Luciana Lutaif, diretora de projetos de transformação organizacional da consultoria Accenture: oito anos de qualificações e uma promoção a um cargo sênior (Leandro Fonseca/Exame)
Luísa Granato
Publicado em 11 de março de 2021 às 05h55.
Última atualização em 16 de março de 2021 às 15h32.
A história da assistente administrativa Liliane Martins, de São Paulo, é um exemplo de como a pandemia colocou à prova as habilidades profissionais de boa parte da mão de obra mundo afora. Antes da crise sanitária, Martins trabalhava há uma década num guichê de análise de crédito numa das lojas da varejista Casas Bahia na Grande São Paulo.
O risco de contágio pelo vírus fez a gerência da loja suspender o entra e sai de clientes logo nos primeiros dias de pandemia. O contrato de trabalho de Martins chegou a ser suspenso por 30 dias por causa da mudança abrupta. Hoje em dia, embora a pandemia siga ceifando vidas e atrapalhando todo tipo de planejamento das empresas brasileiras, Martins está com mais esperança sobre seu futuro profissional.
Há 12 meses, ela frequentou aulas online na universidade corporativa da Via Varejo (dona da marca Casas Bahia) para aprender a mexer em softwares para atendimento virtual de clientes e recuperar noções básicas de Excel. “No dia a dia, a gente não se preocupa em aprender novas coisas”, diz. “Mas vieram essas mudanças todas e precisei me preocupar.” A formação veio em boa hora.
Com as vendas online da Via Varejo bombando na quarentena, Martins fez parte de um grupo de 500 funcionários convidados para trocar os guichês pelo atendimento remoto dos clientes. A mudança coincidiu com um aumento de produtividade do setor: hoje, passam por ali 180.000 chamados de clientes por semana, 25 vezes mais do que antes da pandemia.
As aulas que Martins fez há um ano são parte de uma tendência global das empresas em ensinar seus funcionários a dar conta de desafios abertos com o passar do tempo. É o que consultores em recursos humanos chamam de reskilling — ou, em bom português, nova formação. O assunto está longe de ser uma novidade.
Desde a Revolução Industrial, no século 18, capitalistas volta e meia dedicam tempo a iniciativas para ensinar tecnologias capazes de tornar obsoletas as funções de seus empregados — e, no limite, destruir a competitividade de seus negócios. Nas últimas décadas, empresas de diversos portes criaram universidades corporativas para manter os funcionários antenados.
Mas poucas vezes o reskilling esteve tão presente na cabeça de gestores como agora. Um indício é como o tema tem sido tratado no Fórum Econômico Mundial, encontro de boa parte da elite do capitalismo mundial em Davos, na Suíça.
A discussão surgiu em 2016, ano em que o Fórum passou a publicar um relatório sobre o futuro do trabalho. Na época, o gancho era o risco de a automação limar empregos em até 40% das profissões. As incertezas da pandemia agregaram preocupações. Não à toa, a versão 2021 do fórum, à distância, colocou o reskilling como uma das tendências da próxima década.
Se bem realizada, a formação continuada da mão de obra pode trazer ganhos inéditos ao capitalismo mundial. Um relatório divulgado na versão virtual de Davos, em janeiro, estimou um acréscimo ao PIB de 6,5 trilhões de dólares — ou 8% da riqueza mundial — até 2030 caso a mão de obra de 57 cadeias produtivas em 140 países passe por algum tipo de qualificação profissional nesta década.
Nas contas da entidade, os ganhos viriam do aumento de produtividade em empregos já existentes ou na criação de novos. No cenário mais otimista, 97 milhões de empregos poderiam ser abertos até 2025 em carreiras dependentes de tecnologias promissoras, como inteligência artificial. “O investimento agora na requalificação da força de trabalho para demandas do futuro pode quebrar um círculo vicioso de desigualdade e ajudar na recuperação pós-covid”, diz Till Leopold, pesquisador do Fórum Econômico Mundial.
Num país como o Brasil, em que nos próximos três anos devem sobrar 260.000 vagas de trabalho no setor de tecnologia por pura e simples falta de gente qualificada, empresas de vários setores vêm promovendo uma corrida pelo reskilling. Em dezembro, o varejista online Mercado Livre anunciou 10.000 bolsas de estudo a interessados em aprender a criar um software.
