Obra em torno da Casa Rosada: infraestruturaé uma das apostas do governo Macri | Marcia Carmo /
Da Redação
Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h00.
Última atualização em 24 de maio de 2018 às 05h00.
A Casa Rosada, sede da presidência argentina, está quase totalmente rodeada de obras. À sua frente, tapumes amarelos demarcam os trabalhos para remodelar a histórica Praça de Maio. Ali, operários e máquinas se movimentam sem parar mesmo aos sábados. Do fundo do palácio presidencial, que mira o bairro de Puerto Madero, avista-se o Paseo del Bajo, um corredor viário que conectará duas avenidas e facilitará o trânsito entre Buenos Aires e a vizinha La Plata. Canteiros de obras podem ser vistos em outros pontos da capital argentina e em várias províncias. Em Buenos Aires, as obras são ora da prefeitura, ora do governo provincial ou do governo federal — as três esferas administradas pela mesma coalizão política, a Cambiemos (Mudemos), liderada pelo presidente Mauricio Macri. Espalhar pelo país obras como corredores de ônibus, metrô, aeroportos, saneamento básico e escolas é uma das metas de Macri, um engenheiro civil que assumiu a cadeira presidencial em dezembro de 2015 com a promessa de “reformar” a Argentina. Seus amigos costumam dizer que a engenharia é o que o leva a pensar com afinco nas obras. Mas a situação atual da Argentina — nas últimas semanas, o país voltou a ter destaque negativo pela fragilidade cambial — exige muito mais de Macri.
Apesar dos avanços em algumas frentes, Macri ainda não conseguiu resolver problemas básicos que afetam o bolso dos argentinos. No ano passado, a inflação local foi de 24,8%, a segunda taxa mais alta na América Latina, atrás apenas do índice da Venezuela. Neste ano, a seca severa provocou a quebra da produção agrícola e a alta nos preços dos alimentos, novamente pressionando a inflação. Mais recentemente, o aumento da taxa de juro nos Estados Unidos e a valorização global do dólar vêm fazendo estragos, porque a Argentina depende de financiamento externo para cobrir um déficit fiscal de 6% do produto interno bruto. Para agravar o quadro, a Argentina é um país em que as classes média e alta costumam raciocinar em dólares — a moeda americana serve de referência, por exemplo, nos valores dos apartamentos, como mostram as vitrines das imobiliárias. O dólar é também uma opção histórica na hora de poupar — seja nas cadernetas de poupança em moeda americana, seja nos esconderijos que muitos argentinos mantêm em casa.
Em uma economia dolarizada, quando a cotação da moeda americana sobe, a população tende a comprar mais dólares, reforçando a alta. No dia 8 de maio, quando o peso já somava mais de 20% de desvalorização no mês, Macri foi à TV anunciar a decisão de pedir ajuda “preventiva” ao Fundo Monetário Internacional, poucos dias depois de o banco central argentino ter elevado a taxa básica de juro de 27,75% para 40% ao ano. O pedido ao FMI foi feito 12 anos depois que a Argentina quitou sua dívida com o organismo multilateral de crédito e num momento em que a desconfiança no rumo político e econômico do país era crescente. A recente corrida cambial e os erros do governo — como a falta de melhor comunicação com a população sobre as medidas econômicas — provocaram tamanho susto que, nos bastidores, alguns empresários compararam a tensão de abril e maio aos dias que antecederam a histórica crise de 2001. Aquela foi uma hecatombe que incluiu queda de presidentes, declaração de moratória e a fama mundial da Argentina de país caloteiro. “Não há motivos para pensarmos nesses fantasmas novamente”, diz o chefe de gabinete da Presidência, Marcos Peña, braço forte de Macri e integrante da mesa chica (“pequena mesa”), como é conhecido o grupo de três ou quatro assessores próximos do presidente.
Ainda que a crise atual seja menos intensa do que aquela na passagem do milênio, uma coisa é certa: a imagem de Macri sofreu um abalo com o pedido de socorro ao FMI. Pesquisas mostram que mais de 70% dos argentinos rejeitam um acordo com o organismo multilateral. O apoio da população a Macri já tinha começado a diminuir em dezembro, após a aprovação da reforma da Previdência, uma das medidas tomadas para conter o déficit fiscal. Em 2017, a taxa de aprovação do presidente chegou a superar 50%. Após o anúncio do pedido de socorro ao FMI, o índice caiu para 35%. Em quase dois anos e meio de governo, Macri tem atribuído os males da economia, como inflação, déficit fiscal e barreiras à exportação, à “herança” dos governos de Néstor e Cristina Kirchner (2003-2015). Mas pesquisas recentes indicam que os argentinos responsabilizam cada vez mais o governo atual, não os anteriores, pelo sufoco que estão vivendo. Em Buenos Aires, nos últimos tempos, passou a ser comum ouvir pessoas reclamando de Macri. “Eu não votei nele”, disse uma senhora na fila para pagar a conta de luz. “Votei, mas está tudo caro”, disse outra.
Estilo centralizador
O empresário Nicolás Caputo, amigo de Macri e um dos poucos a ser ouvidos por ele, diz que o maior desafio é conseguir que “as medidas do governo deem resultado no mesmo ritmo que as expectativas dos argentinos”. Outro ponto citado com frequência pelos críticos é o estilo centralizador de Macri. O presidente é visto como o verdadeiro ministro da Economia, tomando decisões quase solitárias depois de ouvir seus assessores. “A crise cambial deixou evidente que não dá mais para o presidente governar ouvindo apenas a mesa chica”, diz o analista Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, de Buenos Aires. “Também mostrou que ele precisa se comunicar mais com os argentinos, explicar o que está fazendo.” Essa não é uma opinião isolada. Para o presidente da União Industrial Argentina, Miguel Acevedo, este é um governo que “dialoga e não tem comparação com o anterior, de Cristina Kirchner, mas não ouve”.
