Sal Khan: engenheiro e matemático formado pelo MIT, comanda a Khan Academy (Dai Sugano/MediaNews Group/The Mercury News/Getty Images)
Editora do EXAME IN
Publicado em 26 de junho de 2025 às 06h00.
Poucas pessoas no mundo estão tão bem posicionadas para discutir o futuro da educação e da inteligência artificial quanto Sal Khan. Engenheiro e matemático formado pelo MIT, Khan fundou em 2008 a Khan Academy, uma plataforma sem fins lucrativos que, de lá para cá, democratizou o acesso ao ensino, atingindo mais de 150 milhões de usuários no mundo, ao oferecer aulas gratuitas de matemática, ciências e dezenas de outras disciplinas.
Ao longo das últimas duas décadas, Khan se tornou uma das vozes mais influentes no debate global sobre educação, especialmente na interseção entre tecnologia e redução de desigualdades. Um dos primeiros a ter acesso ao modelo de IA generativa do GPT-4, ainda no fim de 2022, ele integrou a tecnologia à criação do Khanmigo — o tutor virtual da Khan Academy que já funciona como um experimento real de personalização em larga escala no ensino.
No livro Brave New Words: How AI Will Revolutionize Education (and Why That’s a Good Thing), lançado no começo do ano passado, ele afirma que a inteligência artificial tem potencial para transformar o aprendizado, fortalecer o papel dos professores e reduzir o fosso educacional que separa os mais ricos dos mais pobres. Nesta entrevista exclusiva à EXAME, ele mostra sua visão de sala de aula para o futuro: ambiciosa, mas profundamente centrada no humano: “A IA não vai substituir professores”, afirma. “Vai ampliar sua humanidade.”
Um medo comum em relação à IA é que podemos acabar perdendo aspectos essenciais da interação humana. Você acha que a educação tradicional é que trata os alunos como robôs, como se eles tivessem necessidades muito padronizadas?
Não acho que seja culpa de ninguém, mas, sim. Durante a maior parte da história da humanidade, a melhor forma de aprendizado era trabalhando com outras pessoas. Na sua tribo, talvez um primo mais velho lhe ensinasse a usar um arco e flecha. Se você fosse da nobreza, teria um tutor que o ensinaria a ler e escrever, ajustando-se ao seu ritmo. Mas foi só há 200 ou 300 anos que surgiu a educação pública, em paralelo com o início da Revolução Industrial, quando aprendemos a produzir em massa, padronizando em linhas de montagem. Tentamos aplicar o mesmo modelo às escolas. Muita coisa positiva aconteceu. As taxas de alfabetização passaram de 20% para 80%, até 100% em muitas partes do mundo. Mas o modelo que temos hoje ainda tem como base esse sistema de séculos atrás. Até o toque do sino a cada hora vem das rotinas das fábricas. Quando as pessoas estão numa sala sem poder falar ou se mover, isso é desumanizante. Os educadores sempre souberam que, idealmente, os alunos deveriam aprender de forma prática e interativa. Mas, se você é um professor com 30 alunos, é difícil sem nenhum tipo de apoio. Minha esperança é que agora possamos oferecer esse apoio escalável e permitir aos professores criar ambientes mais humanos.
Sam Altman, da OpenAI: Khan foi um dos primeiros a ter acesso, ainda em modo teste, ao GPT-4 (Justin Sullivan/Getty Images)
Uma tese central do seu livro é que a IA não substituirá os professores. O que você diria àqueles que têm medo de ser trocados por algoritmos?
Ninguém negaria se eu dissesse a um professor: “Você terá três assistentes de ensino que podem ajudar a corrigir provas, escrever relatórios de progresso, desenvolver planos de aula. Você é o chefe: eles trazem rascunhos, e você decide o que usar”. Ensinar é uma profissão solitária, raramente há alguém para trocar ideias. Com esses assistentes, o professor pode dialogar. Os professores não escolheram essa profissão para dar palestras; escolheram para transformar vidas. Alguns institutos afirmam que o ensino é uma das profissões mais seguras, e eu concordo — mas só se os professores abraçarem o lado humano do trabalho. Se o professor só quiser dar aula expositiva ou corrigir provas, é outra história. A IA não vai substituir os professores, ela vai ampliar sua humanidade.
A Khan Academy tem bastante atuação em comunidades mais vulneráveis, inclusive no Brasil. Qual impacto você tem enxergado?
