. Com o aumento da procura, os preços dispararam: no primeiro semestre, chegaram a 229 reais por megawatt-hora, ante 48 reais no mesmo período de 2016. Isso está elevando os custos operacionais. No caso da Santo Antônio, a alta foi de 123% no primeiro semestre deste ano. A empresa teve prejuízo de quase 500 milhões de reais nesse intervalo. “Temos uma estabilidade de receita de longo prazo, garantida por contratos de venda de energia e uma concessão de 35 anos. Mas nossos custos subiram num momento em que temos de pagar parcelas elevadas de nosso financiamento”, diz Roberto Junqueira Filho, presidente da Santo Antônio Energia.

Marcelo Odebrecht: os acionistas da usina não fizeram o aporte de capital acordado | Cassiano Rosário/Futura Press

A companhia não tem atrasado os pagamentos aos credores. Pelo modelo de financiamento, suas receitas caem numa conta bancária externa à empresa, e os bancos credores (BNDES e instituições privadas) descontam as parcelas correspondentes. O restante é transferido à Santo Antônio. Como a geração de caixa é insuficiente, a empresa está no prejuízo. O principal credor da empresa é o BNDES, que emprestou 10 bilhões de reais ao consórcio ao longo do período de obras. EXAME apurou que, há cinco meses, os acionistas e administradores da Santo Antônio tentam convencer o banco a renegociar a dívida — sem sucesso. A companhia quer reduzir o valor das parcelas pelos próximos três anos, sem alteração do prazo do financiamento. Três fontes com conhecimento do assunto afirmam que, recentemente, o BNDES endureceu o tom das conversas e disse que não vai renegociar — mesmo depois dos apelos dos bancos privados. O BNDES, segundo pessoas que acompanham a tentativa de negociação, ficou irredutível quando os acionistas desistiram de fazer um aporte de capital, entre 700 milhões e 1 bilhão de reais, que havia sido acordado. “Se cumprirem o trato, não haverá necessidade de reestruturação da dívida”, diz um executivo de banco (o BNDES não deu entrevista). Junqueira, presidente da Santo Antônio, diz que os acionistas já colocaram dinheiro extra nos últimos anos e que a proporção entre capital e dívida na usina é maior do que a de outros projetos de infraestrutura.

À VENDA

Como se sabe, os acionistas da Santo Antônio deixaram de ser grandes potências nacionais com dinheiro sobrando. Com executivos condenados na Operação Lava-Jato, Andrade Gutierrez e Odebrecht diminuíram de tamanho e estão vendendo ativos para pagar as multas estipuladas pela Justiça e conseguir recursos para tocar suas operações. A Cemig passa por problemas financeiros: perdeu três concessões que representavam 30% de sua geração de caixa e anunciou um plano de desinvestimentos e oferta de ações para tentar reduzir sua dívida de 13 bilhões de reais (que corresponde a quatro vezes a geração de caixa). Furnas também está endividada. Santo Antônio virou mais um problema para esses acionistas e, por isso, todos querem vender suas participações na usina. Empresas chinesas de energia demonstraram interesse em comprar. A mineira Cemig recebeu uma oferta de compra da companhia chinesa de energia SPIC em junho, mas o negócio não saiu. O conselho de administração da Cemig queria um valor maior, assim como a Andrade Gutierrez, que tem suas ações vinculadas às da Cemig na usina. EXAME apurou que o prazo de exclusividade com a SPIC já acabou, mas não apareceram novos interessados. Como o governo fez um leilão de usinas em setembro, a SPIC comprou uma usina da Cemig no leilão. “Os chineses continuam interessados, mas há muita usina de qualidade à venda além da Santo Antônio”, diz um advogado ligado aos investidores. A Odebrecht também tentou vender sua participação na Santo Antônio a grupos chineses, mas não chegou a um acordo. Furnas diz que “está sempre interessada em negócios que tragam vantagem para a companhia”. Os demais acionistas não comentaram.

