Revista Exame

Um guia para salvar a democracia

Leia a seguir, em primeira mão, um trecho do livro Sobre a Tirania, do historiador americano Timothy Snyder

O presidente da Rússia, Vladimir Putin: as guerras ajudaram o líder russo a consolidar seu poder (Vasily Maximov/Pool/Reuters)

O presidente da Rússia, Vladimir Putin: as guerras ajudaram o líder russo a consolidar seu poder (Vasily Maximov/Pool/Reuters)

RS

Raphaela Sereno

Publicado em 10 de junho de 2017 às 05h55.

Última atualização em 12 de junho de 2017 às 09h44.

São Paulo — Timothy Snyder, professor de história na Universidade Yale, fez fama na academia com o aprofundamento de estudos a respeito da história do leste europeu, de governos totalitários e do Holocausto. Seu último livro, Sobre a Tirania, há mais de dois meses na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, é o primeiro destinado ao grande público. Com uma linguagem direta, o texto, antes de virar livro, foi publicado como post no Facebook. Na mesma linha de seu mentor e amigo Tony Judt, historiador morto em 2010 com quem escreveu Pensando o Século XX, Snyder apresenta seus argumentos sem medo de entrar em controvérsias. Num momento em que cresce o temor em relação ao futuro da democracia americana e muitos acadêmicos mantêm o silêncio, Snyder vai para o ataque. Nos capítulos, divididos em 20 lições da história para combater a tirania, o autor não menciona o nome de Donald Trump, mas que ninguém se engane: Snyder deixa claro que “o presidente americano” é a grande razão de ser do livro. Leia a seguir um trecho de Sobre a Tirania, que será lançado em junho.

“A tirania moderna é a gestão do terror. Caso ocorram ataques terroristas, lembre-se de que os autoritários exploram esses fatos a fim de consolidar o poder. O desastre repentino que exige o fim dos mecanismos de controle, a dissolução de partidos de oposição, a suspensão da liberdade de expressão, o direito a um julgamento justo etc. é o truque mais antigo do manual hitlerista. Não se deixe enganar.

O incêndio do Reichstag foi o momento em que o governo de Adolf Hitler, que chegara ao poder principalmente por meios democráticos, tornou-se a ameaça permanente que era o regime nazista. Foi o arquétipo da gestão do terror. Em 27 de fevereiro de 1933, mais ou menos às 9 da noite, o edifício que abrigava o Parlamento alemão, o Reichstag, começou a pegar fogo. Quem provocou o incêndio em Berlim naquela noite? Não sabemos, e na verdade a resposta não interessa muito. O importante é que esse ato terrorista espetacular deu início à política de emergência. Naquela noite, observando as chamas com satisfação, Hitler disse: ‘Este incêndio é apenas o começo’. Tenham sido ou não os nazistas que provocaram o incêndio, Hitler viu ali uma oportunidade política: ‘De agora em diante não haverá misericórdia. Quem se colocar em nosso caminho será abatido’. No dia seguinte, um decreto suspendeu os direitos básicos de todos os cidadãos alemães, permitindo que fossem ‘detidos preventivamente’ pela polícia.

Com base na afirmação de Hitler de que o incêndio fora obra de inimigos da Alemanha, o Partido Nazista obteve uma vitória decisiva nas eleições parlamentares de 5 de março. A polícia e as organizações paramilitares nazistas passaram a prender os membros de partidos políticos de esquerda e a confiná-los em campos de concentração improvisados. Em 23 de março, o novo Parlamento aprovou uma lei que dava poderes a Hitler para governar por decreto. A partir daí, a Alemanha permaneceu num estado de emergência que durou 12 anos, até o fim da Segunda Guerra Mundial. Hitler havia usado um ato de terror, um fato de limitado significado por si só, para instituir um regime de terror que matou milhões de pessoas e mudou o mundo. Os autoritários de hoje também são gestores do terror, e se há alguma diferença é o fato de serem mais criativos. Pensemos no atual regime russo, tão admirado pelo atual presidente americano. Vladimir Putin não só chegou ao poder num incidente que lembrou bastante o incêndio do Reichstag como, em seguida, usou uma série de ataques terroristas — reais, questionáveis e falsos — para remover os obstáculos ao poder total na Rússia e atacar democracias vizinhas.

