Médicos em ação: o desafio é fazer o máximo pela vida mantendo o equilíbrio nos gastos (Michele Tantussi/Bloomberg)
Flávia Furlan
Publicado em 21 de setembro de 2017 às 05h43.
Última atualização em 21 de setembro de 2017 às 05h43.
São Paulo – O Brasil tem uma realidade intrigante: faltam leitos hospitalares nas grandes cidades, mas há sobra em municípios do interior, numa evidente demonstração da ineficiência de nosso sistema de saúde. Veja o caso da cidade potiguar de Canguaretama, de 34.000 habitantes, situada a 70 quilômetros de Natal. No hospital estadual Dr. Getúlio de Oliveira Sales, erguido na década de 70, está ocupada menos da metade dos 30 leitos disponíveis e são realizadas apenas 90 cirurgias por mês, em dois dias da semana. O restante da estrutura faz consultas para 3.000 pacientes por mês, um atendimento que deveria ficar com as unidades de saúde municipais, mas que muita gente corre para ter no hospital.
Enquanto isso, em Natal, há filas nos hospitais. Pressionado pelo Ministério Público Estadual, desde julho o governo do Rio Grande do Norte está buscando alternativas para o caso. Na mesa, estão opções como a conversão do hospital de Canguaretama em pronto-atendimento ou unidade básica de saúde — ou até mesmo a desativação. A situação atinge mais sete dos 22 hospitais estaduais.
“Transferir os equipamentos para outro hospital a 50 quilômetros dali, numa região metropolitana, seria melhor porque concentraria recursos e não deixaria a população desassistida”, diz a promotora Kalina Filgueira, envolvida no caso. “Mas todo político quer um hospital para chamar de seu e há muita resistência.” A administração do hospital de Canguaretama defende que a unidade se concentre em cirurgias. O governo está para apresentar uma proposta sobre o que fará com cada hospital.
O caso potiguar — independentemente do desfecho — ilustra um debate que está crescendo no país: como acabar com as ineficiências do sistema de saúde. O Brasil gasta 9,5% do produto interno bruto com saúde, considerando o setor público e o privado. O valor está pouco acima dos 9% de países desenvolvidos, como a Espanha e o Reino Unido. E, apesar de relativamente alto em relação ao que produz a economia, o montante é pouco quando considerados os quase 210 milhões de habitantes. São menos de 1.000 dólares por paciente, um quinto da média desembolsada por países desenvolvidos.
A maior parte dos recursos para a saúde no Brasil vem do setor privado, apesar da promessa de um sistema público amplo. E há muito desperdício. Nas estimativas da Organização Mundial da Saúde, um quinto do que se gasta aqui normalmente vai para o ralo — no caso do sistema público, seria o equivalente a 49 bilhões de reais. “Enquanto não tivermos a segurança de que todo o dinheiro da saúde está bem aplicado, não temos de pedir mais”, diz o ministro da Saúde, Ricardo Barros, que participou do EXAME Fórum Saúde, evento que reuniu empresários, executivos e especialistas do setor no dia 11 de setembro em São Paulo. No encontro, o ministro apresentou um plano para a redução de desperdícios, com adoção de novas tecnologias, como o prontuário eletrônico, que prevê cortes de 50 bilhões de reais por ano.
Mais problemática do que essa fotografia é a dinâmica do gasto com saúde no país. Além de problemas tradicionais, o sistema enfrenta cada vez mais pressão com algo que é positivo: as pessoas estão vivendo mais. Em 2030, haverá 42 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, 90% deles sem plano de assistência. Se não houver mais eficiência, dados do Instituto Coalizão Saúde, formado por representantes do setor, mostram que os gastos com saúde vão chegar a 25% do PIB em 2035, um peso insustentável. “Não discutir a saúde na ótica do orçamento público é um descuido do país”, diz Claudio Lottenberg, presidente da operadora de planos e hospitais UnitedHealth Group Brasil.
