Revista Exame

A computação quântica dá um salto para o futuro

O mercado dessa nova tecnologia deverá atingir quase 300 bilhões de dólares nas próximas décadas

Computador quântico Q System One, da IBM: o primeiro modelo “compacto” desse tipo de máquina avançada | David Becker/Getty Images /

Computador quântico Q System One, da IBM: o primeiro modelo “compacto” desse tipo de máquina avançada | David Becker/Getty Images /

GG

Gustavo Gusmão

Publicado em 14 de fevereiro de 2019 às 05h40.

Última atualização em 14 de fevereiro de 2019 às 05h40.

Em maio de 1997, o russo Garry Kasparov, considerado um dos maiores jogadores de xadrez da história, sofreu uma de suas poucas derrotas na carreira. Seu algoz foi o supercomputador Deep Blue, da fabricante IBM, que venceu, mas não com facilidade. A máquina levou a melhor em duas das seis partidas disputadas, empatou em três e perdeu uma. O Deep Blue era capaz de antecipar jogadas do rival analisando os movimentos possíveis das peças, uma a uma. Mas as possibilidades eram muitas e nem sempre era possível processar todas as jogadas em apenas três minutos, que era o tempo por turno. Assim, Kasparov podia surpreender, como o fez.

A história ilustra bem as limitações que os computadores tradicionais têm até hoje: eles até conseguem resolver os problemas complexos, mas é preciso tempo para isso. Às vezes, tempo demais. Essa é uma questão, no entanto, que está com os dias contados graças à chamada computação quântica. Vista há algumas décadas como a próxima revolução dos computadores, essa tecnologia finalmente está tomando forma. E suas aplicações na indústria devem criar um mercado de quase 300 bilhões de dólares nos próximos 30 anos, segundo prevê a consultoria Boston Consulting Group.

O conceito de computação quântica foi comprovado cientificamente na década de 80, mas até hoje beira o surreal. Para entendê-lo, primeiro é preciso saber como um computador normal funciona. Nas máquinas que usamos hoje, os dados são guardados na memória como bits. Essas unidades de informação só podem assumir uma entre duas formas possíveis: 0 ou 1. Qualquer mensagem digitada no WhatsApp, qualquer fotografia digital ou qualquer filme na internet nada mais são do que uma longa sequência de zeros e uns, que fica maior quanto mais complexo é o conteúdo. O computador “lê” o conjunto de dados, um a um, para entender a informação, processá-la e transformá-la naquilo que vemos na tela. Por isso, dependendo do caso, há uma demora para realizar os cálculos.

Já os bits quânticos, ou qubits, podem existir como 0 e 1 ao mesmo tempo, graças a fenômenos físicos de sobreposição e entrelaçamento. “É como se um qubit representasse dois universos possíveis, e não um só”, diz Wander Cunha, diretor da consultoria espanhola Minsait no Brasil, especializada em tecnologia da informação. A diferença entre um bit e um qubit não é grande. Mas ela aumenta exponencialmente quanto mais unidades entram na conta: cada qubit a mais faz a capacidade de processamento de dados dobrar. “Em teoria, um computador com 50 qubits consegue fazer o que nenhuma máquina no mundo faz hoje”, diz Cunha.

O mercado da computação quântica ainda é incipiente. Mas não por falta de grandes nomes ou de investimento. Entre os países, a China lidera a corrida e pretende investir 10 bilhões de dólares em pesquisas sobre tecnologia quântica nos próximos cinco anos. A União Europeia, por sua vez, já colocou 1,1 bilhão de dólares no setor, enquanto os Estados Unidos aprovaram, em dezembro, um plano para aplicar 1,2 bilhão até 2025.

No campo das empresas, a Intel e o Google já desenvolveram processadores quânticos de teste, de 49 e 72 qubits cada. A Microsoft e a chinesa Alibaba também estão na lista de companhias que investem na tecnologia. Mas quem encabeça mesmo os esforços nesse campo é a americana IBM, uma pioneira na computação tradicional e, agora, no ramo quântico. A IBM apresentou no início de 2019 o primeiro computador do tipo para uso comercial, o Q System One.

