Revista Exame

Um “ITA” para a Amazônia

Brasil construiu sua indústria aeronáutica a partir do ITA. O cientista Carlos Nobre propõe replicar o modelo para salvar a Amazônia

A grande floresta: para desenvolver ciência de ponta na região, é preciso criar uma instituição capaz de atrair talentos e gerar mão de obra (Ian Trower/Getty Images)

A grande floresta: para desenvolver ciência de ponta na região, é preciso criar uma instituição capaz de atrair talentos e gerar mão de obra (Ian Trower/Getty Images)

RC

Rodrigo Caetano

Publicado em 19 de dezembro de 2019 às 05h46.

Última atualização em 19 de dezembro de 2019 às 10h15.

O marechal Casimiro Montenegro Filho é considerado um visionário da aeronáutica brasileira. Foi ele que inaugurou o Correio Aéreo Nacional ao voar do Rio de Janeiro a São Paulo em 1931. Seu grande feito se daria, no entanto, na década de 50 com a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, em São José dos Campos. A ideia havia ganhado corpo anos antes, durante a Segunda Guerra Mundial.

Em 1942, Montenegro viajou para os Estados Unidos com a missão de comprar aviões de combate. Em solo americano, o militar conheceu o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), e a experiência o convenceu de que importar aeronaves não era um bom negócio. Numa época em que o Brasil não produzia sequer bicicletas, o marechal sonhou com uma indústria aeronáutica nacional.

Para isso, foi importado um corpo docente altamente qualificado dos Estados Unidos e da Europa. Nos anos iniciais do ITA, professores de 16 nacionalidades chegaram a dar aulas na instituição. Os resultados começaram a ser colhidos menos de duas décadas depois: em 1968, foi lançado o Bandeirante, primeiro avião desenvolvido pela Embraer. Ao longo de quase 70 anos, mais de 5.000 engenheiros foram formados pelo ITA. O instituto transformou o Brasil em um formador de mão de obra especializada para uma das indústrias mais tecnológicas do mundo. O legado de Montenegro continua presente não apenas nas empresas brasileiras que fornecem para a cadeia aeronáutica mas também na capacidade de fomentar novos empreendedores.

No Brasil de hoje, o cientista Carlos Nobre inspira-se na epopeia vivida pelo marechal para levar à frente um projeto igualmente ambicioso. “Quero criar o ITA da Amazônia”, diz Nobre. “Temos a maior biodiversidade do mundo. Se quisermos competir globalmente, precisamos olhar para os setores em que somos mais fortes e criar condições para industrializar nossos ativos naturais.” Um dos mais renomados cientistas brasileiros, Nobre também é um visionário. Formado em engenharia pelo próprio ITA e com doutorado no MIT, ele foi um dos pioneiros no estudo de modelos climáticos, métodos matemáticos de simulação das dinâmicas naturais, que são a base das pesquisas modernas sobre o clima.

Agora o cientista quer replicar a experiência do ITA na Região Norte e criar uma estrutura de geração de conhecimento para fomentar uma indústria de biotecnologia no Brasil. A ideia é unir esforços do governo e da iniciativa privada para financiar pesquisas, construir laboratórios, formar mão de obra qualificada e atrair acadêmicos de todo o mundo para trabalhar com uma das maiores riquezas do país: a biodiversidade da Amazônia. O projeto está em estágio inicial. Nobre tem conversado com pessoas do meio acadêmico no Brasil e em outros países latino-americanos — sua ideia é criar um esforço pan-amazônico.

Quem está por dentro dos planos é Guilherme Leal, um dos fundadores da fabricante de cosméticos Natura. O cientista e o empresário trocaram e-mails sobre o assunto, compartilhando ideias semelhantes. Leal confirmou a EXAME que tem conversado com Nobre, por quem o empresário nutre grande respeito. Mas ressaltou que se trata de uma ideia ainda embrionária e preferiu não fazer mais comentários.

Laboratório do ITA: criado nos anos 50, o instituto trouxe professores do exterior | Germano Lüders

A proposta de Nobre mira o potencial econômico da Amazônia, ideia que se inspira na chamada bioeconomia, em alta em diferentes partes do mundo. A bioeconomia é definida pela produção de recursos renováveis e sua conversão em alimentos, energia limpa e produtos de base biológica. O setor engloba ainda desde fármacos até potenciais substitutos do petróleo, como a lignina, substância extraída do eucalipto e da cana-de-açúcar que pode ser usada na produção de plásticos e de combustíveis. Na Europa, a bioeconomia já movimenta mais de 2 trilhões de euros e proporciona 18 milhões de empregos.

