Revista Exame

Abilio, Karnal, Nizan — o novo mundo pós-pandemia

A sociedade pós-coronavírus pode ser a oportunidade para criar padrões melhores de comportamento. Vai depender de nós

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Da Redação

Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h15.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h46.

Desastres naturais ou tragédias humanas são combatidos por ações imediatas. Algumas vezes, esses acontecimentos geram reflexões e, ocasionalmente, mudanças. Até agora, porém, nenhuma calamidade, por terrível que tenha sido, alterou ao mesmo tempo aspectos sociais, econômicos e ambientais, os três pilares que definem o desenvolvimento sustentável, em escala global. A lista é grande: vai da explosão do reator da central nuclear de Chernobyl em 1986; passando pelos terremotos que arrasaram Porto Príncipe, no Haiti, em 2010, ou diversas cidades japonesas em 2011; até o atentado de 11 de Setembro, em 2001. Mesmo a chamada gripe espanhola, que, segundo diferentes estimativas, infectou metade da população do mundo e matou de 20 milhões a 100 milhões de pessoas em 1918, aconteceu numa época que nem sequer o rádio estava em uso e as medidas de saúde variavam de país para país.

Nada que se pareça ao que estamos vivendo com a propagação da ­covid-19, a primeira a atingir nossa aldeia global, interconectada por novas tecnologias eletrônicas, para ficar na famosa definição do pensador canadense Marshall McLuhan. O primeiro caso foi reportado no dia 31 de dezembro de 2019 na cidade chinesa de Wuhan. Pouco mais de três meses depois, o novo coronavírus já atingiu moradores de 203 países. Um monitoramento do instituto Johns Hopkins apontou no início de abril o número de 1,3 milhão de infectados, e mais de 74.000 mortes já foram registradas (até o fechamento desta edição da EXAME). O foco saiu da China e se espalhou pelo Ocidente. Até a segunda semana de abril, Itália e Espanha lideravam o número de óbitos, com mais de 270.000 infectados, e os Estados Unidos estão sendo considerados o novo epicentro da pandemia.

Esse é o retrato atual da covid-19, ainda modesta em relação à gripe de 1918. Mas o que se vê agora, de forma inédita, é uma troca constante de informações e a adoção de medidas de prevenção coordenadas, ainda que tomadas de forma independente. Até o começo de abril, um terço da população do planeta estava em quarentena ou com restrições de deslocamento. Isso representa 2,6 bilhões de pessoas em algum tipo de isolamento. Estudos para desenvolver uma vacina contra o vírus estão sendo feitos simultaneamente em locais tão diversos quanto a Universidade de British Columbia, no Canadá, a Universidade Tsinghua, em Pequim, e o Instituto de Pesquisa Biológica, em Israel.

O bilionário e filantropo Bill Gates está financiando sete projetos de construção de fábricas de equipamentos para produzir uma potencial vacina. A iniciativa privada também está contribuindo na corrida pela cura da nova doença. Da Microsoft à Ford, da Amazon ao grupo LVMH, milhares de empresas estão doando recursos ou materiais para ajudar equipes de pesquisa e centros médicos que atendem a população atingida.  Será uma ironia se a solução para essa pandemia sair dos laboratórios da Kentucky BioProcessing, filial de biotecnologia da British American Tobacco, maior empresa de cigarro do planeta, atualmente dedicada a estudos de moléculas da folha de tabaco no processo de imunização.

Estamos provavelmente num estágio anterior ao auge do desastre, portanto muito longe do distanciamento histórico necessário para entender o momento. Qual será o mundo pós-coronavírus? Que lições teremos aprendido? Como passaremos a lidar com a saúde? Como ficarão aspectos do cotidiano, como as relações de afeto, o mercado de consumo, a espiritualidade? Ninguém tem ainda essas respostas. O resultado vai depender de nossa com­preensão dos acontecimentos, dos posicionamentos da sociedade civil, das atitudes socialmente responsáveis das empresas, dos caminhos adotados pelos governantes. Em resumo: vai depender de nós.

Para o filósofo Mario Sergio Cortella, estamos recebendo um sinal de que a natureza é maior do que o homem. Segundo ele, a antropolatria, a adoração do humano, não tem sustentação fora de nosso entendimento. Um efeito já observado é em relação ao clima. Imagens de satélites da Nasa mostraram redução da concentração de dióxido de carbono resultante da combustão em cidades da China, da Europa e dos Estados Unidos. Será que passaremos a dar realmente ateção ao ambiente depois disso?

