Revista Exame

Uma agenda para um Brasil moderno

Presidente do Banco Central analisa avanços feitos e por fazer para uma mudança estrutural no mercado de capitais e no ambiente de investimentos brasileiro

Roberto Campos Neto: “Um sistema mais eficiente, mais ágil, mais moderno e mais inclusivo” (Bruno Rocha/Fotoarena)

Roberto Campos Neto: “Um sistema mais eficiente, mais ágil, mais moderno e mais inclusivo” (Bruno Rocha/Fotoarena)

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Da Redação

Publicado em 16 de janeiro de 2020 às 05h30.

Última atualização em 16 de janeiro de 2020 às 10h10.

“Estar à frente de uma instituição de tamanha relevância como o Banco Central do Brasil é conviver com desafios diariamente. Vários aspectos mais conjunturais se apresentaram, principalmente relacionados à condução da política monetária, mas talvez o mais interessante na situação em que o país se encontra seja a colocação em prática de mudanças estruturais do sistema financeiro, que estão organizadas na agenda de trabalho BC#. Acho então interessante apresentar um balanço do trabalho e falar das perspectivas para este ano.

Quanto à conjuntura econômica, destacaria inicialmente o cenário externo. Apesar de a provisão de estímulos monetários nas principais economias ter sido capaz de produzir um ambiente relativamente favorável para economias emergentes, o cenário segue incerto e os riscos associados a uma desaceleração mais intensa da economia global permanecem. Como pontos de atenção, destacaria o aumento do estoque de ativos financeiros com rendimento negativo e o crescimento do endividamento das firmas não financeiras nas principais economias.

No ambiente doméstico, a inflação, que chegou a 10,7% em 2015, foi reduzida significativamente. A redução da inflação e a ancoragem de suas expectativas em torno da meta têm permitido uma mudança de patamar na taxa de juro. A Selic, que alcançou 14,25% ao ano em outubro de 2016, estava em 6,5% quando assumi, tendo sido reduzida desde então, e atualmente está em 4,5% ao ano, seu mínimo histórico. Isso resultou, também, na queda da taxa de juro real, que se encontra abaixo de 1% ao ano, nível que tende a estimular a economia.

É importante destacar que a economia brasileira sofreu diversos choques que afetaram o crescimento no decorrer de 2019, como a situação da Argentina, a desaceleração esperada tanto no comércio quanto na atividade global e o desastre em Brumadinho. Todavia, os dados mais recentes reforçam a continuidade do processo de recuperação, que deverá seguir num ritmo gradual. As expectativas positivas refletem-se no mercado de crédito. O saldo das operações com recursos livres vem crescendo a uma taxa interanual próxima a 13% ao ano. Ao mesmo tempo, as taxas de juro bancárias vêm diminuindo, ainda que haja problemas em produtos específicos.

Também o mercado de capitais tem mostrado uma evolução muito favorável, com o volume de emissões de debêntures crescendo em ritmo acelerado. Está em andamento um processo muito positivo de substituição de crédito direcionado por crédito com recursos livres. Dessa forma, o ciclo de crescimento que se inicia assenta-se em bases mais sólidas, financiado por dívida privada. E, mais que isso, a redução sustentável da Selic, ocasionada pelo conjunto de reformas estruturais em andamento, tem movido as pessoas a diversificar seus investimentos, levando seus recursos para o mercado de capitais, algo que ajuda a fomentar o empreendedorismo no Brasil.

O Banco Central tem muito a contribuir para o país por meio de reformas do sistema financeiro, buscando criar as condições necessárias para que este cumpra seu papel, que é promover a alocação eficiente de recursos entre as atividades econômicas. De fato, estima-se que as reformas no setor financeiro sejam as que têm o maior impacto potencial sobre a produtividade e as que têm o maior apoio da população. Mesmo com os recentes resultados positivos, é necessário continuar a promover mudanças que permitam o desenvolvimento de nossos mercados. O mercado precisa se libertar da necessidade de financiar o governo e se voltar para o financiamento ao empreendedorismo.

Ao longo de 2019 pudemos avançar em diferentes medidas da Agenda BC#. Destaco a edição da Medida Provisória que ampliou o direcionamento dos depósitos à vista para o microcrédito e aumentou o limite de enquadramento para esse tipo de operação de 200.000 reais para 360.000. Nossa expectativa para os próximos anos é que a carteira de microcrédito aumente dos atuais 6 bilhões para 15 bilhões de reais, e o número de clientes dobre para 4 milhões. O segundo destaque seria a permissão de uso, nos financiamentos imobiliários, do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo como indexador dos contratos. Essa alteração possibilita tornar o mercado imobiliário menos dependente dos recursos dos depósitos de poupança e do FGTS.

Em terceiro lugar, as cooperativas de crédito passaram a poder captar recursos por meio da emissão de Letras Financeiras e de LIGs, o que proporciona fonte de recursos estável e previsível. Em quarto lugar, destacaria a assinatura de acordo de cooperação técnica entre o Banco Central e secretarias de Educação estaduais e municipais para levar a educação financeira ao ensino fundamental da rede pública. Em quinto lugar, temos a recente redefinição do produto cheque especial, com vistas a mitigar falhas de mercado por meio de cobrança de tarifa relativa a um serviço similar a um seguro (a disponibilização de crédito emergencial pré-aprovado), e o estabelecimento de limite superior para a taxa de juro em 8% ao mês.

Para 2020, várias outras ações estão previstas. Temos, por exemplo, em tramitação no Congresso, o projeto de lei para alterar o marco legal do câmbio, que busca alinhar a legislação cambial às melhores práticas internacionais e às necessidades de uma economia globalizada. O projeto promove a consolidação e a revogação de mais de 40 instrumentos normativos editados desde 1920. Trata-se de um primeiro passo em direção à conversibilidade do real. Um segundo destaque é o projeto de open banking, que parte do princípio de que os dados bancários pertencem aos clientes, e não às instituições financeiras. Dessa forma, desde que autorizadas pelo correntista, as instituições financeiras compartilharão dados, produtos e serviços com outras instituições, por meio de abertura e integração de plataformas e infraestruturas de tecnologia, de forma segura, ágil e conveniente. Em terceiro lugar, destacaria o sistema de pagamentos instantâneos, que possibilitará fazer pagamentos com transferências eletrônicas em tempo real, 24 horas por dia, sete dias por semana. Trata-se de uma revolução tecnológica.

Startup: um projeto permitirá a instituições financeiras compartilhar dados e serviços | Germano Lüders

Em quarto lugar, temos o projeto de autonomia do Banco Central, que já foi enviado ao Congresso. Um banco central autônomo reduz o custo de condução da política monetária, por meio do aumento de sua credibilidade, ao mesmo tempo que torna o BCB mais bem equipado para promover as mudanças necessárias em nosso sistema financeiro. De fato, a literatura econômica sugere, e isso tem sido corroborado pela experiência prática, que países que possuem bancos centrais mais autônomos apresentam níveis e volatilidade de inflação menores, sem comprometer o crescimento e o emprego no longo prazo.

Em quinto lugar, destacaria o novo sistema de Linha Financeira de Liquidez. A ideia é que as instituições financeiras tenham disponível, de forma contínua, uma linha de crédito junto ao Banco Central, cujo limite será definido com base nas garantias fornecidas, sendo aceitos também títulos privados, além dos já aceitos títulos públicos. A ampliação dos ativos a serem aceitos de forma automática aumentará o potencial acesso a liquidez, permitindo a redução estrutural dos níveis de recolhimentos compulsórios sem fragilizar a estabilidade do sistema financeiro. Em sexto lugar, vale ressaltar a implantação do “sandbox regulatório”, um ambiente em que os requisitos regulatórios são flexibilizados para permitir que empresas testem serviços financeiros inovadores.

Um dos objetivos dessa agenda é mostrar o comprometimento do Banco Central com as reformas estruturais do país, uma importante parte do papel da instituição. Costumo falar que o Banco Central historicamente se preocupava mais em avaliar a quantidade de água que passava dentro do encanamento, para evitar que passasse água demais. Agora, com a vazão de água controlada, chegou o momento de discutirmos a troca do encanamento, buscando a construção de um sistema mais eficiente, mais ágil, mais moderno e inclusivo.” 

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