Revista Exame

Como fechar uma empresa pública é uma verdadeira saga no Brasil

O processo de liquidação da estatal Rede Ferroviária Federal já dura duas décadas e ainda gera disputas

Trens da Rede Ferroviária Federal: enroscados, assim 
como a extinção 
da empresa (Rubens Chaves/Pulsar Imagens)

Trens da Rede Ferroviária Federal: enroscados, assim como a extinção da empresa (Rubens Chaves/Pulsar Imagens)

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Flávia Furlan

Publicado em 26 de abril de 2018 às 05h00.

Última atualização em 26 de abril de 2018 às 05h00.

O estádio Vila Capanema, em Curitiba, já foi o terceiro maior do país. Com capacidade para 20.083 espectadores, só perdia para o paulista Pacaembu e para o carioca São Januário quando foi inaugurado em 1947. Pouco tempo depois, foi uma das arenas que receberam jogos da Copa do Mundo de 1950. Mas essa não é a única história associada ao Capanema. O estádio é alvo de uma disputa na Justiça que já dura quase meio século. Construído num terreno da empresa ferroviária Paraná-Santa Catarina, o campo abrigava o time de futebol dos funcionários, o Ferroviário, e recebeu o nome de um ex-superintendente da empresa, Durival Britto e Silva.

Por duas décadas, o Ferroviário treinou e jogou ali, até que em 1971 se fundiu com outros dois times, formando o Colorado Esporte Clube, que anos depois viraria o Paraná Clube. Foi aí que todo o rolo começou. A Paraná-Santa Catarina, autarquia criada por Getúlio Vargas em 1942, havia sido encampada pela Rede Ferroviária Federal, e a nova proprietária entrou com pedido de posse do terreno por não ter relação afetiva nem jurídica com o clube de futebol.

Em 1995, o Paraná Clube ganhou o caso na Justiça estadual. Mas a decisão não encerrou a disputa por completo. A Rede entrou com nova ação. Logo depois, foi iniciado o processo de privatização do setor ferroviário, com a realização de uma série de leilões de concessão até 1998. No ano seguinte, o governo decretou a liquidação da Rede — um processo que até hoje se arrasta.

Em 2007, devido à demora na extinção da estatal, foi tentada uma jogada para acelerar o processo. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou uma medida provisória que transferia para a União todos os bens da antiga Rede. Com isso, o governo herdou o caso do Vila Capanema — entre muitos outros enroscos — e o levou para a Justiça federal. Em 2016, foi reconhecido que a posse do estádio é da União, desde que ela faça um ressarcimento das melhorias ali realizadas pelo time. O Paraná Clube disse que ainda pode recorrer da decisão, mas que está aberto a uma negociação amigável. Não há previsão de quando o caso vai terminar.

Vila Capanema: alvo de disputa entre o Paraná Clube e o governo federal | Zig Koch/Pulsar Imagens

Essa é só mais uma herança do processo de liquidação da Rede Ferroviária Federal, que já demora duas décadas, com um rastro de pendências por resolver. Criada em 1957, a estatal absorveu 18 ferrovias regionais, que tinham trilhos, vagões, estações, mas também itens sem relação nenhuma com o negócio, como o estádio de futebol em Curitiba e uma ilha em Angra dos Reis. Muitos imóveis vieram junto com as empresas absorvidas porque elas eram obrigadas a fazer incorporações — quando um terreno é adquirido para a construção de uma ferrovia, o novo dono é obrigado a tomar posse de tudo o que há nele, de casas e fazendas a fábricas.

A situação patrimonial da Rede Ferroviária é emblemática da desorganização que reina em boa parte dos ativos públicos. Muitos terrenos e bens da companhia não foram registrados adequadamente por negligência da administração, já que uma série de normas protege os bens de empresas públicas, por exemplo, contra o usucapião (a posse por uso comprovado durante cinco anos). O resultado: desde 2007, o governo federal mantém uma equipe de 236 servidores, a maioria remanescente da estatal, numa estrutura que custará 12 milhões de reais neste ano, com o objetivo de identificar os imóveis e os terrenos da Rede.

“Ainda temos de analisar 8 quilômetros lineares de folhas de papel, o que depende da liberação de recursos para a contratação de uma empresa terceirizada para ajudar no processo”, diz Cacio Antonio Ramos, servidor de carreira do Ministério dos Transportes que participa do processo de identificação do inventário da estatal. O governo federal deu um prazo, até julho, para os serviços terminarem, mas os inventariantes dizem que só conseguirão acabar a tarefa em dezembro.

