Barris de cachaça: donos da Velho Barreiro tentam reestruturar os negócios | Bruno Figueiredo /Folhapress /
Da Redação
Publicado em 20 de outubro de 2017 às 06h00.
Última atualização em 20 de outubro de 2017 às 06h00.
Ao longo de seis décadas, a família Tavares de Almeida construiu o próprio império no Brasil. Manuel Tavares de Almeida deixou Portugal em 1949, aos 18 anos, e logo montou uma rede de padarias em São Paulo. Às padarias, juntaram-se bares, postos de gasolina, usinas de álcool, uma cachaçaria — fabricante da tradicional marca Velho Barreiro —, uma geradora de energia, um banco, um hotel e diversos imóveis. Ao todo, os negócios da família chegaram a um patrimônio estimado em quase 2 bilhões de reais em 2010. Os Tavares de Almeida estavam entre os membros considerados mais influentes da comunidade portuguesa no Brasil, engajados nas relações comerciais e políticas com o país de origem. Mas tudo mudou nos últimos anos. Além de a receita ter caído, a dívida cresceu, problemas com a Justiça apareceram e o patriarca morreu. Hoje, o grupo tenta ficar longe dos holofotes e é alvo de credores que cobram mais de 600 milhões de reais em débitos em diversas disputas judiciais.
Em setembro, as usinas Vista Alegre e Agrícola Almeida, que pertencem ao grupo Tavares de Almeida, entraram com pedido de recuperação judicial. Não é surpreendente para um setor que já conta com quase 100 usinas na mesma situação — neste ano, apenas dois grupos, Tonon e Abengoa Bioenergia, chegaram à recuperação judicial com dívidas que, somadas, ultrapassam 5 bilhões de reais. Os casos da Vista Alegre e da Almeida também não são, portanto, os de maiores valores. Mas jogam luz sobre o drama financeiro que o grupo vem vivendo nos últimos anos e que pode comprometer parte dos outros negócios.
O enrosco do grupo Tavares de Almeida começou no já remoto ano de 2010, quando a economia brasileira teve o maior crescimento em mais de duas décadas. A família tinha na produção de açúcar e álcool seu principal negócio para fabricação de cachaça. A Indústria Reunida de Bebidas Tatuzinho produzia cerca de 20 milhões de litros das marcas Tatuzinho e Velho Barreiro, quando os controladores decidiram investir em geração de energia, para autossuficiência e para venda a terceiros. O crescimento foi feito basicamente com crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, via repasse dos bancos Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Santander. Os Tavares de Almeida também recorreram ao Fundo Garantidor de Crédito (FGC) e contraíram um empréstimo de 35 milhões de reais para capitalizar o banco que controlavam, o Luso Brasileiro. Com mais capital, o banco poderia financiar fornecedores e clientes. No mercado de bebidas, o grupo se reinventava, lançando cachaças premium e uma linha de energéticos.
O primeiro problema apareceu no banco Luso Brasileiro. Uma auditoria do Banco Central, em 2013, descobriu indícios de irregularidades e obrigou a família a se afastar da gestão. Com a entrada de novos sócios — o grupo português Amorim e o grupo brasileiro Ruas —, a família foi diluída no capital do banco. Quatro administradores foram indiciados pelo Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo, incluindo Manuel Tavares de Almeida Filho, que assumiu inteiramente o comando dos negócios após a morte do pai, em 2015. A investigação apontava que o Luso Brasileiro teria prestado informação falsa ao Banco Central. Segundo o MPF, o banco superfaturou o valor de imóveis recebidos para quitação de dívidas e classificou operações de crédito de forma incorreta para maquiar a real situação financeira da instituição, melhorando seus balanços nos anos de 2008 e 2009. O Banco Central também apontava que os acusados inseriram nos demonstrativos contábeis do Luso Brasileiro provisões insuficientes para operações de crédito. A ação penal corre em segredo de Justiça no Superior Tribunal Federal e tem audiência marcada para março de 2018. Um dos argumentos dos acusados anexados ao caso recentemente, segundo EXAME apurou, é que os empréstimos em questão foram todos quitados — uma indicação de que não foram classificados de forma pouco conservadora. Já o financiamento tomado com o FGC para capitalizar o banco não foi quitado e, entre aditivos e atualização, a dívida hoje é de 70 milhões de reais. Para tentar receber depois de anos de negociação, o FGC quer agora tomar algumas das garantias dadas pela família, como os 14% de participação que ela ainda detém no banco Luso Brasileiro, 2 hectares de terra vizinhos ao haras da família e uma participação na empresa de máquinas agrícolas Motocana.
