Linha de montagem de carros no Brasil: o acordo prevê a eliminação ou a redução de tarifas sobre peças (Germano Lüders/Exame)
Da Redação
Publicado em 4 de julho de 2019 às 05h32.
Última atualização em 8 de julho de 2019 às 15h06.
Nos últimos dias, o telefone do italiano Nico Rossini, presidente da Câmara Ítalo-Brasileira de Comércio, não parou de tocar. “Muitas empresas italianas estão fazendo consultas sobre as condições de investir e produzir no Brasil porque querem vir para cá”, diz Rossini. Desde que o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia foi anunciado, no dia 26 de junho, o assunto tornou-se obrigatório em muitos encontros de executivos e empresários. Nos primeiros dias de julho, um dos principais tópicos da reunião mundial de líderes da consultoria KPMG, na Alemanha, é justamente o acordo. “Certamente vai aumentar o volume de investimentos diretos no Brasil, com empresas estrangeiras adquirindo negócios aqui ou ampliando sua produção no país com o objetivo de exportar para a Europa”, diz Marcio Peppe, sócio local da KPMG.
A parceria entre o Mercosul e a União Europeia, que vinha sendo negociada há quase três décadas, cria uma área de livre-comércio de quase 780 milhões de consumidores. Os países que apertaram as mãos, dos dois lados do Atlântico, somam um produto interno bruto de 21 trilhões de dólares — 25% da economia mundial. Ainda há obstáculos pelo caminho: o acordo precisa ser aprovado em cada um dos países envolvidos, e isso significa que deverá sofrer pressões regionais e setoriais de todos os tipos.
Mas, se tudo correr bem, nos próximos anos as tarifas de importação na Europa para mais de 90% dos produtos fabricados no Mercosul serão zeradas. “O ambiente de negócios passará por uma transformação, com uma concorrência maior entre as empresas e uma necessidade premente de um salto de competitividade”, diz a economista Emily- Rees, sócia da consultoria Trade Strategies, de Bruxelas, ex-adida comercial do Brasil na França e ex-líder das relações da União Europeia com o Brasil.
Com a abertura econômica, porém, o céu não será de brigadeiro para todos —haverá ganhadores e perdedores. “A indústria brasileira terá de fazer um esforço para ser mais competitiva e melhorar a produtividade”, afirma Vera Kanas, sócia na área de comércio internacional da -TozziniFreire Advogados. O consumidor europeu tem poder de compra e é aberto a novidades, mas também está acostumado a uma grande variedade de produtos e valoriza tanto o capricho na embalagem quanto a sustentabilidade na cadeia que há por trás de cada produto.
Por exemplo, tem buscado cada vez mais peças de vestuário e alimentos que utilizam pouca água e seguiram processos orgânicos de fabricação. Para atender a essas exigências, as empresas brasileiras vão ter de se reinventar. Setores ligados ao agronegócio, que poderão vender etanol, café solúvel, suco de laranja e uma série de outros itens com tarifas zeradas para a União Europeia, estão entre os mais animados.
No grupo dos mais preocupados estão setores como os fabricantes de máquinas, equipamentos e hardware. “Com a redução do poder dos lobbies industriais no governo e o fim da política de favorecimento a qualquer custo à indústria nacional, o jogo mudou”, afirma o economista Delfim Netto (veja entrevista abaixo). “As indústrias arcaicas tendem a sair perdendo em qualquer tipo de abertura comercial porque passam a enfrentar novos competidores”, diz Viktor Andrade, sócio da consultoria EY.
O Brasil era, até agora, um dos campeões- em isolamento. No ranking da Câmara de Comércio Internacional dos países mais abertos do mundo, ocupamos a 69a posição entre 75 nações. Um estudo recente do Banco Mundial mostra que maior liberalização comercial no Brasil poderia aumentar as exportações em 7,5% e tirar 6 milhões de pessoas da pobreza. As importações cresceriam em uma proporção similar, movimentando mais a economia, e o produto interno bruto poderia crescer 0,93 ponto percentual por ano.
Para colher os frutos da maior exposição ao mundo, há lições de casa a ser feitas. “Não podemos esquecer que, para chegar lá, é preciso também resolver os gargalos do setor produtivo no Brasil”, diz Carlos Abijaodi, diretor da Confederação Nacional da Indústria. A alta carga tributária, as diferentes alíquotas de impostos sobre mercadorias e serviços nos estados e as precárias condições de infraestrutura são alguns dos velhos problemas que o Brasil precisa atacar com urgência. As empresas depositam esperanças na reforma tributária e na desburocratização do processo aduaneiro, que já teve início, para soltar parte das amarras.
