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China trava guerra não declarada contra os Estados Unidos

Depois de uma campanha eleitoral agressiva, Trump vem mostrando uma surpreendente moderação na relação com os chineses

EUA: A aparente disposição do governo de tentar trabalhar com a China, em vez de apenas confrontá-la, ficou clara (Saul Loab/AFP)

EUA: A aparente disposição do governo de tentar trabalhar com a China, em vez de apenas confrontá-la, ficou clara (Saul Loab/AFP)

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Da Redação

Publicado em 10 de agosto de 2017 às 05h00.

Última atualização em 10 de agosto de 2017 às 05h00.

Pouco mais de um ano atrás, quan­do ainda era cotado para ser o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, Donald Trump foi convidado a falar sobre a política externa americana para uma plateia repleta de representantes da comunidade internacional.

O tom do discurso garantiu as manchetes de uma semana inteira ao empresário. “Precisamos ser mais imprevisíveis como nação. E precisamos ser imprevisíveis começando agora”, disse na época. Felizmente, essa imprevisibilidade foi para melhor: depois de uma campanha eleitoral em um tom para lá de agressivo em relação à segunda maior economia do mundo, o presidente vem mostrando uma surpreendente moderação na relação com os chineses.

Nos primeiros três meses de mandato, Trump foi abandonando os ataques e as ameaças à China que havia feito durante a campanha. No ano passado, o gigantesco déficit comercial dos americanos com a China foi eleito pelo presidente como o maior sugador de empregos dos americanos.

Entre janeiro e maio deste ano, as importações feitas pelos Estados Unidos dos chineses superaram as exportações em 138 bilhões de dólares — quase 45% do resultado negativo da balança comercial do país com o mundo inteiro. Devidamente assessorado por Peter Navarro, um professor na Universidade da Califórnia que há mais de uma década critica a política econômica da China, Trump havia prometido estabelecer uma tarifa de 45% sobre as importações vindas de lá.

“A China trava uma guerra comercial não declarada contra os Estados Unidos desde que se juntou à Organização Mundial do Comércio em 2001”, diz Navarro em um artigo no ano passado, defendendo que o nível da taxa lhe parecia adequado diante da reincidência chinesa no uso de práticas desleais, como a manipulação de sua moeda e o roubo de propriedade intelectual. Seis meses se passaram, e o assunto morreu nas esferas mais altas do governo americano.

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Também se desintegrou a acusação formal que Trump prometia fazer contra a China por desvalorizar artificialmente o valor do iuane, de modo a beneficiar seus exportadores. Isso seria um gatilho para que os americanos abrissem investigações e pudessem estabelecer novas tarifas no comércio com o país. O rótulo de manipulador de moeda é dado pelo Departamento do Tesouro americano, que produz um relatório semestral sobre as práticas cambiais dos maiores parceiros comerciais do país. A última vez que um país recebeu o selo foi em 1994, ainda durante o governo Clinton — quando o alvo foi a própria China.

A ameaça foi uma das mais persistentes durante a campanha presidencial — e, embora o Tesouro precisasse considerar uma série de critérios técnicos para designar uma nação dessa forma, Trump afirmava que os chineses seriam tachados de manipuladores de moeda já no primeiro dia de governo. Em abril, no entanto, o presidente voltou atrás. Poucos dias depois de receber a primeira visita oficial de Xi Jinping em Mar-a-Lago, resort que possui na Flórida, Trump anunciou que a China ficaria livre do título. “Como presidente, Trump deu uma virada de 180 graus”, diz David Dollar, ex-emissário do Tesouro na China e hoje pesquisador no Brookings Institution.

A aparente disposição do governo de tentar trabalhar com o país, em vez de apenas confrontá-lo, ficou clara nos desdobramentos do encontro de Mar-a-Lago, onde os líderes anunciaram a formulação de um plano de 100 dias para equilibrar o comércio entre as duas potências. Um mês depois, havia um acordo liberando a importação de carne americana pelos chineses pela primeira vez desde 2003 e iniciando tratativas para ampliar o acesso dos bancos chineses em solo americano. Foi, nas palavras do secretário de Comércio, Wilbur Ross, uma das maiores conquistas na história das relações entre os dois países.

