Os apps movem São Paulo: aplicativos permitem pedir comida, alugar uma patinete, agendar um cabeleireiro e ajudam até no passeio do pet (Montagem sobre fotos de Germano Lüders e Eduardo Frazão/Exame)
Da Redação
Publicado em 11 de abril de 2019 às 05h58.
Última atualização em 25 de julho de 2019 às 11h53.
Não é preciso ser viciado em tecnologia para sua rotina caber num aplicativo de smartphone. Uma carona de carro ou um aluguel de patinete pode levá-lo ao trabalho enquanto um passeador busca seu pet para uma volta pelo bairro. Na hora do almoço, um motoboy entrega a refeição para dar tempo de você cortar o cabelo antes de voltar ao escritório, serviço também agendado pelo aplicativo. À noite, uma aula de inglês contratada pelo aplicativo e, depois, um jantar entregue em casa, onde as compras do supermercado estão à sua espera.
Estamos em 2019, e os apps estão por toda parte. Cerca de 125 milhões de brasileiros têm acesso à internet e há 220 milhões de smartphones em circulação no país. Se a onipresença das plataformas digitais na rotina de uma parcela cada vez mais relevante da população não é novidade, seu poderio econômico nunca foi tão significativo, e tão disseminado. Em 2018, só nas regiões metropolitanas, 18 milhões de brasileiros usaram regularmente aplicativos para ganhar algum dinheiro, segundo levantamento inédito realizado pelo instituto de pesquisas Locomotiva para EXAME.
No país, quase 45 milhões de pessoas já usaram aplicativos para obter renda. A conta inclui os 5,5 milhões cadastrados como prestadores de serviços em plataformas como Uber, 99, iFood e Rappi, mas também os milhões de pessoas que usam as redes sociais Facebook e Instagram ou o aplicativo de mensagens WhatsApp para a prestação de serviços.
Os aplicativos são, claro, um fenômeno global. No mundo, apps de transporte e de entrega de comida deverão passar dos 130 bilhões de dólares em faturamento em 2023, segundo estimativa do site de estatísticas Statista. Em ambos, a China é a líder do mercado, seguida pela União Europeia e pelos Estados Unidos. No Brasil, as ferramentas de delivery de comida cresceram 20% em número de usuários no último ano, acima da média global, de 12%.
O Brasil virou um dos terrenos mais férteis para a popularização dos apps por uma conjunção de fatores econômicos e sociais. A recessão que assola o país desde 2014 e a taxa de desemprego elevada levaram as pessoas a procurar serviços mais baratos e também a buscar novas formas de trabalho. Soma-se a esse cenário a ascensão das classes C, D e E, que passaram a consumir pela internet e, sobretudo, pelo celular. De 2010 a 2018, a penetração de smartphones na classe C passou de 42% para 77%; entre as classes D e E, de 13% para 49%.
É uma enorme fatia da população que vê no aparelho uma oportunidade de melhorar de vida, seja dirigindo um Uber, seja oferecendo doces e salgados pela internet. As operadoras, por sua vez, lançaram planos de internet cada vez mais baratos para fisgar esses consumidores/empreendedores — já é possível ter acesso à rede a 2 reais por dia. “É uma nova forma de conexão entre oferta e demanda, feita por meio dos aplicativos e com internautas nas duas pontas”, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
A economia dos aplicativos começou a tomar corpo no Brasil em 2014. Meses antes da Copa do Mundo, chegou ao país a americana Uber, que prometia viagens baratas com motoristas não profissionais. Hoje, cinco anos depois, usar apps de transporte é um ato rotineiro para mais de 20 milhões de brasileiros. O Brasil é o segundo maior mercado da Uber no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, com cerca de 600.000 motoristas. A empresa adotou inovações para o país, como o pagamento em dinheiro, que atinge um público sem conta em banco.
A democratização do serviço é um fenômeno global: dados mundiais da pesquisa da Statista, referentes a 2018, mostram que, entre os usuários de aplicativos de transporte, cerca de 60% têm renda média e baixa. “Onde mais crescemos é na periferia dos grandes centros, regiões em que fica mais evidente a falta de transporte adequado”, diz Saulo Passos, diretor de comunicação da Uber para a América Latina. A Uber e sua concorrente, a 99, acabaram sofrendo as dores dos pioneiros ao mostrar as oportunidades de uma economia voltada para os apps. “Os motoristas mal estavam acostumados a usar o celular, e muito menos para trabalhar”, diz Davi Miyake, diretor de operações da 99.