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Um fato que não ajuda a atrair compradores é a citação da usina em seis inquéritos da Operação Lava-Jato. Os investigadores apuram se houve pagamentos irregulares para beneficiar Andrade Gutierrez e Odebrecht na licitação e em aprovações regulatórias. A empresa diz que não há como prever se será impactada por alguma investigação referente a seus acionistas. Aos potenciais interessados em investir na companhia, os acionistas dizem que  a usina tem créditos a receber. A empresa abriu um processo arbitral contra o consórcio construtor da usina, formado por Odebrecht, Andrade Gutierrez e mais cinco fabricantes de equipamentos, reclamando do atraso da obra. O consórcio apresentou à empresa um cronograma de antecipação de entrega de algumas unidades geradoras em 2012 — com base nesse cronograma, Santo Antônio fechou contratos para a venda de energia. Como parte dos prazos não foi cumprida, a hidrelétrica teve de comprar energia mais cara no mercado para cumprir os contratos, o que aumentou seus custos. EXAME apurou que o valor da disputa é de 590 milhões de dólares (1,9 bilhão de reais na atual cotação), mas não há previsão de quando a sentença sairá. A relação entre consórcio e empresa já passou por outros conflitos. Em 2014, Odebrecht e Andrade suspenderam as obras por não receber pagamento. O presidente da Santo Antônio diz que as discussões de venda da empresa são feitas pelos acionistas e que não pode comentar o processo de arbitragem, porque ele é sigiloso.   

Sem alguma injeção de recursos, é difícil que a empresa honre todos os títulos de dívida, que respondem por 30% do endividamento total da companhia, segundo um relatório da agência de classificação de riscos Fitch. Esses papéis só vencem a partir de 2022, mas, até lá, há pagamento de juros. “O projeto permanece necessitando de aportes adicionais de capital em 2017 e 2018 para honrar suas obrigações”, diz a Fitch. A liquidez da empresa, continua a agência, “é insuficiente para cobrir os déficits de fluxo de caixa”. Por contrato, os vencimentos de dívida podem ser antecipados caso a companhia não consiga reduzir o nível de endividamento ou tenha algum problema operacional. Nesse caso, bancos e detentores de títulos têm as dívidas vinculadas. Ou seja, caso haja antecipação de um tipo de dívida, todas as outras ficam sujeitas às mesmas condições.

Leilão de usinas em setembro: empresas estrangeiras preferiram comprar empresas da Cemig nesse dia | HÉLVIO ROMERO/Estadão conteúdo

Um risco adicional é a falta de previsibilidade dos custos da usina. Com a crise hídrica dos últimos cinco anos, as geradoras passaram a brigar na Justiça para não ser obrigadas a arcar com todos os custos extras de compra de energia no mercado para cumprir seus contratos. Para tentar solucionar esse problema, o governo criou uma espécie de seguro para as hidrelétricas, que pode ser usado quando as chuvas ficam abaixo do esperado. As usinas pagam para contratar o seguro, e esses recursos são depositados numa conta do governo, que pode indenizar as empresas quando as chuvas ficam abaixo de um piso preestabelecido. Quando o seguro é insuficiente, o custo é transferido ao consumidor por meio de tarifas — no fim de setembro, por exemplo, a Aneel, agência reguladora do setor elétrico, comunicou que haverá um reajuste neste mês por causa da falta de chuvas. O problema para as companhias, dizem os analistas, é que o modelo não cobre os contratos de energia negociados no mercado livre, em que a maioria das indústrias compra energia. No fim de setembro, a Associação Brasileira de Geradoras de Energia apresentou ao Ministério de Minas e Energia sugestões para aumentar a cobertura desse seguro, mas os especialistas acreditam que o debate levará meses. “Essa indefinição é um risco que assusta alguns investidores”, diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, um instituto de pesquisa. “A previsão é que o consumo de energia aumente em 2018, acompanhando o crescimento do PIB, mas sem perspectiva de melhora meteorológica. Ou seja, será mais um ano desafiador”, diz Nilmar Foletto, diretor financeiro da Santo Antônio. Sem a ajuda de São Pedro ou do BNDES, acionistas e executivos da usina terão de se virar para resolver seus problemas sozinhos. 

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