Passageiros na nova linha Elizabeth, de Londres: uma obra de 118 quilômetros e 75 bilhões de reais | Philip Toscano/PA Images/Getty Images /
Filipe Serrano
Publicado em 2 de agosto de 2018 às 05h39.
Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 05h39.
Nenhuma outra cidade no planeta tem uma ligação tão especial com o metrô quanto Londres. A capital do Reino Unido foi a primeira do mundo a ter uma linha de trem subterrânea para transportar passageiros, aberta em 10 de janeiro de 1863. A ideia — na época vista como absurda — nasceu da mente de um advogado chamado Charles Pearson, que propôs cavar as ruas da cidade e construir, sob elas, linhas férreas para transportar passageiros e carga. Na época, Londres já era uma metrópole de 2,5 milhões de habitantes e suas ruas ficavam cada vez mais congestionadas. A primeira linha surgiu para conectar três importantes estações de trem — Paddington, Eason e King’s Cross —, ao norte do Rio Tâmisa. O sucesso foi imediato.
No primeiro dia, 30.000 londrinos se aglomeraram para usar o novo meio de transporte que revolucionaria a mobilidade urbana. Nas décadas seguintes, as técnicas de construção foram aprimoradas, os trens passaram a usar energia elétrica e houve uma rápida expansão até os anos 30. Depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, a rede de metrô parou de crescer. Com exceção de duas linhas inauguradas nas décadas de 60 e 70 — Victoria e Jubilee —, a malha de 400 quilômetros de extensão continua praticamente igual à da primeira metade do século 20.
Londres ficou para trás em relação a Paris e Nova York, que continuaram construindo trilhos subterrâneos e suburbanos em todo o século 20. E, com o crescimento da capital britânica, as linhas centenárias foram ficando entupidas de passageiros. Nos anos 2000, ficou claro que era preciso recuperar o tempo perdido, e ganhou força a ideia de fazer uma nova via de trem que cortasse a região metropolitana londrina de leste a oeste para desafogar as linhas centrais da cidade. Um projeto foi concebido e batizado de Crossrail — ou Elizabeth Line, em homenagem à rainha. Após anos de discussão, o governo, enfim, aprovou a construção em 2008. A obra já dura uma década e, quando for inaugurada por completo, em dezembro do ano que vem, terá consumido 15,4 bilhões de libras (75 bilhões de reais).
Seu altíssimo custo faz da Crossrail a maior e mais cara obra de infraestrutura na Europa. Mas o valor é proporcional à extensão. A nova linha terá 118 quilômetros, sendo que 42 quilômetros são de novos túneis sob o centro de Londres. A linha sai da cidade de Reading, a oeste, passa pelo Aeroporto de Heathrow — um dos mais movimentados do mundo —, cruza o centro da cidade, atravessa os dois principais centros financeiros (City e Canary Wharf) e segue adiante para os subúrbios no lado oeste, em dois ramais (veja o mapa abaixo).
É como se uma via de trem saísse de Santos, no litoral paulista, atravessasse São Paulo e depois chegasse a Jundiaí, já no interior, em linha reta — uma distância parecida também com o trajeto entre Volta Redonda e Rio de Janeiro, ou entre um extremo e outro do Distrito Federal. “A Linha Elizabeth tem uma escala completamente diferente daquela com que as pessoas estão acostumadas. Os novos túneis foram construídos a 40 metros de profundidade. As novas estações são enormes, com plataformas de 200 metros de comprimento. É o maior projeto de expansão dos trens de Londres em décadas”, diz Christian Wolmar, historiador e escritor britânico especializado na história do transporte ferroviário, que publicará em novembro um livro sobre a nova linha.
Mais do que desafogar o metrô, a nova via facilitará o deslocamento de quem vive afastado do centro, onde estão concentrados os melhores empregos, os serviços de maior qualidade e as universidades de ponta — e é aí que a linha fará mais diferença. Hoje, 5 milhões dos 8,5 milhões de habitantes conseguem ir de sua casa ao centro de Londres em 45 minutos ou menos usando o transporte público. Com a nova linha, o número subirá para 6,5 milhões. Os 70 novos trens que circularão pela linha serão mais rápidos.
Quando a Elizabeth Line estiver em operação, um passageiro poderá sair do Aeroporto de Heathrow e chegar ao centro financeiro de Londres em 35 minutos, sem fazer baldeações. Hoje, o mesmo trajeto leva 55 minutos e é preciso trocar de linha duas vezes. “Mais do que uma redução no tempo de viagem, o que as pessoas mais querem é um serviço confiável, que opere com frequência e tenha uma boa internet a bordo. A Linha Elizabeth terá tudo isso”, diz Chris Sexton, diretor técnico e um dos executivos mais importantes responsáveis pela obra.