É bom que tudo isso se resolva logo, pois mais novidades estão por vir. O Mercosul está perto de fechar um acordo de livre-comércio com o Canadá e com a Associação Europeia de Livre-Comércio (Efta), bloco formado por Noruega, Suíça, Liechtenstein e Islândia. Vamos ter relógios e chocolates mais baratos. A tecnologia de ponta canadense, dos hubs de inovação espalhados pelo país, também vai chegar aqui mais facilmente. E já foram iniciadas negociações com a Coreia do Sul e com Singapura, outros importantes polos de inovação. “O Brasil vai se abrir ao mundo”, diz a ex-adida comercial Emily Rees. Já não era sem tempo.
Para o economista Delfim Netto, a abertura comercial vai quebrar monopólios e despertar o espírito empreendedor
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia vai abrir um mercado gigantesco para as exportações brasileiras e ajudar a tirar a indústria nacional da UTI. É essa a expectativa do economista Antonio Delfim Netto, um dos principais idealizadores do milagre econômico brasileiro, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, período em que foi ministro da Fazenda. Na entrevista a seguir, Delfim analisa as oportunidades que o acordo representa para o Brasil.
Por que as negociações entre o Mercosul e a União Europeia demoraram tanto?
Esse acordo foi proposto pela primeira vez há 27 anos pelo governo de Fernando Collor. Ficou enrolado esse tempo todo. Passou por Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, quando houve muita conversa, mas não aconteceu nada. Depois de 2004, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o acordo desapareceu. Em 2017, já com Michel Temer na Presidência, foi feita uma proposta para a União Europeia e a resposta veio em um mês, demonstrando que os europeus tinham tanto interesse quanto nós nesse acordo.
O contexto internacional também ajudou?
Sim, tem a ver com as bobagens de Donald Trump, que é um psicopata com método. Ele abandonou a Europa. Os europeus estão assumindo seu papel. Há uma mudança geopolítica. A Europa tem de um lado Vladimir Putin, que não é tão confiável, e do outro a China, que é uma potência emergente. Os Estados Unidos são a potência decadente. A Europa sabe que tem condições de viver sem Trump e decidiu não perder mais tempo com os Estados Unidos. Precisamos lembrar também que Trump tem chance de ser reeleito e ficar no poder por muitos anos.
No cenário nacional, até pouco tempo atrás, a indústria era contra a abertura comercial. O que mudou?
Jair Bolsonaro centralizou o poder da economia em Paulo Guedes e a indústria foi reduzida a um departamento. A indústria perdeu poder político, e foi por essa razão que o acordo saiu. No entanto, é preciso lembrar o que aconteceu com a economia e com a indústria nas últimas décadas. No governo de José Sarney, foi declarada uma moratória que transformou o país num pária internacional. Depois, com o Plano Real, o crescimento da indústria foi murchando. O projeto econômico foi brilhante, mas nunca terminou, porque era necessário fazer um ajuste fiscal, o que não aconteceu. O Plano Real se sustentou pela taxa de câmbio -extremamente valorizada e por uma das taxas de juro mais ele-vadas do mundo, o que foi importante para segurar a inflação. Porém, o custo disso foi o assassinato da indústria nacional. Era impossível exportar e era muito mais fácil importar. Houve uma competição desonesta com as importações. A indústria foi destruída pela política econômica.
A indústria brasileira percebeu que precisava encontrar meios de Sobreviver e resolveu apostar na abertura comercial?
Ela entendeu isso, sim. A indústria estava sendo sedada para morrer. O acordo abre a possibilidade de ligar dois mercados desiguais. A abertura vai promover uma realocação dos fatores de produção para nos tornar mais competitivos. Por exemplo, a indústria de calçados não é competitiva, na média. Mas cerca de 40% dessa indústria é altamente eficiente. Parte do setor vai se ampliar, suprindo mais o mercado externo. Outras empresas do segmento vão fechar e mudar de ramo. Os fatores de produção dessa indústria vão para alguma outra, na qual seremos competitivos. Claro que haverá ganhadores e perdedores. Alguns negócios poderão não sobreviver.
Quais oportunidades vão surgir?
Como a União Europeia vai reduzir as tarifas mais rapidamente do que nós, vão aparecer oportunidades insuspeitadas. Vamos ampliar as exportações, e isso vai levar a uma maior produtividade, com o aumento da concorrência interna, e quebra de todos os monopólios. A economia se tornará muito mais competitiva e, portanto, mais produtiva. Um mercado gigantesco vai se abrir às exportações brasileiras. As empresas vão descobrir nichos de mercado em que elas podem ser competitivas. A indústria estava morrendo e, hoje, abre-se uma possiblidade de ela sair da UTI. O mercado vai mostrar onde estão as oportunidades e o sistema de preços vai alocar as forças de produção em áreas mais competitivas. Milhões de empreendedores vão enxergar nichos. O acordo vai despertar o espírito empreendedor.