Os Estados Unidos são um exemplo de muitos gastos e pouca solução. Os cidadãos americanos deverão direcionar 20% do PIB para serviços de saúde até 2025, ante os já elevados 18% atuais. A Academia Nacional de Medicina americana estima que 750 bilhões de dólares sejam desperdiçados por ano em fraudes, preços inadequados e serviços desnecessários. O resultado: num ranking da agência Bloomberg, que pondera a expectativa de vida e os gastos com saúde, os Estados Unidos estão na 50a posição. O Brasil está na 54a.
Felizmente, há iniciativas no Brasil para tornar o sistema mais eficiente. Uma parte delas envolve parcerias entre o setor público e o privado. Em São Paulo, o governo do estado está lançando uma nova parceria para exames de diagnóstico. Da forma como é feito hoje, o serviço está pulverizado. No novo modelo, uma empresa terá de montar um centro que receberá os exames feitos na rede pública e dispor de um grupo de médicos que farão os diagnósticos e enviarão de volta aos pacientes. São previstos investimentos de 356 milhões de reais em 20 anos com equipamentos, tecnologia e obras, mas o estado espera economizar 456 milhões de reais. “Não dá mais para separar o público do privado na saúde”, diz David Uip, secretário de Saúde de São Paulo, também presente no fórum.
Outra tendência é a contratação de organizações sociais para administrar hospitais. O sistema é considerado eficiente porque essas entidades operam livres da burocracia: podem escolher funcionários sem concurso público e compram insumos e serviços sem licitação. A remuneração é por uma espécie de pacote de procedimentos: a organização recebe um valor fixo e tem de se virar para dar conta do serviço, sempre seguindo metas de qualidade.
Dados do Banco Mundial mostram que nesse modelo o tempo médio de permanência por leito é 36% menor, o custo médio por paciente é 8% inferior e a taxa de ocupação do leito é 12% maior. O estado de Goiás optou por transferir a gestão de seus 16 hospitais para essa modalidade. “Ampliamos o quadro de auditores e adotamos sistemas que acompanham cada compra da organização em tempo real”, diz Leonardo Vilela, secretário de Saúde de Goiás. O resultado: os gastos com medicamentos em algumas unidades caíram para menos da metade.
Em Pernambuco, que começou a adotar o modelo em 2010, parte da estrutura foi mantida na administração direta. “É uma forma de proteção. Se há uma greve dos servidores, temos os hospitais das organizações sociais para compensar. Se uma crise dificulta essa atividade, mantemos os hospitais de administração direta do estado funcionando”, diz Iran Costa, secretário de Saúde de Pernambuco. Lá, os hospitais das organizações consomem 24% do orçamento, mas fazem 36% dos procedimentos.
É bom deixar claro que o sistema brasileiro de saúde pública é reconhecido no mundo devido a seu ideal de amplo acesso e à estrutura calcada em saúde básica. Mas a implementação é ruim. As unidades básicas, que deveriam acompanhar o paciente com frequência, têm poucos recursos e não cumprem sua função. Apesar de o país ter um programa de saúde familiar desde o início da década de 90, há apenas 0,1 médico de família para cada 1 000 habitantes, ante 1,7 na Alemanha e 1 no Chile.
Os Estados Unidos, com 0,3 médico de família por 1 000 habitantes, têm ampliado a contratação de outros profissionais para essa atividade, entre eles enfermeiros e técnicos — no Brasil, em agosto, o governo federal lançou uma portaria que permite aos agentes comunitários do Programa Saúde da Família aferir a pressão, fazer curativos e medir a glicemia. A iniciativa é criticada pelo Conselho Federal de Medicina sob o argumento de que é insegura para o paciente. O conselho também é contra a telemedicina e só permite as consultas a distância com a presença de um médico em cada ponta, algo que o governo batalha para mudar, pois tira a vantagem da telemedicina.
As unidades básicas têm outro problema: elas não se comunicam com o restante do sistema. Sem um programa de computador que reúna as informações dos pacientes e as transmita para as unidades de pronto-atendimento ou para os hospitais, pedidos de exames são repetidos, gerando gastos desnecessários. Em Araraquara, no interior paulista, 50% dos exames feitos na rede básica são repetidos por especialistas posteriormente, consumindo até 5% do orçamento da cidade para a saúde, de 220 milhões de reais por ano.