Estudos feitos a pedido da autoridade metropolitana de Londres e por economistas independentes estimam que a Linha Elizabeth trará um ganho econômico de até 42 bilhões de libras (208 bilhões de reais). Para os especialistas, o benefício justifica o alto investimento. “Esse é um projeto caro, que não vai se pagar em dez ou 20 anos. Mas, num tempo mais longo, haverá um grande retorno”, diz Tony Travers, professor na London School of Economics, especializado em desenvolvimento urbano.
No fim de julho, EXAME viajou em um dos novos trens que já estão operando no trecho leste da nova linha, entre as estações Liverpool Street e Shenfield. As mudanças provocadas pela Elizabeth Line já são visíveis nessa parte da cidade. O trecho conecta o centro a uma parte de Londres que está se tornando cada dia mais desenvolvida. Até recentemente considerados bairros de baixa reputação, como Woolwich e Whitechapel, estão sofrendo o “efeito Crossrail”. Um exemplo dessa mudança é o aumento no preço dos imóveis. Segundo o portal de propriedade online eMoov e um estudo encomendado pela Crossrail, o valor dos imóveis residenciais ali dobrou desde 2007 e deverá aumentar 25% além do crescimento médio de preço no centro da cidade até 2021. Basta uma caminhada por Whitechapel para ver como o efeito provocou uma gentrificação na região. Houve um aumento da população jovem de classe média e classe média-alta. Lojas de alimentos orgânicos, cafés gourmet e bares estão se tornando comuns num lugar que antes era ocupado por restaurantes e lojas de famílias de imigrantes.
Outra mudança na zona leste de Londres é a construção de centros empresariais. Durante o percurso, é possível ver homens e mulheres com roupa social a caminho do trabalho. Num mês de verão em que as temperaturas chegaram perto de 40 graus Celsius, os novos trens equipados com ar-condicionado são um alívio para os passageiros. É um contraste, por exemplo, com os trens da Central Line, antiga linha de metrô que liga as principais ruas da cidade e não conta com ar-condicionado nos vagões. Outras vantagens da nova linha são a maior largura dos trens, diminuindo o empurra-empurra da hora do rush, e a redução do ruído causado pela passagem dos vagões pelos trilhos (outra reclamação recorrente dos londrinos).
Quando a Crossrail começou a ser pensada, o enorme custo do projeto sempre era um impedimento. O governo britânico tentou emplacar uma parceria público-privada, mas logo viu que o financiamento tornaria o projeto inviável. Então foi decidido que o Tesouro Nacional, por meio do Departamento de Transportes, contribuiria com um terço do custo (5 bilhões de libras), mas o restante do valor deveria ser pago pelos governos municipais da região de Londres. As autoridades locais acabaram desenvolvendo um modelo que combina contribuições do setor privado, dos passageiros e dos governos locais. A ideia foi capturar o valor gerado pela linha antes mesmo de ela ser inaugurada e usar o dinheiro para financiar a construção. Parte do valor da obra vem do dinheiro arrecadado com as passagens de metrô. Outra fatia vem de um aumento temporário nos impostos cobrados de estabelecimentos comerciais, além de outras taxas. A venda e o aluguel de imóveis próximos das novas estações bancarão outra parte dos custos. E, por último, algumas empresas, como a concessionária do Aeroporto de Heathrow, fizeram doações voluntárias. O que se vê é um grande esforço coletivo do poder público e do setor privado para fazer com que a Linha Elizabeth saísse do papel.
Seja em Londres, seja no Brasil, todas as grandes obras de infraestrutura no mundo sofrem com um problema bastante comum: a falta de recursos públicos quando a economia vai mal e a arrecadação de impostos cai. O projeto de Londres é um exemplo de que é possível fazer uma obra desse porte dentro do tempo previsto. Enquanto Londres vai inaugurar, de uma só vez, uma linha com 118 quilômetros, a malha do metrô de São Paulo — a maior do país — tem apenas 75 quilômetros. Um exemplo da demora da expansão da rede é o que ocorre com a Linha 4 Amarela, ligação da zona oeste de São Paulo ao centro. Com 13 quilômetros, ela começou a ser construída em 2004 e até hoje as obras não terminaram. A previsão é que a última estação seja entregue em dezembro de 2019. Em Salvador, a primeira linha de metrô, de 12 quilômetros, levou 14 anos para ser inaugurada em 2014. No país, oito capitais têm redes de metrô e trem urbanos, que somam ao todo uma malha de 872 quilômetros. A realidade brasileira contrasta com a de outros países em desenvolvimento. Somente o metrô de Xangai, na China, tem 644 quilômetros. As primeiras linhas começaram a ser construídas em 1995 e hoje Xangai tem a malha mais extensa do mundo. A Cidade do México, que começou a construir o metrô na mesma época que São Paulo, tem 226 quilômetros.