Com os apps de transporte, os brasileiros passaram a conhecer uma nova organização econômica, que se vale de avaliações dos usuários para construir uma base de confiança entre quem oferece e quem usa o serviço. É uma organização que mostrou que o futuro poderia se inspirar nos ideais libertários para tirar o governo e o poder público de cena. A lógica vai sendo, pouco a pouco, replicada para dezenas de negócios, e deve continuar ganhando força. “Antes os usuários dependiam da regulação do governo para saber se um serviço era bom ou não”, afirma o professor Sunil Johal, especialista em regulação e políticas públicas para economia compartilhada na Universidade de Toronto, no Canadá.
Para Eduardo Baer, presidente da startup DogHero, esse é o grande valor da economia compartilhada. “Nas grandes cidades, as pessoas se tornam anônimas e preferem confiar em grandes empresas. Mas, com a informação que esses aplicativos criam, voltamos a saber quem presta um bom serviço”, afirma. A DogHero oferece serviços de hospedagem e caminhada de cachorros. Criada em 2014, tem 18.500 anfitriões e passeadores cadastrados para servir 800.000 cachorros, em 750 cidades da Argentina, do Brasil e do México. Para que um passeador ou um anfitrião entrem na plataforma, devem passar por treinamentos online que mostram, por exemplo, sintomas que indicam que o pet deve ser levado ao veterinário.
A revolução dos apps não deve parar em seu labrador de estimação. “O capitalismo de multidão só tende a crescer nos próximos 20 anos. Devemos ver mais progressos em áreas como saúde e até energia, com as pessoas podendo comprar eletricidade de seus vizinhos”, diz Arun Sundararajan, professor na Universidade de Nova York e autor do livro Economia Compartilhada: o Fim do Emprego e a Ascensão do Capitalismo de Multidão.
As dez maiores plataformas de produtos e serviços em atuação no Brasil já passaram faz tempo da fase de startup que cabe em meia dúzia de mesas de um coworking. O ano de 2019, aliás, tem sido visto como um marco da maturidade dessas companhias mundo afora. A empresa americana de mobilidade urbana Lyft abriu o capital no mês passado e está avaliada em cerca de 24 bilhões de dólares. A Uber planeja sua própria abertura, projetando um valor de mercado de 120 bilhões de dólares.
Do outro lado do mundo, um aplicativo como o Meituan Dianping, da China, realiza 178 serviços por segundo, como pedidos de comida, compra de ingressos e reserva em hotéis. Considerada a “Amazon dos serviços”, a chinesa acumula 400 milhões de usuários pagantes em 2018 e um valor de mercado de 297 bilhões de dólares (mais da metade do valor do Facebook). O interesse dos investidores se repete em aplicativos brasileiros. Em janeiro do ano passado, a 99 foi adquirida pelo gigante chinês de mobilidade Didi Chuxing numa transação estimada em 1 bilhão de dólares. Em novembro do mesmo ano, uma rodada de 500 milhões de dólares recebida pelo app de entregas iFood foi o maior investimento sem aquisição já visto na América Latina.
Aplicativos que ligam produtos e serviços dominaram seis dos dez maiores investimentos na América Latina de 2012 a 2018. O aumento de liquidez permite que os aplicativos consigam investir em sua expansão e deixem a busca do lucro para o futuro — bem para o futuro. “Só pensaremos em oportunidades futuras de lucro depois de satisfazer consumidores, restaurantes e entregadores”, diz Jason Droege, diretor da Uber Everything, divisão de novos negócios da Uber.
O mercado de aplicativos coloca frente a frente empresas brasileiras e estrangeiras. Entre os brasileiros, nenhuma companhia tem números tão impressionantes quanto a Movile, que já conta com 2.300 funcionários. A empresa foi criada na virada do milênio, com mensagens de texto. Seu ecossistema de aplicativos já atingiu mais de 350 milhões de usuários. Com taxa de crescimento anual de 60%, planeja chegar a 1 bilhão de usuários até o fim de 2020. Uma de suas maiores apostas para atingir a meta é o iFood, pioneiro na transformação de pedidos telefônicos em pedidos digitais.