Em resposta a esse problema, o governo federal anunciou a meta de informatizar todas as unidades básicas do país até o fim de 2018 — em Araraquara, a adoção da tecnologia está em curso. “O Brasil tem um nível de excelência no profissional de saúde, e isso é inquestionável”, diz Renato Velloso Dias Cardoso, membro do conselho de administração da empresa de assistência Dr. Consulta. “Mas precisamos de engajamento ao protocolo para que não haja ineficiência, como pedidos de exames em excesso.”
A atenção básica é importante para um país que está deixando de ter a maioria das mortes causadas por doenças infecciosas e traumas — que requerem atendimento emergencial — para uma predominância de mortes por doenças crônicas, controláveis com tratamento ambulatorial. Sem esse acompanhamento, pacientes que poderiam estar com diabetes ou pressão controlados acabam parando nos hospitais com complicações.
“Mais de 30% das internações por doenças crônicas poderiam ser evitadas com a prática de atividade física”, diz Sidney Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein. Desde 2001, o hospital assumiu 13 unidades básicas da cidade de São Paulo no modelo de organizações sociais. Nesse período, alcançou 96% de vacinação em gestantes e reduziu a taxa de mortalidade infantil de 16 para dez por 1 000 nascidos vivos nas áreas atendidas. Nos últimos cinco anos, o número de consultas cresceu 34%.
Como em outros assuntos do país, o sistema de saúde está à mercê da vontade política. Nos últimos anos, com as negociações de emendas parlamentares — um dinheiro para os congressistas gastarem em suas zonas eleitorais —, os municípios receberam recursos para construir unidades básicas de saúde, mesmo sem dinheiro para fazê-las funcionar. Hoje, há 993 unidades básicas e 165 de pronto-atendimento, com valor estimado em 1 bilhão de reais, totalmente paradas.
Veja outra distorção. Com o passar dos anos, o número de municípios foi crescendo e, com ele, a inauguração de novas pontes, escolas — e também de hospitais. Atualmente, 54% dos municípios contam com um hospital geral, uma das estruturas mais caras do sistema de saúde. Só que 69% dos municípios têm menos de 20.000 habitantes — ou seja, uma parte desses hospitais caros está em cidades muito pequenas, que não têm condições de bancá-los. A consequência é uma alta ociosidade, que no caso do Sistema Único de Saúde chega a 51% dos leitos. Enquanto isso, as pessoas recorrem aos hospitais das grandes cidades, onde a situação é caótica.
Um consenso entre os analistas é que escala é fundamental para um hospital ser eficiente, bem como a especialização nos procedimentos. Um estudo feito pela fabricante de equipamentos para cirurgias Johnson&Johnson Medical Devices indica que hospitais que realizam mais de 200 cirurgias bariátricas por ano deixam o paciente internado, em média, 2,7 dias. Já os que fazem menos de 100 dessas cirurgias por ano têm o tempo elevado para 5,3 dias devido às complicações e à manutenção do paciente internado sem necessidade, entre outros problemas.
Em um projeto realizado com cinco hospitais filantrópicos nos últimos três anos, a Johnson identificou que não havia agilidade na montagem das salas entre as cirurgias e, com isso, perdia-se até 1 hora e meia na limpeza e organização. Com a adoção de novos processos, foi possível reduzir esse tempo a 35 minutos, permitindo a realização de 1 800 novas cirurgias por ano, sem nenhum investimento extra. “No ambiente empresarial, temos uma série de processos para tornar a operação mais eficiente, padronizada e precisa nos hospitais”, diz Adriano Caldas, presidente da Johnson&Johnson Medical Devices no Brasil.