O inventário é gigantesco. Até agora, foram transferidos 51.100 imóveis da Rede para a União — sem contar o que está arrendado para as ferrovias que foram privatizadas para prestar serviço de transporte de carga. Estão com as concessionárias 54.700 imóveis, 1.393 locomotivas, 43.335 vagões e 38.300 equipamentos, que oficialmente já foram transferidos para o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes. No total, o patrimônio é de 40 bilhões de reais.

De acordo com Ramos, a área total dos mais de 105.000 imóveis da Rede corresponde à do estado de Sergipe. O incrível é que o patrimônio imobiliário da estatal não para de crescer. Recentemente foram identificados terrenos da Rede até então desconhecidos, um em que está construído um hospital público e outro no Horto Florestal de Aimorés, ambos na cidade paulista de Bauru.

Ações trabalhistas

Identificar todos os bens é só parte do problema. A grande questão é o que fazer com eles depois disso. Para pagar ações trabalhistas que tramitam contra a Rede, alguns terrenos e imóveis no valor equivalente a 1,4 bilhão de reais foram reunidos num fundo sob a administração da Caixa criado em 2007. O dinheiro arrecadado com a venda de imóveis ficaria guardado como garantia para o pagamento de ações perdidas. Mas, passados dez anos, a soma dos imóveis vendidos alcançou apenas 250 milhões de reais.

Segundo EXAME apurou, o governo quer fechar o fundo e devolver os imóveis à Secretaria de Patrimônio da União, mais experiente na venda de ativos. Procurada, a Caixa não respondeu. Outro problema que vem com muitos terrenos é o passivo ambiental. O grupo do inventário fez um estudo em 80 áreas em instalações desativadas, como usinas de tratamento de peças e pátios de abastecimento, e identificou questões como vazamento de óleo em solo que nunca foram resolvidas. O governo precisa fazer estudos para saber quanto custaria remediar o problema.

Cerca de 5.100 ações decorrentes do processo de liquidação da Rede estão tramitando. É bem menos do que as 37.000 que havia em 2007, mas as causas remanescentes ainda envolvem 7 bilhões de reais em litígio. A maioria é de questões trabalhistas. Segundo EXAME apurou, a Advocacia-Geral da União estima que essas ações deverão levar mais cinco anos para ser resolvidas. No ano passado, o governo pagou 1,8 bilhão de reais ao fundo de pensão dos servidores da Rede Ferroviária, referentes à contrapartida da União que estava atrasada, encerrando uma discussão de duas décadas. Mas os servidores da CBTU, braço de transporte de passageiros urbanos, que foi desmembrado da Rede nos anos 90, reclamam 2,7 bilhões em atrasados relativos a seu fundo de pensão.

Os ativos da estatal continuam protagonizando novos embates. Em Santos, no litoral paulista, o governo federal tinha cedido temporariamente em junho de 2016 um terreno da Rede de 227.000 metros quadrados no bairro de Alemoa, um dos mais antigos da cidade. Ali, seria construído um novo acesso rodoviário ao porto, desafogando o trânsito de caminhões. Em abril, a Secretaria de Patrimônio da União revogou a cessão, atrasando o andamento do projeto. Procurada, a Companhia Docas de São Paulo, que opera o porto de Santos e receberia o terreno, não se manifestou. A secretaria diz que em 30 dias definirá o destino da área.

No auge, a Rede operou 39.000 quilômetros de trilhos e empregou 120.000 funcionários, treinados em 30 escolas próprias. Tudo isso ocorreu num momento em que disparou o número de empresas públicas no país: de 1950 e 1985, a União criou 240 estatais. Hoje, considerando também os estados e os maiores municípios, existem 426, sendo 146 federais — as nações mais ricas, em média, têm 67 estatais federais. “A Constituição permite a criação de uma estatal para garantir um interesse coletivo”, diz o economista Márcio Holland de Brito, diretor do Observatório das Estatais, mantido pela Fundação Getulio Vargas. “Mas não creio que a maioria delas esteja cumprindo esse objetivo.”

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O caso da Rede Ferroviária não é isolado. Se para abrir uma estatal basta uma lei, fechar é bem mais difícil. As empresas públicas seguem as mesmas regras das privadas, o que significa ter de resolver todos os passivos em curso antes de sua extinção, carregando o processo durante anos. A Indústria Carboquímica Catarinense, empresa federal que atuava em Imbituba, em Santa Catarina, desativou as operações na década de 90. De lá para cá, estava sob o controle da Petrobras, mas só foi fechada no ano passado.