Na região amazônica, a ciência e a tecnologia seriam capazes de criar produtos de alto valor agregado, em vez de apenas insumos ou commodities. Um exemplo desse potencial é o açaí, um fruto da floresta. Típico da Amazônia, o fruto gera atualmente cerca de 2 bilhões de reais por ano em receita para os produtores, que exportam a maior parte da produção. Esse valor é multiplicado por 10 por empresas no exterior que vendem diversos produtos derivados do açaí. No modelo proposto por Nobre, a pesquisa de base — financiada pelo governo — descobriria os insumos. Já as empresas bancariam o desenvolvimento dos produtos.

O governo tem outros planos para incentivar a bioeconomia na Amazônia. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chegou a convidar Nobre para um jantar em sua casa, em São Paulo. No encontro, eles debateram como incentivar o setor. Para Salles, o caminho é unicamente pela iniciativa privada. “O problema não é a falta de ciência, é uma visão anticapitalista”, disse o ministro a EXAME, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, em Madri (leia reportagem “O maior risco é a incerteza”). “Precisamos criar as condições para que as empresas se sintam encorajadas a assumir riscos. Não podemos ter um modelo no qual, se dá certo, a empresa ganha, se dá errado, o governo paga.”

Essa visão está presente na reformulação que a Superintendência da Zona Franca de Manaus promove no Centro de Biotecnologia da Amazônia. O CBA, em tese, deveria fomentar o desenvolvimento tecnológico na região. O projeto foi criado em 2002, em Manaus, para estimular pesquisas na área biológica e conta com uma estrutura de 12.000 metros quadrados onde funcionam 25 laboratórios. Em 2018, o governo de Michel Temer já havia elaborado um plano para aproximar o CBA do setor privado. Apesar dos 65 milhões de reais gastos pelo governo, a avaliação era de que poucas pesquisas haviam resultado em negócios.

Foi feito um edital para transformar o centro em uma organização social, vencido pela Aliança para a Bioeconomia da Amazônia, grupo formado por diversas instituições de pesquisas, entre elas a Fundação Oswaldo Cruz. O governo Bolsonaro, no entanto, revogou o edital. No lugar de pesquisa de base, a ideia é focar a atração de grandes empresas de biotecnologia. “Não vamos mais desenvolver pesquisas que levam anos e não resultam em nada”, diz Fábio Calderaro, que assumiu o comando do CBA no início de 2019. Sua intenção é dar uma missão mercadológica ao centro, com apoio ao desenvolvimento de produtos e negócios.

Carlos Nobre: “A Indústria 4.0 oferece uma chance única de pular etapas” | Tiziana Fabi/AFP

Para Nobre, a estrutura atual de produção de conhecimento na Amazônia é, de fato, obsoleta. A diferença em relação à visão de Calderaro é que, para ele, de nada adianta criar hubs de inovação para a iniciativa privada se as empresas não puderem contar com universidades despejando no mercado capital humano e intelectual, assim como o ITA fez para a Embraer e para empresas em seu entorno durante décadas. “Nos Estados Unidos, a maior parte dos investimentos em pesquisa acadêmica vem do governo”, diz o pesquisador.

Dados da Fundação Nacional da Ciência, agência americana para a inovação, mostram que os governos federal e locais responderam por mais de 60% do financiamento de pesquisas acadêmicas no país em 2016 (último dado disponível). Considerando o cenário de pesquisa como um todo, essa proporção se inverte: 7 de cada 10 dólares aplicados vêm das empresas.

A geógrafa americana Susanna B. Hecht, da Universidade da Califórnia, uma das maiores especialistas do mundo em economia da Amazônia, alerta que todos os governos brasileiros, até hoje, compartilham a mesma visão desenvolvimentista equivocada em relação a seus recursos naturais. “É uma opção por um desenvolvimento baseado na posse da terra, um modelo que remete ao passado”, afirma ela. A alternativa seria a criação de plataformas abertas de geração de conhecimento. Essa é uma diferença, por exemplo, entre os estados americanos da Califórnia e do Mississippi.

No primeiro caso, a opção é pela ciência e tecnologia. Não por acaso, o Vale do Silício nasceu ali. “Já o Mississippi vende commodities”, diz Susanna. No Brasil, é preciso olhar para a Indústria 4.0. “Vivemos uma fase de transição, a chamada Quarta Revolução Industrial. Isso nos oferece uma chance única de pular etapas na industrialização e, finalmente, nos alinhar aos países desenvolvidos”, diz Nobre. No passado, o sonho do marechal Montenegro parecia um delírio. Mas o tempo provou que ele estava certo. 

Acompanhe tudo sobre:Amazôniaeconomia-brasileiraMeio ambiente

Mais de Revista Exame

Invasão chinesa: os carros asiáticos que chegarão ao Brasil nos próximos meses

Maiores bancos do Brasil apostam na expansão do crédito para crescer

MM 24: Operadoras de planos de saúde reduzem lucro líquido em 191%

MM 2024: As maiores empresas do Brasil