Especialistas de diversas áreas conseguem enxergar outros pontos positivos que podem sair desta catástrofe. O economista Delfim Netto diz que o trabalho à distância veio para ficar e vai reduzir os custos e aumentar a produtividade das empresas. O cientista político Bruno Paes Manso fala sobre o reforço dos laços de solidariedade, sobretudo nas comunidades carentes, que se mobilizam para garantir o acesso a itens como sabonetes e mantimentos. A chef Rita Lobo destaca que a quarentena é uma oportunidade para valorizar a alimentação saudável.

Cortella, Netto, Paes Manso e Lobo são alguns dos 22 entrevistados de EXAME para apontar esses possíveis cenários (veja a análise de outros especialistas em exame.com)­. A maior parte concorda em dois pontos. O primeiro: dificilmente seremos os mesmos depois disso. O segundo: os novos padrões de comportamento provavelmente serão a confirmação de tendências que já se desenhavam. O vírus de uma síndrome gripal pode ser o catalisador que faltava.


COLABORAÇÃO

Jonathan Portes: professor de economia e políticas públicas na King’s College London. É especialista em política fiscal, mercado de trabalho e imigração | Divulgação

É importante entender que se trata de uma crise de saúde. Daqui a nove meses, a maior parte da população mundial estará viva e é provável que o impacto do coronavírus sobre as pessoas que hoje integram a força de trabalho seja pequeno. Portanto, não há motivo para que, passado esse período, o mundo esteja mais pobre. O vírus não empobrecerá os países. Se isso acontecer, a culpa terá sido de escolhas políticas, não da pandemia. Não há uma dicotomia entre economia e vidas humanas. A maioria dos governantes parece ter entendido isso e determinou medidas de distanciamento social para reduzir as consequências para a população. Ao mesmo tempo, os governos estão investindo nos serviços de saúde e ajudando empresas e pessoas mais carentes — e espero que continuem assim depois da paralisação. Mas é um dinheiro que já deveria ter sido gasto. Especialistas vêm alertando há anos que o mundo sofreria com pandemias. Só que, logo depois da crise de 2008 e 2009, os governos decidiram estabelecer um teto de gastos públicos, o que impactou, sobretudo, a população mais carente. O risco é que, passado o auge da pandemia, haja um agravamento do nacionalismo e do protecionismo econômico, quando o ideal seria exatamente o oposto: maior engajamento e colaboração entre países, de tal modo que as respostas às novas ameaças sejam coor­denadas. O caminho a ser trilhado depende de decisões políticas. Espero que a escolha seja pela colaboração.


GLOBALIZAÇÃO

Leandro Karnal: historiador, escritor e professor na Unicamp. É autor de O Dilema do Porco-Espinho: Como Encarar a Solidão, entre outros livros | Esdras Martins/Ofotográfico/Folhapress

A corporalidade brasileira, nossa tônica latina e de proximidade, foi criada ao longo de séculos de história. Não pode ser mudada em dois ou três meses. Porém, a história é feita por nós e nada é imutável. Podemos também esperar o contrário: após a diminuição do risco de contágio, contidos em uma quarentena necessária e indesejável, os brasileiros beijarão, abraçarão e tocarão mais do que nunca. É a “demanda reprimida”. O processo de globalização econômica, a internet, a difusão do inglês básico pelo mundo e outros fatores são coisas muito estruturais e antigas. A xenofobia cresce e aumenta com a crise econômica. A realidade é a integração mundial. Nenhum país pode se fechar hoje, a não ser no modelo da Coreia do Norte. O nacionalismo, hoje, é um argumento de controle de alguns setores políticos. É um conceito amplo para agrupar projetos de poder. A realidade do mundo é outra. Para falar mal da China, usamos aparelhos chineses, com tecnologia do Vale do Silício, feitos no Vietnã e ações na bolsa de São Paulo. Alguma reclamação? Um call center em Bangalore terá prazer em atendê-lo.