No Rio de Janeiro, há quatro empresas em processos de liquidação que já duram até 22 anos, como no caso da Empresa Estadual de Viação. No Plano Nacional de Desestatização, lançado nos anos 90 para reduzir a presença do Estado na economia, o governo determinou o fechamento de 20 empresas públicas, entre elas a Lloydbras, de navegação, e a Embrafilm, distribuidora de filmes. Mas ainda há processos dessas empresas rolando na Justiça. Apenas uma desapropriação referente à Portobrás, estatal que atuava na administração portuária, feita no Porto Sotave, em Belém, no Pará, pode gerar um precatório de 1,4 bilhão de reais, uma conta que o governo federal terá de pagar — o valor ainda será questionado pela União.

Como tornar o processo mais célere e menos problemático? A primeira fase da liquidação da Rede Ferroviária Federal, iniciada em 1999, terminou em 2007 com a venda de ativos para o pagamento de dívidas, após a passagem de 13 liquidantes no cargo. O Ministério do Planejamento está elaborando um decreto para regulamentar o encerramento de uma empresa pública. Nele, estão previstos bônus ao liquidante que terminar o trabalho antes do prazo e desconto para o que demorar.

Além disso, a União será sucessora na responsabilidade das ações judiciais. O liquidante, que hoje é indicado pelo ministério ao qual a estatal está atrelada, sairá do Ministério do Planejamento. “Nossa experiência é de liquidações demoradas e queremos que elas ocorram em seis meses”, diz Fernando Soares, secretário de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, do Ministério do Planejamento. A previsão é terminar as discussões em maio, para então submeter o decreto à avaliação de outros órgãos envolvidos.

Na nova onda de desestatização, no governo de Michel Temer, sete empresas já foram vendidas, incorporadas por sua holding ou liquidadas. O governo pretende liquidar a Companhia Docas do Maranhão até o fim deste ano, mas não há estimativa de quantas empresas ainda podem ser fechadas. A extinção de estatais que não têm razão de ser é uma das contas que um modelo de Estado grande deixa para as futuras gerações.

ENTRANDO NOS TRILHOS

A renovação antecipada de concessões dos anos 90 pode ser a saída para resolver problemas do passado

Trem de passageiros nos Estados Unidos: um modelo que pode servir para os trilhos abandonados no Brasil | Joshua Lott/Reuters

A demorada liquidação da Rede Ferroviária Federal não é o único legado problemático do processo de privatização das ferrovias na década de 90. Há embates entre o setor público e o privado sobre a devolução de vagões, locomotivas e de trechos inteiros que foram arrendados aos concessionários, mas que não são usados porque estão caindo aos pedaços e não trazem retorno econômico.

O descarte de bens, por exemplo, só pode ser feito com autorização do governo federal. Mas, até 2017, estavam sem resposta pedidos referentes a 14.000 itens. Eles foram feitos antes da criação da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em 2001, e estavam perdidos na papelada da Rede Ferroviária Federal, que deveria ter avaliado a questão. Os concessionários vinham recebendo multas da ANTT por abandono dos bens, uma vez que a boa preservação deles estava prevista em contrato. Em 2017, o setor levantou quais eram os itens e fez um novo pedido de devolução, agora para a agência, encerrando as multas aplicadas.

Outra questão diz respeito aos trechos ferroviários abandonados. As empresas alegam que não há retorno econômico com eles e querem devolver 4.000 quilômetros. Elas propõem o modelo americano. Por lá, uma lei da década de 80 permite a devolução de trechos menores. Quem assume esses trechos tem regras mais brandas para operar, como uma legislação trabalhista mais flexível e a exigência de uma velocidade menor de tráfego. “Com a mudança, o setor se tornou mais produtivo e passou a prover serviços não só de carga, mas também de passageiros”, diz o advogado americano Raymond Atkins, ex-conselheiro do Surface Transportation Board, a agência reguladora das ferrovias americanas.

Aqui, corre a tentativa de costurar uma saída prevista em lei: a opção de os concessionários anteciparem a extensão dos contratos — as primeiras concessões vencerão em 2026 —, com a promessa de realizar investimentos. Nas negociações, as empresas também estão propondo que os trechos abandonados sejam devolvidos mediante uma indenização à União, correspondente a investimentos que deveriam ter feito nos trechos, mas não fizeram. Outro item em discussão é a permissão para sucatear vagões e locomotivas ou vender os itens e usar o dinheiro para investir na via, sem a necessidade de autorização prévia. O assunto carece de regulamentação. A solução para os problemas do passado depende de o governo e as empresas conseguirem fechar esses acordos. Ou, então, o setor continuará fora dos trilhos.

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