Dois meses depois, o aplicativo de entregas iFood prometeu formar 10 milhões de pessoas em habilidades do futuro. Quem tem mais tradição nos esforços pelo reskilling colhe os resultados. Na Via Varejo, que acabou tendo vendas recordes em 2020 por causa da digitalização, a formação de mão de obra como a feita por Martins ajudou a empresa a dar conta da avalanche de novos pedidos.
O tempo de espera dos clientes para resolver percalços com a empresa caiu 88% em relação ao normal pré-pandemia. No gigante de papel e celulose Suzano, mais de 2.000 funcionários aprenderam conceitos inovadores da gestão de projetos, como design thinking e metodologias ágeis. A formação ajudou a empresa a criar rotinas para minimizar o desperdício de recursos na fabricação de papel.
“Tenho um livrinho com ideias mapeadas de melhorias”, diz o engenheiro Guilherme Randi, capacitado como cientista de dados pela universidade corporativa da empresa no fim de 2020. Os projetos criados pelo pessoal formado na universidade corporativa trouxeram ganhos na casa de 10 milhões de reais à empresa.
O desafio de formar mão de obra para um mercado de trabalho sacudido pela pandemia também chama a atenção de governos. Afinal, o isolamento social dificultou o trabalho das agências públicas de recrutamento e seleção de pessoal, como o Sine — quem está disposto a se aglomerar por horas a fio em troca de uma promessa de emprego?
A solução tem sido formar mão de obra de acordo com as demandas dos negócios onde as pessoas moram. “Nosso trabalho é dar match”, diz Patricia Ellen, secretária de temas ligados à economia e à tecnologia no gabinete do governador paulista João Doria (PSDB). Está sob responsabilidade de Ellen a gestão das escolas técnicas e profissionalizantes ligadas ao governo paulista, além do MEu Emprego, portal estadual de seleção de pessoas.
No meio da pandemia, o time dela passou a monitorar as habilidades desejadas pelas empresas com operação em São Paulo e, na ponta da formação, oferecer cursos online com base nas demandas em alta, como cursos de games. Mais de 200.000 adultos passaram pelo reskilling no ano passado. Boa parte já saiu empregada. “A síntese é saber onde está a demanda, contar com as empresas para isso, e trabalhar com a população para saber o que ela quer fazer”, diz.
A iniciativa brasileira segue os passos de países desenvolvidos em que governos vão no detalhe na hora de ajudar os cidadãos a entender de que o mercado de trabalho está precisando. Em Singapura, uma iniciativa chamada SkillsFuture é uma espécie de “rede social” do reskilling. Numa mesma página virtual, candidatos colocam informações básicas, como identidade e formação, e podem checar as vagas abertas em suas áreas de interesse — ou aprender ofícios de quem está contratando. O sistema atendeu mais de 500.000 pessoas em 2020.
Embora esteja na ordem do dia na agenda de gestores privados e públicos, o reskilling traz incertezas. Como saber de antemão o tipo de qualificação a ser demandado nas empresas daqui a cinco ou dez anos? Como abrir os olhos de funcionários pouco dispostos a abraçar novidades? A trajetória da consultoria global Accenture traz algumas pistas. A companhia é uma das maiores defensoras do reskilling — a empresa gasta 1 bilhão de dólares por ano para treinar 500.000 funcionários em mais de 100 países.
Por ali, a regra é: o funcionário precisa ficar esperto para o momento em que suas qualificações já não têm mais a mesma serventia de antes e, no momento seguinte, tomar iniciativa. “Qualquer profissional precisa entender que seu trabalho mudou ou vai mudar, e que ele é o principal agente para fazer a disrupção do próprio trabalho”, diz Beatriz Sairafi, diretora de RH da Accenture.
Para além disso, a empresa toda está passando por uma atualização sobre as próximas habilidades tecnológicas, como blockchain ou segurança digital, para que todos “falem a mesma língua”. “Isso serve para antever quem já está preparado para as demandas futuras dos clientes.