CHINA

Minxin Pei: professor da disciplina de governo no Claremont McKenna College, nos Estados Unidos. É autor de China’s Crony Capitalism | Divulgação

A pandemia do coronavírus deve produzir um impacto profundo em três dimensões: política, econômica e geo­política. Politicamente, na China, a ação inicial inadequada do governo de Xi Jinping diante do surto levantou dúvidas sobre sua capacidade de liderança e enfraqueceu sua autoridade. Como resultado, a própria percepção de Xi sobre sua posição agora mais frágil o tornará mais inseguro, o que poderá levá-lo a promover expurgos no Partido Comunista Chinês e a prejudicar sua capacidade de liderar e de tomar decisões importantes nos próximos anos. Economicamente, a pandemia causou um grande golpe. A China venceu sua primeira batalha contra o coronavírus fechando o país — e a economia. O que se seguirá é uma reação em cadeia de falências, que testará a resiliência do setor financeiro chinês. A pandemia expôs a fragilidade de um sistema globalizado, mas também altamente eficiente, centrado na capacidade de produção da China. Quando a situação voltar à normalidade, as empresas reavaliarão sua dependência em relação aos chineses. A combinação entre a guerra comercial com os Estados Unidos e o coronavírus pode acelerar a realocação das cadeias de suprimentos, o que impactará negativamente o crescimento da China. Geopoliticamente, esta crise mostra como os Estados Unidos e a China se tornaram adversários reais. Eles agora se consideram ameaças existenciais. O conflito estratégico entre as duas nações tende a ficar ainda mais intenso — e perigoso — na próxima década.


REGIONALISMO

Parag Khanna: especialista em geopolítica, é sócio-gerente da consultoria FutureMap, de Cingapura. Escreveu os livros Connectography e The Future is Asian | Divulgação

Do atentado de 11 de setembro à crise financeira e à atual pandemia, temos um grande choque global a cada dez anos. A cada vez, há gritos de que “tudo mudará.” No entanto, várias tendências em curso antes do atual colapso não apenas vão continuar como também acelerar. Um exemplo é a ascensão do regionalismo sobre o globalismo. A guerra comercial sino-americana começou em 2017. O resultado é que, no ano passado, o México se tornou o principal parceiro comercial dos Estados Unidos, seguido pelo Canadá. Donald Trump pode não gostar do Nafta, mas o continente se tornou efetivamente uma união americana. Isso reflete o que já se via no restante do mundo. Hoje, 70% do comércio europeu é feito dentro da União Europeia. Na Ásia, essa fatia subiu para 60% com vários acordos comerciais. A migração e o investimento também são muito mais regionais do que globais. Essa tendência vai se fortalecer agora.


UNIÃO EUROPEIA

Philippe Legrain: economista e escritor britânico, autor de Open World: The Truth about Globalization. É especialista em economia europeia

A pandemia do coronavírus está causando uma crise econômica e política que ameaça a União Europeia. Está tornando as economias mais nacionais e a política mais nacionalista, e ao mesmo tempo criando divisões profundas que podem causar enormes danos no longo prazo. As fronteiras nacionais estão fechadas. Italianos, espanhóis e outros estrangeiros são vistos como vetores de doen­ças. A França e a Alemanha restringiram as exportações de suprimentos médicos. Surpreendentemente, nenhum dos outros 26 países do bloco respondeu ao pedido urgente de ajuda médica da Itália — até a China socorrer os italianos. Em uma crise, ao que parece, a solidariedade europeia conta pouco. Como a pandemia amea­ça todos os europeus, e as ações de cada país afetam seus vizinhos, nove países, liderados por França, Itália e Espanha, pediram que os governos da zona do euro emitam “títulos corona” para financiar os esforços de resgate. O Banco Central Europeu poderia comprar os títulos, aliviando a pressão sobre as finanças públicas. Mas a Alemanha e outros países se opõem à iniciativa, com argumentos falsos de que isso encorajaria a irresponsabilidade. As emoções estão à flor da pele. Se os europeus não estão dispostos a ficar juntos nesta crise, muitos podem questionar se deveriam compartilhar uma moeda.


PROTEÇÃO SOCIAL

Monica de Bolle: economista, é pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos | Fernando Lemos

Ainda é cedo para refletir sobre as ramificações da epidemia e da crise econômica. No entanto, é possível traçar algumas linhas gerais de como o debate econômico haverá de se reestruturar após esta crise inédita, pois certos sinais já estão em evidência. Primeiramente, a crise expõe de forma muito clara que a resistência das economias depende, antes de tudo, de seus elos mais frágeis, a saber, a população em situação de vulnerabilidade. Já são essas pessoas as mais atingidas pela doença e pela crise econômica, quadro que deverá se agravar. Não à toa, diversos países formularam programas de assistência na forma de uma renda mínima a ser distribuída para toda a população ou a segmentos dela. O Brasil foi nesse caminho ao sancionar em 2 de abril a Lei no 13.982, que instituiu o auxílio emergencial de 600 reais mensais, ou a renda básica emergencial. Penso que a renda básica veio para ficar, apesar de ser hoje um programa temporário. Afinal, passada a fase aguda da crise, a população vulnerável continuará a demandar cuidados dos governos. Portanto, é provável que o eixo das políticas macroeconômicas se rearticule em torno do reforço das redes de proteção social. Outra mudança de rumo possível é a vinculada ao multilateralismo. A saída da crise global exigirá dos países um esforço de reconstrução semelhante ao do período pós-guerra. Tal esforço passará necessariamente pela ação coordenada e por uma reinvenção do multilateralismo. Crises abrem caminhos. Não será diferente desta vez.