A máquina não é a mais poderosa já fabricada — ela trabalha com “apenas” 20 qubits —, mas resolve um dos problemas que impediam a tecnologia de se popularizar: a instalação. “Até então, o computador quântico que havia em laboratório não era unificado. Ele tinha um cilindro em uma parte, o sistema de refrigeração em outra, e os dados vinham de outros equipamentos fora do conjunto”, diz Ulisses Mello, diretor do laboratório de pesquisas da IBM no Brasil. Era como os primeiros computadores, que ocupavam salas inteiras com peças espalhadas por todo lado. “A grande evolução foi integrar as partes em uma só, e isso permite instalar o computador fora de um centro de pesquisas.” A IBM espera gerar receita com a tecnologia em no máximo cinco anos.

Além das grandes empresas, startups também têm atraído investimentos milionários. O nome que lidera esse movimento é o da canadense D-Wave Systems, que está na ativa desde 1999 e arrecadou 205 milhões de dólares de lá para cá. O dinheiro foi bem usado: a D-Wave é a empresa que mais acumula patentes relacionadas à tecnologia quântica no mundo (138, ante 89 da IBM) e também é a única que já vende um tipo de computador quântico funcional, ainda que de uso limitado. Seu foco hoje é comercializar a tecnologia como um serviço — um caminho natural que é seguido também pela IBM. “O custo alto e as limitações de hardware impediam as empresas de testar e implementar a computação quântica, mas essas barreiras estão caindo”, diz Murray Thom, vice-presidente de software e serviços de nuvem da D-Wave. “Companhias como a montadora de automóveis Volkswagen e a fabricante de aeronaves Airbus já estão construindo aplicações em nossos computadores.”

Laboratório de pesquisa farmacêutica na Suécia: uma das aplicações da computação quântica é simular a interação entre moléculas e acelerar o estudo sobre novos remédios | Divulgação

Por enquanto, a tecnologia ainda traz poucas vantagens sobre a computação tradicional, segundo especialistas ouvidos por EXAME. Mas isso não deve demorar muito para mudar. “É esperado que ainda em 2019 ou 2020 tenhamos o primeiro caso comprovado de ‘supremacia quântica’, em que um computador do tipo será capaz de realizar uma tarefa que nenhum computador clássico conseguirá concluir em um tempo viável”, diz Duncan Stewart, diretor de pesquisa da consultoria Deloitte. Na visão de analistas, as primeiras beneficiadas deverão ser empresas dos setores químico e farmacêutico, que já usam a computação quântica para simular como moléculas complexas interagem umas com as outras — algo que pode, em breve, agilizar a pesquisa e o desenvolvimento de novos remédios. Mas a tecnologia também deverá ter impacto e utilidade nos setores de logística, energia, bens de consumo e até no mercado financeiro nos próximos anos (veja quadro abaixo).

Ainda há obstáculos que precisam ser superados para que a computação quântica possa ser, de fato, popularizada na indústria. Mas empresas e pesquisadores estão no caminho para derrubá-los. O computador da IBM resolveu dois problemas principais: a instalação e a conservação da baixa temperatura necessária para manter o computador funcionando (quase zero absoluto, ou -273 ºC). Já a quantidade de qubits, hoje reduzida, deve aumentar naturalmente, segundo analistas.

O grande desafio agora tem sido lidar com a instabilidade dessas máquinas. “Os qubits são muito delicados e sensíveis a ruídos. Por isso, quando estão trabalhando em cálculos, ainda há grande possibilidade de erro”, diz o professor Robert Young, diretor do Centro de Tecnologia Quântica da Universidade de Lancaster, no Reino Unido. “Mas já estamos desenvolvendo algoritmos e sistemas que operam mais rapidamente e, por isso, são menos suscetíveis a erros. Os avanços que tivemos em cinco anos foram ótimos.” É só uma questão de tempo para que a tecnologia esteja pronta. Por isso, é bom ficar de olho no futuro — mesmo que a tendência pareça distante de se tornar realidade. 

Acompanhe tudo sobre:Computadoresempresas-de-tecnologia

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda