Revista Exame

A globalização do desapego à lei, por Vargas Llosa

Para Mario Vargas Llosa, ganhador do Nobel de Literatura, o desapego às regras no mundo é a maior prova do desprestígio da democracia nas sociedades contemporâneas. Leia trechos de seu último livro, A Civilização do Espetáculo, recém-lançado no Brasil

Londres: até os ingleses, que acreditavam que as leis eram bem concebidas e moralmente defensáveis, estão mais céticos (Veronika Lukasova/LATINSTOCK)

Londres: até os ingleses, que acreditavam que as leis eram bem concebidas e moralmente defensáveis, estão mais céticos (Veronika Lukasova/LATINSTOCK)

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Da Redação

Publicado em 15 de agosto de 2013 às 10h29.

 "Um aspecto nevrálgico de nossa época é o desapego à lei, que contribui para enfraquecer a democracia. Atenção, não se deve confundir esse desapego à lei com a atitude rebelde ou revolucionária de quem quer destruir a ordem legal existente porque a considera intolerável e aspira substituí-la por outra mais equitativa e justa.

O desapego à lei nasceu no seio dos estados de direito e consiste numa atitude cívica de desprezo ou desdém pela ordem legal existente e na indiferença e anomia moral que autoriza o cidadão a transgredir e burlar a lei quantas vezes puder para benefício próprio, principalmente lucrando, mas muitas vezes também para simplesmente manifestar desprezo, incredulidade ou zombaria em relação à ordem existente. Não são poucos os que, na era da civilização da diversão, violam a lei para divertir-se, como quem pratica um esporte de risco.

Uma explicação que se dá para o desapego à lei é que frequentemente as leis são malfeitas, não são ditadas para favorecer o bem comum, mas sim a interesses particulares, ou são concebidas com tanta obtusidade que os cidadãos se veem estimulados a esquivar-se delas. É óbvio que, se um governo sobrecarregar os contribuintes abusivamente de impostos, estes se verão tentados a fugir de suas obrigações tributárias.

As más leis não contrariam apenas os interesses dos cidadãos comuns, mas também desprestigiam o sistema legal e fomentam esse desapego à lei que, como um veneno, corrói o estado de direito.

Sempre houve maus governos e sempre houve leis disparatadas ou injustas. Mas, numa sociedade democrática, diferentemente das ditaduras, há maneiras de denunciar, combater e corrigir esses extravios através dos mecanismos de participação do sistema: liberdade de imprensa, direito de crítica, jornalismo independente, partidos de oposição, eleições, mobilização da opinião pública, tribunais.

Mas para que isso ocorra é imprescindível que o sistema democrático conte com a confiança e a sustentação dos cidadãos, aos quais, sejam quantas forem suas falhas, ele sempre pareça perfectível. O desapego à lei resulta da destruição dessa confiança, da sensação de que o próprio sistema está podre e de que as más leis que ele produz não são exceções, e sim consequência inevitável da corrupção e dos tráficos que constituem sua razão de ser. 

Lembro que uma das impressões mais fortes que tive, em 1966, quando fui morar na Inglaterra — havia passado os sete anos anteriores na França —, foi descobrir esse respeito, poderia dizer natural — espontâneo, instintivo e racional ao mesmo tempo —, do inglês comum pela lei.

A explicação parecia ser a crença firmemente arraigada nos cidadãos de que, em geral, as leis eram bem concebidas, de que sua finalidade e fonte de inspiração era o bem comum, de que, por isso mesmo, tinham legitimidade moral: portanto, aquilo que a lei autorizava estava bem e era bom, e o que ela proibia estava mau e era ruim.


Surpreendi-me porque na França, na Espanha, no Peru e na Bolívia, países onde morara antes, não tinha percebido nada semelhante. Essa identificação entre lei e moral é uma característica anglo-saxônica e protestante, não costuma existir nos países latinos nem hispânicos.

Nestes últimos os cidadãos tendem mais a resignar-se à lei do que a ver nela a encarnação de princípios morais e religiosos, a considerar a lei como um corpo estranho (não necessariamente hostil nem antagônico) às suas crenças espirituais.

De qualquer maneira, se essa distinção era verdadeira nos bairros em que vivi em Londres, provavelmente já não o é na atualidade, pois, em grande parte graças à globalização, o desapego à lei igualou países anglo-saxões a latinos e hispânicos.

O desapego pressupõe que as leis são obra de um poder que não tem outra razão de ser senão a de servir a si mesmo, ou seja, às pessoas que o encarnam e administram, e que, portanto, as leis, os regulamentos e as disposições que emanam dele têm como lastro o egoísmo e os interesses particulares e de grupos, o que exonera moralmente o cidadão comum de cumpri-los.

A maioria costuma acatar a lei porque não tem outra opção, por medo, ou seja, pela percepção de que há mais prejuízo que benefício em tentar infringir as normas, mas essa atitude enfraquece tanto a legitimidade e a força da ordem legal quanto das pessoas que delinquem ao infringi-las. Isso quer dizer que, no que se refere à obediência à lei, a civilização contemporânea também representa um simulacro, que, em muitos lugares e com frequência, se converte em pura farsa.

Em nenhum outro campo se vê melhor esse generalizado desapego à lei hoje em dia do que no reinado onipresente da pirataria de livros, discos, vídeos e demais produtos audiovisuais, principalmente a música, que, quase sem obstáculos e até — seria possível dizer — com o beneplácito geral, fincou raízes em todos os países da Terra.

No Peru, por exemplo, a pirataria de vídeos e filmes provocou a falência da cadeia Blockbuster, e desde então os peruanos que gostam de ver filmes no televisor, mesmo querendo, não conseguem adquirir DVDs legais porque estes quase não existem no mercado, salvo em algumas poucas lojas que importam alguns títulos e os vendem por preço altíssimo. Nós que, por uma questão de princípio, resistimos a comprar filmes piratas somos um punhado ínfimo de pessoas, consideradas (não sem alguma razão) imbecis.

A Alfaguara, editora que publica meus livros, calcula que, para cada livro meu legítimo vendido no Peru, vendem-se seis ou sete piratas. (Uma das edições piratas de meu romance A Festa do Bode foi impressa na gráfica do Exército!) Numa das últimas vezes em que estive em Roma, precisei acompanhar uns amigos turistas a uma grande “feira de imitações” (piratas de roupa e sapatos de grandes marcas) que, com etiqueta e tudo, se vendiam por um quarto ou um quinto do preço das peças legítimas.

De maneira que esse desapego à lei não é apenas predisposição do Terceiro Mundo. No Primeiro também começa a fazer estragos e ameaça a sobrevivência das indústrias e dos comércios que operam dentro da legalidade. 

O grande desprestígio da política relaciona-se sem dúvida com a ruptura da ordem espiritual que, no passado, pelo menos no mundo ocidental, funcionava como freio aos exageros e excessos cometidos pelos donos do poder.

Ao desaparecer essa tutela espiritual da vida pública, prosperaram todos os demônios que degradaram a política e induziram os cidadãos a não ver nela nada que seja nobre e altruís­ta, e sim uma atividade dominada pela desonestidade.”

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