VIOLÊNCIA URBANA

Bruno Paes Manso: cientista político e economista, é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo | Amanda Perobelli/Estadão Conteúdo

O tempo que durar a quarentena pode definir alguns cenários, já que quase metade da população brasileira está no mercado informal de trabalho, parcela mais afetada pela queda de renda. Já tivemos notícias de saques esporádicos a supermercados na Grande São Paulo, algo recorrente em momentos de crise. Dias atrás circularam vídeos de saques a mercados em São Vicente, em 2013, como se fossem de agora. Existe o risco de essas fake news serem levadas a sério e gerarem uma escalada maior de violência. Apostar no tensionamento desse cenário é uma estratégia perigosa do governo Bolsonaro para convencer a opinião pública da necessidade do fim da quarentena. Quando o rastilho de pólvora se acende, não se sabe o tamanho da explosão. Por outro lado, temos visto uma mobilização intensa pelas redes sociais nas periferias e em favelas como Paraisópolis e Morro do Alemão, onde a população se articula para garantir a todos o acesso a produtos básicos, como sabonete e mantimentos. A solidariedade, esse fortalecimento de laços nas comunidades, é uma consequência positiva deste momento de crise. Um fator imponderável é se o coronavírus se espalhar nas penitenciárias. Isso poderá gerar uma pressão enorme, com consequências graves dentro e fora das prisões.


ORÇAMENTO FISCAL

Delfim Netto: economista e professor universitário, foi ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento entre 1967 e 1985

Minha convicção é que o coronavírus vai mudar completamente o sistema de trabalho no mundo. As empresas vão compreender que podem muito bem funcionar com uma boa parte dos empregados trabalhando cada um em sua residência, com uma redução de custos dramática e, provavelmente, com aumento de produtividade. Estamos diante de um problema epidemiológico e a prioridade máxima é salvar vidas. Mas não podemos misturar o combate à pandemia com a política fiscal permanente. Não deve haver restrição orçamentária para atacar o coronavírus, mas é importante que haja um controle rigoroso sobre essas despesas. Senão, a tendência nacional é que isso vire uma esculhambação. Ou seja, precisamos realmente ter dois orçamentos — um orçamento de guerra, para atacar a pandemia, e o orçamento normal, das despesas correntes, do investimento público.  É preciso que o desastre fiscal produzido pela pandemia não continue depois que ela terminar. Em termos econômicos, a pandemia vai ser um desastre e teremos uma recessão profunda. Mas, se tivermos a competência de separar claramente o financiamento da epidemia e os gastos normais do Orçamento, poderemos atravessar este e o próximo ano, e voltar a crescer. A pandemia mostrou também que o governo precisa ter um repositório de informações de todos os tipos de atividade, incluindo as intermitentes, que dependem do trabalho individual, como é o caso de um sapateiro ou de um vendedor de sorvete na praia. É preciso ter essas informações para que, em momentos de dificuldades como o que estamos vivendo agora, o governo possa agir com mais rapidez, sem precisar ­realizar as coisas na base da tentativa e erro. Em resumo, a principal lição que podemos tirar disso tudo é que precisamos ter instrumentos para enfrentar fenômenos como este. São fenômenos raros, que acontecem a cada 30, 40 ou 50 anos, mas precisamos estar preparados. É uma preparação para a guerra, esperando que ela não aconteça.


MUDANÇAS PERPÉTUAS

Eduardo Giannetti: economista, filósofo e escritor, é autor de O Valor do Amanhã, Trópicos Utópicos e O Elogio do Vira-Lata, entre outros livros