Os países em desenvolvimento passaram por uma rápida urbanização no século 20, mas, nas grandes capitais do Brasil, a infraestrutura de transporte público em massa não acompanhou o crescimento da população. Mesmo as redes de metrô e trem existentes servem a uma parcela pequena das pessoas. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, somente 31% dos habitantes vivem perto de redes de metrô, trem ou BRTs (corredores de ônibus segregados do restante das vias), segundo dados do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, organização sem fins lucrativos.
A capital fluminense é a cidade que tem o melhor índice. Em São Paulo, o número cai para 20%. O resultado é que a população das grandes cidades acaba dependendo dos ônibus — um meio de transporte mais lento — ou dos carros e motos, situação que só faz aumentar os congestionamentos e a poluição. Nos últimos anos, vem crescendo o número de pessoas que levam mais de 1 hora no deslocamento até o trabalho. É um tempo desperdiçado que poderia ser usado para o lazer ou para gerar renda. Nos cálculos da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, apenas os engarrafamentos de São Paulo e do Rio de Janeiro custam cerca de 98 bilhões de reais por ano.
Diante desse quadro, todos os especialistas concordam que melhorar a mobilidade urbana é fundamental para aumentar a produtividade e a qualidade de vida. O problema é que o Brasil investe muito pouco em mobilidade urbana. Segundo um levantamento da consultoria Inter.B, em 2017 esse investimento foi de apenas 7,9 bilhões de reais, ou 0,12% do PIB. Nesse ritmo, o país levaria 32 anos para ter um transporte público satisfatório. “Nós investimos pouco e investimos mal, porque, para resolver a crise de mobilidade urbana, é preciso um planejamento no âmbito metropolitano, o que não é feito”, diz Claudio Frischtak, presidente e fundador da Inter.B.
Mas qual seria o tamanho ideal de uma boa rede de transporte público no Brasil? Um estudo de especialistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social analisou as 15 maiores regiões metropolitanas e chegou a um resultado que serve de indicativo. O Brasil deveria construir pelo menos 381 quilômetros de metrô, 88 quilômetros de trens urbanos, 800 quilômetros de BRTs e 365 quilômetros de VLTs (os bondes modernos) para atingir uma cobertura adequada em suas maiores cidades. O custo estimado para fazer essas vias é de 234 bilhões de reais. Embora seja um valor alto, seria possível zerar esse déficit de transporte público em uma década investindo 25 bilhões de reais por ano.
Para efeito de comparação, apenas os projetos de lei de renúncia fiscal que tramitaram pelo Congresso em julho podem ter um impacto de 100 bilhões de reais no orçamento federal, o suficiente para pagar boa parte do investimento. “Sempre se tem a impressão de que o orçamento vai dar conta de tudo, mas chegamos a um ponto em que o governo quebrou. É preciso buscar uma saída para financiar as obras dentro de um jogo de mercado”, diz Paulo Resende, professor especializado em planejamento de transporte urbano na Fundação Dom Cabral.
A construção do metrô não precisa ser bancada apenas pelo poder público. Uma parte pode ser paga com a exploração imobiliária dos terrenos onde são construídas as estações. Esse é um modelo comum ao redor do mundo. O maior exemplo é o de Hong Kong, onde o metrô é operado e construído pela empresa MTR. Na ex-colônia britânica, o governo local garante à MTR o direito de explorar comercialmente o entorno das estações. Por isso, é comum ver paradas do metrô em grandes complexos comerciais e residenciais. O dinheiro da venda e do aluguel desses imóveis retorna para a MTR, que o usa para custear as obras. Ao todo, a empresa já construiu mais de 9.000 apartamentos e 13 shopping centers em Hong Kong. “Se for feito um bom planejamento, o entorno das estações vai trazer um benefício muito maior para toda a comunidade, e não apenas para os passageiros do metrô”, diz o britânico Jeremy Long, presidente da MTR para a Europa.
Hoje, a MTR é uma das mais bem-sucedidas operadoras de metrô do mundo. Seus trens rodam com quase 100% de pontualidade, e em 2017 a empresa teve lucro de 2 bilhões de dólares. O sucesso levou a MTR a buscar mercados no exterior. Ela opera linhas na Austrália, na Suécia e em cidades da China (Pequim, Shenzhen e Hangzhou). Mas seu contrato internacional de maior visibilidade é a Linha Elizabeth, em Londres.
Mas os trens e o metrô continuam sendo a espinha dorsal do transporte em massa da cidade, porque apenas eles conseguem carregar um volume tão grande de pessoas numa velocidade tão rápida. Os caminhos seguidos em Londres não deixam de ser uma referência para pensar em soluções para as metrópoles brasileiras.