Kim Jong Un, da Coreia do Norte: uma ameaça à estabilidade na Ásia | KCNA via KNS/AFP photo

Um vizinho problemático

Nenhum ponto, é claro, foi dado sem nó. Mais especificamente — e explicitamente — a nova postura de Trump refletia a expectativa de que os chineses pudessem ajudar os americanos a controlar os ânimos dos norte-coreanos. O número de testes de mísseis aumentou muito desde que Kim Jong Un assumiu o poder na Coreia do Norte em 2011. Apenas neste ano houve mais de uma dezena deles, com mais de 15 mísseis disparados (no ano passado inteiro, os lançamentos somaram 24 — o mais recente deles, no fim de julho, teria capacidade de atingir as maiores cidades americanas, incluindo Los Angeles e Chicago).

A provocação é clara. Como Pequim é hoje o principal aliado econômico e diplomático de Pyongyang, a saída para Washington foi adoçar os chineses pela via do comércio internacional. “Por que eu chamaria a China de manipuladora de moedas quando ela está trabalhando conosco nos problemas com a Coreia do Norte? Vamos ver o que acontece!”, bradou Trump em sua conta no Twitter em abril.

Mas nem tudo funcionou como Trump esperava. Cerca de 90% do comércio internacional da Coreia do Norte é feito com a China, que importa minerais do vizinho e o abastece com alimentos e energia. O combinado, então, era que os chineses sufocassem os coreanos, restringindo os negócios com eles. Em fevereiro, a China interrompeu as importações de carvão da Coreia do Norte. Depois, em junho, apoiou uma resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas expandindo sanções contra os norte-coreanos por causa dos testes com mísseis.

Entre analistas, permaneceu a sensação de que era preciso pagar para ver o comprometimento da China — que, com uma fronteira de 1 400 quilômetros dividida com a Coreia do Norte, também tem o que temer. O ceticismo aumentou depois que foram divulgados os dados da balança comercial dos dois países no primeiro trimestre. Em vez de cair, o comércio entre a Coreia do Norte e a China aumentou 40%.

Os números puseram uma pulga adicional atrás da orelha dos observadores. Trump voltou ao Twitter e deu outra volta de 180 graus. Ele escreveu na rede social que, apesar do esforço, a ajuda contra a ameaça nuclear da Coreia do Norte “não funcionou”, que a China “não fez nada” para conter o vizinho problemático e que estava “muito desapontado” com os chineses.

Produção de carne nos Estados Unidos: o país voltou a exportar carne para a China depois de 14 anos | Luke Sharrett/Getty Images

A declaração de Trump no Twitter foi interpretada como um rompimento pelos mais críticos. Um sinal disso é que nem mesmo o acordo comercial, que começou a ser costurado em Mar-a-Lago, avançou. Em julho, o primeiro encontro bilateral para discutir os termos do acordo se encerrou sem um entendimento. Segundo a imprensa americana, a China não concordou em cortar sua produção de aço. “A China tem seus limites de habilidade para cooperar e a questão da Coreia do Norte é um exemplo”, diz Shen Dingli, vice-reitor do Instituto de Assuntos Internacionais na Universidade Fudan, de Xangai. Do ponto de vista chinês, o colapso norte-coreano só traria problemas — a começar por um eventual fluxo de refugiados em sua fronteira no caso de um conflito. Fora isso, a mais remota possibilidade de que o desmantelamento do regime de Kim Jong Un abrisse caminho para a reunificação do país com a Coreia do Sul, que abriga 29 000 militares americanos, causa calafrios na alta cúpula do governo chinês. Em uma entrevista coletiva recente, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Li, disse que, se houvesse uma guerra na península coreana, o resultado seria nada além de perdas múltiplas. “Ninguém venceria”, afirmou.

A cooperação entre a China e os Estados Unidos é bem-vinda e ajudaria a manter a paz na região. Mas poucos se arriscam a dizer como ficará a relação com os chineses durante os próximos anos do governo Trump. “A relação entre os Estados Unidos e a China é caracterizada por uma complexa mistura de cooperação e competição”, diz Tom Rafferty, analista da consultoria  The Economist Intelligence Unit, baseado em Pequim. Nas últimas décadas, os chineses têm procurado assumir uma posição de protagonismo regional e global. Com um passo à frente e outro para trás, a aposta mais recorrente entre os especialistas é de que os Estados Unidos e a China mantenham as relações exatamente do mesmo jeito, entre amizade e conflito, pelo menos quando o assunto for a Coreia do Norte e o comércio. Mas talvez seja mesmo assim a relação de dois países em disputa pela hegemonia global.

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