Um dado que impressiona muito, fazendo um paralelo, é o que aconteceu com o tamanho do Estado no século 20. O Estado cresceu no mundo ocidental de maneira muito acentua­da no período das duas guerras mundiais. Não foi por um debate ideológico, foi por uma necessidade que a guerra impôs. Terminou a guerra e o Estado nunca voltou a ser o que era antes. Aquilo se perpetuou. São realidades que se impõem num momento emergencial e depois é muito difícil voltar ao que era antes. Outro exemplo disso, desta vez brasileiro, foi a crise do racionamento de energia elétrica em 2001. O racionamento se impôs, e a população, de forma muito cooperativa, abraçou a necessidade de economizar energia. E, quando terminou o racionamento, o consumo não voltou ao que era antes porque as pessoas aprenderam a economizar. São exemplos de mudanças que se perpetuam quando há uma grande crise. Da mesma forma, tenho convicção de que a pandemia do coronavírus vai provocar mudanças de caráter permanente em muitas dimensões de nossa vida. No plano econômico, ganhará força a ideia de renda mínima universal. Era uma ideia que já estava pairando e, depois que for implementada por causa da crise, ficará mais apta a se tornar permanente.


TECNOLOGIA

Paula Bellizia: vice-presidente de vendas, marketing e operações da Microsoft América Latina | Germano Lüders

A pandemia acelerou a adoção de tecnologias, trazendo uma mudança de cultura organizacional para todos os negócios. O uso de videoconferência e ferramentas de trabalho colaborativo tem ajudado empresas, instituições de ensino, ONGs e governos a dar continuidade a seus negócios. Depois de superarmos este momento tão desafiador, sentiremos algumas mudanças fundamentais em nossa vida: sairemos mais conscientes da importância da conexão genuína e da empatia entre as pessoas e olharemos de uma nova maneira para o potencial da tecnologia como habilitadora de negócios, de aprendizado e para promover o bem. Essas mudanças culturais, que aconteceram por necessidade, devem prevalecer e o trabalho remoto será visto de uma forma diferente. As empresas terão a certeza de que, mesmo à distância, é possível contar com a tecnologia para que as equipes continuem produzindo e trabalhando em colaboração remotamente, com agilidade e eficiência.


DIVERSIDADE

Patricia Santos: é CEO e fundadora da EmpregueAfro, consultoria de recursos humanos focada em diversidade étnico-racial

O que esperamos é que a crise não diminua nosso trabalho. Somos uma organização de impacto social, de mudança de estrutura e cultura. Pensando em minha empresa, tenho funcionários e espero que nossos clientes não deixem de continuar investindo em nosso negócio. Propomos uma ação afirmativa segundo a qual, ao investir na redução da desigualdade, elas vão ter mais resultados em termos de lucratividade, criatividade e diversidade. Minha meta é continuar atendendo as grandes multinacionais. Chegamos a um cenário de 20% das multinacionais atendidas, mas em dez anos quero atender 90% das 500 maiores empresas do país, que é onde mais precisamos trabalhar a equidade entre negros e brancos. Tenho conversado com clientes e com empresas que querem investir em diversidade, e este período de isolamento e coronavírus está fazendo com que as pessoas reflitam bastante sobre a humanidade e a relação com o outro, o que é positivo para a temática da diversidade, para que as pessoas desenvolvam ainda mais a empatia e um sentimento humanitário. Depois que tudo isso passar, as pessoas vão refletir mais sobre as desigualdades e reduzir essas diferenças. Um país tão desigual como o Brasil gera mais pobreza para todos. Se tivermos mais pessoas trabalhando com as mesmas oportunidades, seremos um país mais rico em todos os sentidos.


GESTÃO

Abilio Diniz: empresário, é presidente do conselho de administração da Península Participações, empresa de investimentos de sua família

Uma coisa que precisamos sempre ter em mente é que a gente pode tirar tudo das pessoas, menos a esperança. Precisamos ter bem claro que todas as crises têm início, meio e fim e que esta também vai acabar. Já passei por muitas crises em meus 83 anos. Sem dúvida, esta é a pior de todas, pois, acima de tudo, afeta a saúde das pessoas. É tudo terrivelmente novo, e o inimigo é invisível. Nessas horas, a palavra de ordem é serenidade. Se as pessoas não têm serenidade, tudo fica mais difícil, porque podem não tomar as melhores decisões. É preciso proteger os vulneráveis, avançar nos cuidados com a saúde pública e organizar a retomada das atividades, assim que as autoridades da saúde permitirem. A ponderação entre medidas sanitárias e medidas econômicas é essencial. É preciso que Executivo, Legislativo e Judiciário busquem convergências. Isso é essencial para superar a pandemia. As pessoas precisam ver a luz no fim do túnel, saber que a vida delas, o emprego, a empresa vão retomar o rumo. Vamos aprender ao máximo com esta crise para enfrentar a próxima de uma maneira melhor. E vamos usar nosso confinamento para trabalhar, ajudar os outros e aprender muito.