Ou “não ouvia”, até estourar a crise cambial — que obrigou Macri a rever sua postura. Para evitar o caos, o presidente argentino ampliou a mesa chica, incluindo ministros e parlamentares. Político de discursos breves, Macri passou a falar mais vezes em público e voltou a dar entrevistas coletivas. Convocou governadores e empresários e resgatou sua proposta de costurar um “acordo nacional” — algo que tinha citado no início de sua gestão, mas que havia caído no esquecimento. As novas ações de Macri e de seus ministros levam alguns empresários e analistas a afirmarem que “o pior” já passou. “A Argentina já teve crises muito maiores do que a atual, que foi apenas cambial e não afetou o ritmo do consumo de nossas lojas”, diz o empresário argentino Manuel Ribeiro, da rede de varejo Ribeiro, com 89 lojas no país (leia entrevista na página seguinte).
O economista Dante Sica, da consultoria Abeceb.com, acredita que a crise cambial — que não gerou uma corrida dos correntistas aos bancos para sacar dinheiro, diferentemente do que ocorreu em 2001 — terá efeito somente no curto prazo. Neste ano, a crise cambial deverá alimentar a inflação, o que pressionará as negociações salariais, com protestos, e provocará redução no ritmo das obras e no crescimento econômico previsto. A mais grave seca em 40 anos no país já tinha comprometido a previsão de expansão econômica em 2018. “No auge da seca, fizemos uma pesquisa e estimamos que ela causaria uma redução de 0,5 ponto no PIB argentino. Na época, o crescimento estimado do PIB era de 2,5% e cairia para 2%”, diz Augusto Tejeda, economista-chefe da Bolsa de Cereais da Argentina. “Agora, a situação é pior porque temos menos produção, devido às chuvas e à má-formação dos grãos atingidos pela seca. Nossa nova previsão é que o impacto será de recuo de 0,7% no PIB argentino.”
A crise cambial veio atrapalhar uma trajetória que vinha sendo relativamente bem-sucedida. A estratégia de governo de Macri seguiu dois trilhos: o externo, para que a Argentina volte a ser incluída nas discussões e nos projetos internacionais; e o interno, com investimentos e obras de infraestrutura para gerar crescimento econômico. Tornou-se comum ouvir analistas apontando que a Argentina recuperou prestígio internacional — um indício disso seria a escolha do país para sediar a cúpula dos líderes das 20 maiores economias do mundo, o G-20, de 30 de novembro a 1o de dezembro deste ano. Com Macri na Presidência, a Argentina atraiu investimentos para setores como construção, automotivo e energia. “O plano do governo é tornar a Argentina um país mais produtivo e competitivo. Foi por isso que, já no início da gestão, foram eliminadas barreiras às exportações e o controle cambial”, disse a EXAME o economista Lucio Castro, secretário de Transformação Produtiva, órgão vinculado ao Ministério da Produção. “O país voltou a crescer. Dos 15 setores da economia, 13 tiveram expansão no ano passado e no início deste ano.” Em 2017, o PIB argentino cresceu 2,9%, recuperando-se da queda de 1,8% no ano anterior.
Agora, o ministro da Fazenda, Nicolás Dujovne, admite que neste ano haverá menos crescimento e mais inflação do que o previsto. Desde que Macri assumiu a Presidência, as metas de inflação não foram cumpridas. “Reconheço que colocamos metas otimistas demais”, disse Macri, em sua nova fase de tentar explicar melhor suas medidas à população. Analistas econômicos estimam que a inflação deste ano deverá se manter elevada, em torno de 25%. Macri reafirmou também que sua prioridade é diminuir o déficit fiscal. “Não podemos gastar mais do que temos e depender do mundo para nos emprestar dinheiro”, disse. Ele terá de negociar mais com setores da oposição para manter as medidas que defende, como o aumento das tarifas de serviços públicos, entre elas as de energia e gás, subsidiadas desde os tempos dos governos Kirchner. Em outra frente, Macri afirmou que vai manter as obras públicas já programadas. “Vamos terminar todas as obras iniciadas, mas não vamos iniciar agora novas obras”, disse. O governo pretende manter os lançamentos previstos das parcerias público-privadas para obras de infraestrutura. A quantidade de ofertas apresentadas em abril, antes da crise cambial, para a primeira licitação surpreendeu o próprio governo. Na cerimônia no Centro Cultural CCK, a poucos metros da Casa Rosada, o ministro dos Transportes, Guillermo Dietrich, comemorou dizendo que o leilão era uma prova de que a Argentina tinha “voltado a ter crédito no mundo”. Foram 32 ofertas feitas por dez consórcios formados por empresas argentinas e internacionais, que terão 15 anos de concessão em seis corredores viários. As obras demandarão 6 bilhões de dólares. Se depender de Macri, a Argentina continuará sendo um canteiro de obras. Mas, se o presidente quiser permanecer na Casa Rosada — seu plano é disputar a reeleição em 2019 —, ele precisará aplicar mais doses de sua engenharia política para avançar nas reformas.