A depender do resultado, e do cargo de quem fez a prova, um sistema de inteligência artificial monta uma trilha de cursos a ser feitos. Quem leva a sério sobe na carreira.” Na Accenture há 16 anos, a psicóloga Luciana Lutaif acumulou milhares de horas em cursos de gestão nos últimos oito anos. No período, ela saiu de um cargo de gerência para o de diretora de talentos na empresa. “Fiz toda a carreira de analista, consultora e gerente, mas a passagem para um cargo mais sênior demorou até eu resolver estudar”, diz Lutaif.
“Os cursos me ensinaram habilidades de diretoria e, quando veio a promoção, foi um passo natural.” Em algumas empresas, jogos têm sido usados para engajar os funcionários. Na fabricante de cosméticos O Boticário, um jogo chamado Connect ensina conteúdos úteis à empresa numa realidade virtual em que os funcionários devem avançar de fase, como um game.
A empresa investiu mais de 1 milhão de reais, entre gastos com o desenvolvimento na solução e prêmios pagos aos funcionários mais bem colocados nos jogos. Segundo a empresa, os jogos chamaram a atenção. O comparecimento aos treinamentos está em 60%, acima do usual antes da ferramenta. Aqui e ali, negócios apostam no reskilling para prosperar num mundo incerto com a automação e a pandemia. Resta saber se a conta desses ganhos vai de fato chegar — e quando.
Com a pandemia rompendo divisões entre ensino presencial e remoto, edtechs como a Descomplica, de cursos 100% online, atraem investidores | Carolina Ingizza
Ao passo que as matrículas para cursos presenciais em faculdades caíram 70% no segundo semestre de 2020 por causa da pandemia, negócios de tecnologia como a edtech carioca Descomplica bombaram no ano passado. As matrículas nos cursos de pós-graduação da Descomplica multiplicaram-se por dez — hoje são 30.000 alunos.
Por causa do boom do ensino remoto, um projeto antigo saiu do papel: a Faculdade Descomplica, lançada em agosto, e hoje com cursos de pedagogia, administração, contabilidade e gestão de pessoas. A boa fase atraiu investidores. No mês passado, a edtech recebeu 84,5 milhões de dólares — quase o triplo de tudo o que havia recebido antes — de fundos de peso, como o SoftBank. A bolada vai para a expansão da faculdade digital. “Queremos sair de quatro para 50 cursos no menor tempo possível”, diz Marco Fisbhen, fundador da edtech.
Ao que tudo indica, histórias de sucesso no ensino online vão ficar mais comuns daqui para a frente, à medida que a pandemia quebrar preconceitos contra o ensino à distância, também conhecido pela sigla EaD. Antes da crise sanitária, 65% dos alunos de cursos fortes no presencial, como enfermagem, direito e engenharia, consideravam a sala de aula insubstituível, segundo uma pesquisa da consultoria Atmã Educar, especializada no setor. No fim de 2020, a fatia caiu para 43% dos estudantes.
“O que antes era um plano B passou a ser a primeira opção para muitos estudantes”, diz Rodrigo de Godoy, head da EXAME Academy, unidade de cursos online da EXAME que prepara o lançamento de um portfólio de cursos de graduação e pós, de modo online,
no primeiro semestre de 2021.
Para além da pandemia, o governo federal deu um empurrão ao ensino online. Em 2019 o Ministério da Educação autorizou cursos presenciais a colocar online até 40% das aulas, atendendo ao desejo de grupos educacionais como Cogna, Ser, Yduqs e Ânima, que apostam num futuro em que o ensino superior vai misturar aulas online e presenciais — o chamado ensino híbrido. “O que a crise sanitária fez foi catalisar um processo que demoraria até dez anos para ocorrer no ensino superior”, diz Romário Davel, sócio da Atmã Educar.
Um desafio para novatas no ensino superior online, como a Descomplica, é a definição de preços. Hoje, o desconto é um fator importante na decisão de escolha por um curso online: 41% dos estudantes de EaD optaram por essa modalidade por causa dos preços baixos, diz uma pesquisa recente da consultoria Educa Insights. A mudança no patamar do setor vai depender de boas estratégias de marketing, diz Daniel Infante, sócio da Educa. “É o canal para tornar o negócio conhecido enquanto não há ex-alunos para falar bem da faculdade”, diz.