STARTUPS

Camila Farani: investidora-anjo, é sócia-fundadora da G2 Capital, butique de investimentos em startups de tecnologia, educação e alimentação. É um dos “tubarões” do programa de TV Shark Tank Brasil

Apesar do cenário sofrível e desafiador, vejo a possibilidade de muito aprendizado para as empresas. As que não tinham canais diretos com seu cliente, por exemplo, vão ser obrigadas a sair da zona de conforto, e isso naturalmente mudará a percepção das coisas. Depois de um período inicial de choque, os empreendedores começam a pensar em como lidar com o problema atual e estabelecer prioridades para criar um caminho que traga resultados no futuro. As resistências ao ambiente online vão ser deixadas de lado. O empreendedor offline está percebendo que estar em redes sociais, e-commerce e marketplaces será, cada vez mais, uma questão de sobrevivência, e não de escolha. Quem tem uma startup O2O (online to offline) vai entender que reunir esforços no online poderá lhe dar mais escala e replicabilidade. Negócios que tinham mais dificuldade de se expandir via online encontrarão um ambiente mais propício a partir de agora. Com tudo isso, a inovação será cada vez mais importante para os empreendedores.


CONSUMO

Os principais mercados mundiais de luxo ainda estão parados. Mas muitas mudanças que se insinuam já vinham acontecendo. Sob a perspectiva das marcas, o luxo ainda tem receio dos canais online, mas esse canal será cada vez mais usado. As operações internacionais terão de usar a inteligência local para ganhar velocidade, até pela queda do turismo comprador asiático no mundo. Ações de responsabilidade social e sustentabilidade serão cada vez mais cobradas (isso mudará a fonte de matérias-primas e a cadeia produtiva). Bens de consumo de luxo serão alugados e revendidos em segunda mão. Doar será um novo hábito, e empresas de alto faturamento serão pressionadas a isso. A austeridade será o novo pretinho básico e as marcas deixarão de ostentar. Crianças e adolescentes se tornarão mais decisivos nas tomadas de decisão de consumo. O varejo precisará tornar seus espaços atrativos, transformando-os em ambientes de socialização e entretenimento. Os consumidores estarão ressabiados, com novas prioridades, e precisarão ter a emoção despertada para comprar o que não é necessário. Saúde será um novo item de desejo.

Carlos Ferreirinha: é sócio-fundador da consultoria MCF, especializada em mercado de luxo


SOLIDARIEDADE

Monja Coen: primaz fundadora da Comunidade Zen Budista do Brasil, é autora de Zen para Distraídos: Princípios para Viver Melhor no Mundo Moderno

A economia ficará um bom tempo em depressão. Mas nossa mente não precisa ficar deprimida. Quem sabe possamos despertar a capacidade de compartilhar, colaborar, cooperar? Perceba que todos estão falando nas comunidades carentes, nos pobres, nas casas de detenção, nos moradores de rua. E não apenas porque ficamos bondosos, mas porque essas pessoas podem ser contaminadas e contaminar muitas outras. Tudo o que estamos passando, até o egocentrismo e a solidariedade, poderá se manifestar de outra forma quando sairmos do isolamento. Quando pouco a pouco nos reencontrarmos e voltarmos a competir por salários, posições, times de futebol e partidos políticos, gostaria que todos percebessem como o ar está mais límpido, os sons mais suaves. Não ficará assim para sempre. Logo esqueceremos e vamos nos comportar como se nunca houvéssemos percebido que estamos todos interligados e que, juntos, compartilhando e cooperando, a vida se torna mais leve e mais fácil — menos violenta e mais respeitosa.


SUSTENTABILIDADE

Marcelo Tas: roteirista, diretor, produtor e escritor. É apresentador do programa Provocações, da TV Cultura

Será impossível voltar ao mundo como era antes. A única certeza é que não seremos mais os mesmos. É uma experiência planetária, fazia tempo que não vivíamos algo assim. O vírus acelera processos claros nas empresas: digitalização, compliance, transparência. É um pacote da transformação digital. Quem estava num processo de transição agora precisou acelerar isso. Ficou evidente que os que estavam encarando essa transformação com mais coragem começam a navegar melhor, com mais possibilidade de sair da crise de forma mais saudável. Falo de saúde não só financeira, mas de sustentabilidade. Peço até desculpas por dizer essa palavra que usamos tanto, mas que nunca fomos muito obrigados a praticar. Agora não é mais opcional viver num mundo sustentável. Estamos passando por uma prova duríssima, que vai nos obrigar a reinventar processos, redesenhar trajetórias e produzir com menos desperdício.


ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL

Rita Lobo: chefe de cozinha, é apresentadora do programa Cozinha Prática, da GNT, e criadora do site de receitas Panelinha

A mudança na rotina tem causado muito estresse e ansiedade nas pessoas. Para as que estão protegidas dentro de casa, também acabou virando uma oportunidade para refletir sobre valores, conceitos e hábitos. No caso da alimentação, quem sabe cozinhar está em vantagem, porque, além de garantir comida de verdade à mesa — sinônimo de alimentação saudável —, conseguiu se blindar um pouco do caos externo, uma vez que a cozinha também funciona como refúgio. Para quem não sabe cozinhar, a quarentena oferece a oportunidade de aprender, ganhar autonomia e não depender do delivery nem dos produtos ultraprocessados — aqueles feitos e temperados na fábrica, que estão diretamente ligados a outro problema de saúde pública, a obesidade epidêmica, e a outras doenças relacionadas à má nutrição. O atual sistema alimentar, que privilegia o consumo de ultraprocessados, deixa as pessoas desconectadas quando o assunto é comida. Quem determina o conceito de alimentação saudável é o bilionário mar­keting das empresas de ultraprocessados, que convenceu muita gente de que cozinhar é perda de tempo. No mundo pós-covid-19, muita gente vai descobrir que dá conta de cuidar da própria alimentação e, por isso, será capaz de fazer melhores escolhas.


COMPORTAMENTO

Nizan Guanaes: publicitário e empresário, é CEO da consultoria N Ideias

Acho pueril a pergunta que muitos fazem: “O que vai acontecer quando tudo voltar ao normal?” Simplesmente não vamos voltar ao normal. A sociedade vai se transformar, e muito. Duvido que o mundo tenha ficado igual depois da tuberculose. O sexo mudou depois da aids. Essas grandes cicatrizes de saúde vão fazendo a humanidade dar saltos à frente ou para trás. Eu não acho que a transformação será trivial. Acho que a economia poderá se recuperar em um ano ou mais, mas as mudanças de comportamento e de consumo serão duradouras. Por exemplo: acho que as aglomerações públicas serão organizadas de forma diferente. Os dados são tão novos que não temos condições de processá-los in­teiramente. A maneira como a China está controlando a população, captando os dados de cada indivíduo, poderá ser o futuro de todos nós. Se fosse uma empresa, chamaria em algum momento antropólogos, filósofos, cientistas sociais, engenheiros de comportamento para entender o que ocorreu e para que lado rumará a sociedade. Eu, que tive a covid-19, não quero consumir como antes. Quero viver com menos e em outro padrão. Quero comprar mais saúde, mais conhecimento. Pensarei minhas férias de forma diferente. E cuidado com as previsões do futuro. As pessoas sempre falaram do digital, das redes, mas é a TV aberta tradicional que está comandando a narrativa deste momento. 


COLETIVIDADE

Laerte Coutinho: cartunista, ilustradora e roteirista, criou inúmeros personagens, como os Piratas do Tietê e Overman

A ideia “liberal” (com muitas aspas no liberal) de que uma sociedade não existe e de que as pessoas devem se ­virar de forma individual e competitiva é uma lógica completamente incapaz de resolver uma crise como esta. Acho que existe um entendimento de que há uma dimensão coletiva no modo como vivemos, e que isso deve ser respeitado e amparado com medidas, com polí­ticas públicas. Depois da crise, não vamos voltar para o mesmo lugar. Tenho esperança de que uma visão mais coletiva e solidária prevaleça. As mudanças serão definitivas porque a crise não parte do nada. A crise não apareceu quando a sociedade estava bela e formosa, de vento em popa. A sociedade e a economia estavam periclitando. Ou seja: a crise já acontece num momento de crise. O modo como a sociedade pode responder a isso deve mudar também. Se a ideia liberaloide está se reve­lando de uma mesquinhez e estupidez muito claras, isso vai deixar um saldo positivo. Aprovar, por exemplo, uma lei que contempla a renda mínima já é uma mudança absurda. Passada a situação crítica, a ideia já terá acon­tecido, já terá tido eficácia verificada. A taxação das grandes fortunas também é uma possibilidade. Uma vez passada a barreira, o ineditismo será quebrado e todo mundo vai saber que é possível. E, se é possível agora, também há de ser possível como prática corriqueira, o que inaugura um modo diferente de viver, que a sociedade brasileira talvez ainda não tenha começado a entender ou trabalhar.