Os especialistas têm recomendado que os municípios do interior trabalhem em consórcios regionais para aproveitar mais cada estrutura de acordo com a especialidade. O Canadá passou por essa discussão nas décadas de 80 e 90. Por lá, notou-se que os hospitais eram usados para casos de doenças que não eram agudas, demandando muito investimento. Numa estratégia nacional, o país passou a rever a organização do setor hospitalar e simplesmente decidiu fechar algumas unidades. O número de hospitais públicos, de 1987 a 1995, caiu 14%. Naquela época, protestos eram comuns, com o receio de que o serviço de saúde pudesse piorar. Houve realmente queda na capacidade de leitos e internações, mas o número de cirurgias e outros serviços ambulatoriais cresceu, sem consequências ruins para o sistema. No ranking da Bloomberg de qualidade do sistema, o Canadá está na 16a posição.
Há também muitos estímulos errados no modelo brasileiro. Um estudo feito pela consultoria PwC, com base em 100 000 internações no setor privado, mostrou que 20% delas excederam o tempo médio de estada do paciente. Caso essas internações ficassem na média de tempo, seriam economizados 25 milhões de reais por ano. Se os dados fossem aplicados à realidade do setor público, o potencial de economia seria de 2,8 bilhões de reais. “O maior tempo de internação decorre do pagamento por serviço, um modelo que não incentiva a eficiência”, diz Eliane Kihara, sócia da PwC. “O que precisa haver é um pagamento por resultado, com metas de produtividade.”
Outro problema é o fato de que, alegando o direito universal à saúde, muitas pessoas têm recorrido à Justiça para comprar remédios ainda não liberados pela agência sanitária ou para realizar procedimentos não cobertos pelo plano de saúde. Hoje, a conta dos processos abertos no setor de saúde pública está em 7 bilhões de reais. “Não dá para incorporar ao sistema toda a tecnologia que surge”, diz Lenir Santos, consultora do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. “Mesmo porque dados da Comunidade Europeia mostram que só 20% dos novos medicamentos são de fato inovadores.”
No sistema de saúde do Reino Unido, que serviu de exemplo ao brasileiro, a decisão sobre o que é coberto ocorre no nível local, em uma rede de duas centenas de grupos de autorização espalhados pelo país. Os grupos seguem uma lista de 15 princípios, entre benefícios para a comunidade e prioridades do governo. Mas há uma regra comum: os pacientes têm direito ao que for aprovado pelo Nice, órgão criado em 2000 para avaliar novas tecnologias e assessorar autoridades quanto a custos e benefícios. Lá, também há questionamentos na Justiça. Mas, quando há uma ação, ao contrário do que ocorre no Brasil, os juízes não liberam o uso de remédios e procedimentos, apenas pedem à comissão para reavaliar a decisão.
O Brasil também tem sua comissão para isso, mas que acaba desrespeitada na Justiça. Só neste ano o governo passou a dar apoio técnico aos juízes nas ações movidas pelos pacientes que exigem o que está fora da cobertura. Os magistrados poderão consultar pareceres médicos e jurisprudência numa base única de dados.
Com tantas ineficiências, há o risco de que o custo da saúde dispare no Brasil. Um estudo da corretora de seguros britânica Aon, que analisou 200.000 contratos em 91 países, aponta que os custos médicos vão crescer, em média, 8,2% neste ano em todo o mundo. O Brasil, no entanto, está no grupo de países — juntamente com Costa Rica, Honduras, Uganda, Guatemala e Argentina — em que a alta será de dois dígitos.
“Não podemos limitar o acesso à saúde pelo custo”, diz Marcelo Munerato, presidente da corretora Aon no Brasil. As tecnologias trazem vantagens para toda a sociedade. Um estudo do Banco Mundial revela que suturas com cobertura antibacteriana, mesmo mais caras do que as sem cobertura, diminuem em até 30% o risco de uma infecção hospitalar, uma complicação que faz o gasto com o paciente ficar até dez vezes maior. Só uma boa gestão é capaz de fazer essas análises com cuidado e dar acesso à saúde de qualidade a mais pessoas. É um caminho longo, mas que precisa ser trilhado pelo sistema de saúde brasileiro.