Quando Putin foi nomeado primeiro-ministro pelo combalido Boris Ieltsin, em agosto de 1999, era um desconhecido, com um índice de aprovação insignificante. No mês seguinte, uma série de edifícios foi vítima de atentados a bomba, praticados, ao que tudo indica, pela polícia secreta russa. Seus oficiais foram presos pelos próprios colegas, com evidências de sua culpa. Em outro caso, o presidente do Parlamento russo anunciou uma explosão dias antes que ela ocorresse. Não obstante, Putin declarou uma guerra de vingança contra a população muçulmana da Rússia na Chechênia, prometendo perseguir os supostos culpados e ‘acabar com eles numa fossa’.

A nação russa cerrou fileiras. Os índices de aprovação de Putin dispararam. Em março do ano seguinte, ele ganhou a eleição presidencial. Em 2002, depois de forças de segurança russas terem matado dezenas de civis ao reprimir um ataque terrorista real num teatro de Moscou, Putin explorou o incidente para assegurar o controle da televisão privada. Depois que uma escola em Beslan foi sitiada por terroristas em 2004, Putin cassou os governantes regionais eleitos. Portanto, o que possibilitou a ascensão de Putin ao poder e a eliminação de duas instituições importantes — a televisão privada e os governos regionais eleitos — foi a gestão de terrorismo real, falso ou questionável.

Depois da volta de Putin à Presidência em 2012, a Rússia adotou a gestão do terror em sua política externa. Ao invadir a Ucrânia em 2014, a Rússia transformou unidades de seu Exército regular numa força terrorista, removendo insígnias das fardas e negando toda responsabilidade pelo terrível sofrimento que essas unidades infligiam. Na campanha de ocupação da região de Donbass, no sudeste da Ucrânia, a Rússia utilizou tropas chechenas irregulares e enviou unidades regulares de seu Exército, baseadas em regiões muçulmanas, para participar da invasão. A Rússia também tentou, sem sucesso, invadir o sistema de informática da eleição presidencial ucraniana em 2014.

Em abril de 2015, hackers russos interferiram na transmissão de uma emissora de TV francesa, passando-se por agentes do Estado Islâmico, e a seguir transmitiram conteúdos destinados a aterrorizar a França. O material russo apresentava um suposto ‘cibercalifado’, para que os franceses se sentissem mais assustados do que já estavam. O objetivo presumível seria levar os eleitores a votar na Frente Nacional, partido de extrema direita apoiado financeiramente pela Rússia. Depois de 139 pessoas serem mortas e 368 feridas no ataque terrorista em Paris em novembro de 2015, o fundador de uma organização de pesquisa interdisciplinar ligada ao Kremlin aplaudiu a possibilidade de que o terrorismo aproximasse a Europa do fascismo e da Rússia. Em outras palavras, o terrorismo islâmico na Europa, fosse ele falso ou real, interessava à Rússia.

No início de 2016, a Rússia produziu um momento de falso terror na Alemanha. Enquanto bombardeava civis sírios e, com isso, empurrava os refugiados muçulmanos para a Europa, a Rússia explorou um drama familiar a fim de mostrar aos alemães que os muçulmanos estupravam crianças. O objetivo, novamente, teria sido desestabilizar um sistema democrático e promover os partidos de extrema direita. Em setembro daquele ano, o governo alemão anunciara que receberia meio milhão de refugiados da guerra na Síria. A Rússia deu início, então, a uma campanha de bombardeios na Síria que tinha como alvo a população civil.

Em janeiro de 2016, os meios de comunicação russos divulgaram a notícia de que, na Alemanha, uma moça de origem russa que estava desaparecida fazia certo tempo tinha sido vítima de um estupro coletivo por parte de imigrantes muçulmanos. Com uma rapidez bem suspeita, organizações de extrema direita na Alemanha promoveram protestos contra o governo. Quando a polícia informou a população que nada disso tinha acontecido, a mídia russa acusou-a de acobertar o crime. Até diplomatas russos participaram do espetáculo. Quando o atual presidente americano e seu conselheiro de segurança nacional falam em combater o terrorismo ao lado da Rússia, o que estão propondo ao povo americano é a gestão do terror, a exploração de ataques terroristas reais, duvidosos e simulados para derrubar a democracia.

A narrativa russa do primeiro telefonema entre o presidente americano e Putin é reveladora. Os dois homens ‘compartilharam a opinião segundo a qual é necessário juntar esforços contra o inimigo comum número 1: o terrorismo e o extremismo internacionais’. Para os tiranos, a lição deixada pelo incêndio do Reichstag é que um momento de choque permite uma eternidade de submissão. Para nós, a lição é que nosso medo e nosso luto não devem possibilitar a destruição de nossas instituições. Coragem não significa ausência de medo ou de luto. Significa reconhecer e resistir à gestão do terror imediatamente, a partir do momento do ataque, justamente quando isso parece mais difícil.”

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