Com as contas expostas, naquele mesmo 2013, o Ministério Público Federal de Piracicaba denunciou 12 pessoas ligadas à Tatuzinho, incluindo Manuel Filho. Segundo o MPF, havia um esquema de emissão de notas fiscais e documentos falsos para reduzir o imposto sobre produtos industrializados e o imposto de renda incidentes nas saídas dos produtos produzidos pela Indústria Reunidas de Bebidas Tatuzinho 3 Fazendas Ltda., obtendo crédito fiscal indevido. Depois de anos se arrastando na Justiça, em recursos que já chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, a própria Receita Federal — responsável pelas informações prestadas ao MPF para a formação de denúncia — não conseguiu provar que houve fraude nas notas. O barulho da Receita foi suficiente, no entanto, para atrapalhar uma negociação da empresa com a sul-africana Distell, que avaliava crescer no Brasil com a aquisição. Foi nessa mesma época que o grupo britânico Diageo comprou a brasileira Ypióca por quase 1 bilhão de reais. A dívida fiscal da Tatuzinho continua em discussão. Da possível sonegação de 10 milhões de reais, entre atualizações e multas, o débito é de 400 milhões de reais. Em nota a EXAME, o grupo Tavares de Almeida “considera totalmente infundadas as suposições da Receita Federal, pois as transações colocadas sob suspeita decorreram de fornecimentos legítimos de insumos”, e ressalta que teve ganho de causa na esfera estadual. Por isso, o grupo espera que o mesmo veredito se confirme na autuação federal.
Canetada
Enquanto a família lidava com as acusações, as usinas de energia, que tinham se transformado no maior investimento dos Tavares de Almeida, começavam a também dar problemas. Assim como as concorrentes, a Vista Alegre e a Agrícola Almeida tomaram um baque com uma canetada do governo Dilma Rousseff no fim de 2010. Para conter a inflação, o governo decidiu controlar o preço dos combustíveis. As usinas não conseguiam repassar seus custos crescentes — foi proibida, por exemplo, a queima da cana, aumentando em cerca de 25% o custo fixo de uma usina. Pelo menos dez empresas do setor entraram com ação contra a União no começo deste ano por perdas que alegam terem sido causadas pela política de congelamento de preço da gasolina no passado. A primeira tentativa de renegociação com os bancos foi ainda em 2012. Mas, segundo um executivo que participou das discussões, o Banco do Brasil não quis fazer acordo. De lá para cá, são cinco anos sem pagar o empréstimo e sete pedidos de falência contra as usinas.
Credores reclamam que, no meio das discussões, Manuel Filho se mudou para Portugal e que o processo começou a se arrastar ainda mais, já que era difícil citá-lo nas ações judiciais — algo que chegou a levar um ano em algumas ações, segundo os advogados. Isso tornou as relações mais tensas nos últimos dois anos, e os bancos decidiram começar a executar algumas garantias no começo deste ano. Em maio, para tentar evitar a penhora da safra da usina e tornar inviável a operação, uma juíza de São Paulo convocou uma audiência de conciliação. Segundo os bancos, a proposta do grupo foi “ultrajante” e “afrontosa”. Seriam três anos de carência com 80% de desconto da dívida — em outras empresas do setor que concluíram ou estão em renegociações com bancos, como o grupo Bom Jesus, o grupo Farias e a Usina São João, essa parcela não chega a 50%. “Quem estava na mesa ficou ofendido. É uma postura pouco recomendável numa negociação”, diz o executivo de um dos bancos credores. A penhora de 45% da safra foi autorizada, e os credores já têm hoje mais de 6 milhões de toneladas de açúcar, 1 milhão de litros de etanol hidratado e 2 milhões de litros de etanol anidro parados nos armazéns das usinas — os credores agora pedem autorização judicial para comercializar tudo isso. A Tavares de Almeida alega que a penhora foi determinante para o pedido de recuperação judicial. “A decisão foi tomada depois de inúmeras tentativas de firmar um acordo com os credores”, diz em nota.
Os bancos têm em garantia mais de 30 imóveis das empresas e seus acionistas e também têm ações da cachaçaria Tatuzinho. Em última instância, o maior risco para a família seria uma execução dessa participação na empresa de bebidas. Em cinco anos, a produção anual das cachaças Velho Barreiro e Tatuzinho mais que dobrou, para 45 milhões de litros. As vendas das cachaças premium, segmento em que a Velho Barreiro investiu, caíram. Mas os produtos mais baratos e as exportações continuam crescendo. A Velho Barreiro é a segunda maior marca em participação de mercado, atrás apenas da 51, que pertence à Companhia Müller de Bebidas. “As marcas Velho Barreiro e Tatuzinho são o maior ativo da família hoje”, diz um executivo com conhecimento do assunto. A família, no entanto, não estuda a venda de participações para reduzir as dívidas — aposta que será possível fazer isso com novos prazos de pagamento. Outro negócio do grupo é o Hotel Casa Grande, no Guarujá, no litoral paulista — lá, a família Zwecker quer deixar a sociedade e receber 40% do valor do imóvel. Os Tavares de Almeida terão de desembolsar alguns milhões de reais se não quiserem vender o imóvel para pagar os sócios.