ADORAÇÃO HUMANA

Mario Sergio Cortella; professor, escritor, filósofo e palestrante. Escreveu Por Que Fazemos o Que Fazemos? e A Sorte Segue a Coragem!

O século 19 representou o avanço da dominação humana no planeta, com a ideia de progresso; o século 20 trouxe o triunfo da tecnologia e o domínio quase demiúrgico sobre a natureza; o século 21 começou com a entronização do digital e a interconexão da presença da nossa espécie, sem fronteiras físicas e com uma instantaneidade e simultaneidade espantosas. Bastaram duas décadas neste século para colidirmos com uma realidade inefável: a antropolatria — a adoração do humano — não tem sustentação fora do mundo humano. Nossa fragilidade face ao desconhecido e poderoso ficara supostamente exilada por um tempo e, agora, retorna expressiva e assustadora. Sabemos e podemos muito; contudo, não sabemos nem podemos tudo. A lição não serve para desistirmos, mas para reconfigurarmos nossos dispositivos e aplicativos mentais e os deixarmos mais permeáveis à constatação de nossas limitações e, acima de tudo, dos perigos do biocídio que somos hábeis em praticar quando nos consideramos a razão da existência como um todo.


DESIGUALDADE

Drauzio Varella: médico e escritor, apresenta quadros na área de saúde na Rede Globo. É autor do livro Estação Carandiru

É curioso que as pessoas queiram voltar à vida de antes. O mundo não vai mais existir daquela maneira que conhecemos. Supondo que tudo corra bem e, daqui a seis meses, a epidemia esteja controlada, vamos ter coragem de ir ao cinema, ver um show, entrar no bar com amigos, ficar perto do outro? Acho que a vida vai mudar, vamos ter de encontrar outra forma de viver. A influência da pandemia vai se fazer sentir por muito tempo, mesmo porque ela vem com muitas mortes, memórias carregadas de emoção que ficam impregnadas por muito tempo, muitas delas para sempre. No lado da saúde, vejo impactos positivos. Agora, estamos sentindo o que é a falta dos investimentos em saúde. E estamos percebendo a importância do SUS. Até então, algumas pessoas tinham plano de saúde e a ideia era nunca colocar os pés no SUS. Mas não bastam planos de saúde maravilhosos, que deem direito aos melhores hospitais de São Paulo: na hora que estiverem lotados, as pessoas vão depender do SUS, que sempre foi menosprezado. Vamos sentir a falta de um sistema de saúde bem organizado. Mais do que a importância do investimento na saúde, está muito claro o preço da desigualdade social. Sentíamos isso nas ruas, na violência urbana, no assalto, no celular roubado. Agora está claro que o efeito da desigualdade pode ir além disso, pode ameaçar a vida de muitas pessoas. Se o Brasil fosse um país com menos desigualdade, certamente a epidemia teria se mostrado menos grave, teria menos consequências do que vai ter agora.


INTERDEPENDÊNCIA

Maria Homem: Psicanalista, é professora na Faap e pesquisadora do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da USP

O mundo é um só. Se tínhamos dúvida disso, não temos mais. Isso vai mexer com nossa maneira de lidar com o outro. Ao longo da história humana, o planeta foi ficando cada vez menor. Com as conexões, passamos a formar um ecossistema único: todos temos relações de interdependência. Esse conceito, de uma casa comum, vai sair fortalecido da crise. Quem nos revela isso é essa partícula viva que chamamos de vírus. Apesar de já sermos ligados — por crenças, mercadorias, serviços, debates, línguas, conflitos —, tratamos o outro como estrangeiro e o classificamos como Ocidente, Oriente, atrasado, evoluído. Esses discursos não devem acabar num futuro próximo, mas, num futuro distante, a ideia de nação não vai mais fazer sentido. Essa maneira de ver o outro é o que causa a polarização política. Mas somos todos carne que vai ser atropelada por um vírus. A pandemia vai mostrar que não basta ter um sistema de saúde, saneamento, trabalho e dinheiro na esfera nacional — os sistemas devem ser globais. O jeito que o cara come na China tem a ver comigo. Como podemos proibir um tipo de agrotóxico na Europa e permitir seu uso no Brasil? É o mesmo planeta. Queimar a Amazônia aqui causa seca em outro lugar.  Depois da crise, todos ficaremos mais pobres. O mundo vai ficar irado, revoltado, violento. Pode ser uma etapa destrutiva que demore décadas. Mas prefiro pensar na potencialidade das pessoas e no melhor que pode advir disso tudo.


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