A tecnologia pode garantir que cada aluno receba o que precisa com ferramentas personalizadas. Se imaginarmos a distribuição dos alunos, o meio funciona para a maioria, porque os professores tendem a focar ali. Mas os que estão muito à frente ou muito atrás acabam entediados ou perdidos. A maior dificuldade é encontrar espaço na grade curricular. No Brasil e em outros lugares, o acesso à tecnologia ainda é um problema. Estivemos com um superintendente de educação no Rio, e lá algumas escolas públicas com 500 alunos têm só cinco ou dez computadores. Sou obviamente tendencioso, mas acredito que escolas e professores são essenciais. Mesmo assim, a melhor forma de potencializá-los é investir um pouco em tecnologia.
Você sustenta que crianças e adolescentes aprendam a entender e a usar IA desde cedo. Como seria um currículo básico de letramento em IA?
Estou escrevendo um novo livro exatamente sobre isto: o que os professores precisam saber e ensinar. Primeiro, não é preciso se tornar pesquisador de IA, mas ter noções básicas do que ela é, seus tipos e o que são modelos generativos. Também é importante entender seus pontos fortes e fracos. Estamos acostumados a computadores sempre estarem certos, mas a IA é mais parecida com os humanos: é capaz de raciocinar, mas às vezes erra. Os alunos precisam desenvolver ceticismo. A IA é um bom ponto de partida para aprender algo, mas você deve verificar, como faria com qualquer outra fonte. Outra habilidade é saber fazer perguntas de acompanhamento. As pessoas não estão acostumadas a perguntar bem, nem com o Google. Mas com a IA você pode dizer: “E neste outro cenário? E se fosse assim?” Isso permite aprofundar muito mais. Prompting também é importante — aprender a guiar a IA para o que você quer que ela seja.
Em seu livro você também menciona riscos: viés, privacidade, dependência excessiva. E existe um desequilíbrio econômico entre as big techs e o setor de educação. Os educadores estão preparados para avaliar as soluções de IA com senso crítico?
Todo dia surgem dez novas startups oferecendo soluções de IA. Meu conselho é trabalhar com organizações confiáveis. Organizações sem fins lucrativos, como a Khan Academy, são importantes: não vendemos dados, priorizamos a privacidade e a segurança, e somos construídos para a estabilidade. Toda ferramenta deveria ter transparência e supervisão independente. Não acho que isso precise vir só dos governos, porque a tecnologia evolui muito rápido, e os governos podem ter dificuldade para acompanhar. Mas todo distrito escolar deve garantir que qualquer ferramenta usada cumpra certos padrões: segurança de dados, proibição de uso comercial dos dados dos alunos, alertas caso os estudantes usem a IA de forma indevida, e verificação independente de que o feedback pedagógico seja sólido. Por exemplo, usamos revisores humanos para corrigir as redações dos alunos e verificar se o feedback da IA corresponde ao que um avaliador treinado diria, porque às vezes a IA pode fingir competência. Você pode pedir um plano de aula e ela gera algo que parece bom, mas que não está alinhado com os objetivos reais de aprendizado. Também é preciso questionar os fornecedores: “Como vocês sabem que não há viés na sua IA? Como sabem que o feedback dela é bom?” É aí que professores, pais e educadores precisam continuar envolvidos.
Uma das principais críticas que você recebeu foi que seu livro era otimista demais. Um ano depois, com o GPT-4 e afins amplamente usados, você está mais animado ou assustado?
Ambos, na mesma proporção. Quando vi o GPT-4 pela primeira vez, pensei: “Isso vai mudar tudo”. Mas também fiquei assustado: com fraudes, vigilância, deepfakes, desinformação e drones assassinos. É assustador. Ao mesmo tempo, estou animado. Podemos curar em apenas dez anos doenças que achávamos que levariam 100. Entenderemos melhor o cérebro humano, algo que imaginávamos demorar 500 anos. Carros autônomos vão ajudar idosos e crianças. Educação, ciência, matemática — há muito com o que se entusiasmar. Mas não temos escolha senão sermos otimistas. Se formos paralisados pelo medo, deixaremos o futuro nas mãos dos maus atores, que vão fazer e já estão fazendo uso da tecnologia. Precisamos ser inteligentes, nos protegermos contra riscos reais e focar as possibilidades positivas: curar doenças, educar pessoas, criar novas formas de arte, explorar o cosmos. Este é um dos momentos decisivos da história humana, como o fogo, as ferramentas, a agricultura, a escrita, a imprensa, a industrialização — mas ainda maior.