Criado em 2011, o app foi comprado pela Movile em 2014. O iFood faz 17,4 milhões de entregas mensais para 12,6 milhões de consumidores. Eles se conectam a 66.000 restaurantes em mais de 500 cidades brasileiras por meio de 120.000 entregadores. O iFood cresce no pique de 3 dígitos por ano. Sua maior concorrente é a colombiana Rappi, que tem 60.000 entregadores no mundo e cresce cerca de 30% ao mês no Brasil. “Esse mercado ainda pode crescer muitas vezes e temos o potencial de estar entre as maiores empresas de delivery do mundo”, diz Carlos Moyses, presidente do iFood. A empresa está investindo até na entrega por drone, a ser implementada quando conversas regulatórias avançarem. “O computador vai decidir sua próxima refeição”, diz Fabrício Bloisi, fundador da Movile (leia entrevista abaixo).
Talvez nenhum dos grandes aplicativos em atuação no país seja tão brasileiro quanto o GetNinjas, ferramenta que conecta prestadores de serviços a potenciais clientes. São mais de 200 tipos de serviço de mais de 500.000 prestadores — que incluem advogados, designers, churrasqueiros, chaveiros, encanadores, e por aí vai. O aplicativo nasceu no Brasil em 2011, para formalizar os bicos, e hoje opera também no México. O fundador, o engenheiro Eduardo L’Hotellier, criou o GetNinjas ao ter problemas para achar um pintor no mar de classificados da internet. Na plataforma, os próprios prestadores de serviços estabelecem um preço e negociam diretamente com o cliente, e o GetNinjas cobra uma taxa que vai de 1 a 8 reais. Em 2018, os serviços contratados pela plataforma movimentaram 300 milhões de reais.
Parte desse montante veio do casal Tatiana Dias Moura e Felipe Rodrigues de Oliveira, que entraram no GetNinjas pouco depois de abrir seu negócio de conserto de celulares, a FixOnline, em 2017. A empresa, que começou num quarto enquanto Oliveira estava desempregado, tem hoje 11 funcionários e fatura cerca de 110.000 reais por mês. O casal abriu uma loja física em Perdizes, em São Paulo, mas só 10% dos atendimentos vêm do balcão. “Ajudamos o profissional autônomo a se enxergar como realmente é: um microempreendedor”, diz L’Hotellier.
O estímulo ao empreendedorismo é um fator em comum entre as diversas grandes empresas de aplicativos do país. Os apps de entregas Uber Eats e Rappi, por exemplo, estão investindo em restaurantes que operam a portas fechadas e atendem apenas a pedidos por aplicativo. A ideia seduziu a empreendedora Matilde Arruda em outubro de 2018, quando ela ainda trabalhava com os pais em uma rede de temakerias. Com início em dezembro, os dois restaurantes do Sushi Plus em São Paulo atendem apenas pelo Uber Eats e recebem 16.000 pedidos por mês, com tíquete médio de 24 a 30 reais. Matilde diz ter investido cerca de 150.000 reais para iniciar o negócio, um terço do que gastaria montando um restaurante tradicional.
Estabelecimentos com histórico também resolveram investir em parcerias com aplicativos. A rede de empanadas La Guapa, comandada pelos empreendedores Benny Goldenberg e Paola Carosella, planeja para o meio do ano a abertura de uma cozinha exclusiva para o Rappi. Ela se juntará a cinco lojas de rua em São Paulo, com 90 funcionários e 85.000 empanadas vendidas por mês. Entregas em domicílio representam de 25% a 30% dos pedidos no La Guapa, proporção que deverá chegar a 50% com a nova unidade. “Hoje, damos prioridade aos clientes que estão no restaurante nos horários de pico e, às vezes, tenho de desligar o aplicativo. Isso não vai mais acontecer”, afirma Goldenberg.
A plataforma de comércio eletrônico Mercado Livre tem 296.000 vendedores que utilizam o site como principal fonte de renda, segundo a empresa. “Criamos ferramentas para que o pequeno varejista brigue de igual para igual com as lojas oficiais”, diz Julia Rueff, diretora de marketplace do Mercado Livre.
A economia puxada por aplicativos serve de ponto de partida para um ciclo virtuoso que acaba por transformar diversos setores. Um exemplo está no transporte. O país gasta o equivalente a 12,7% do produto interno bruto na cadeia de armazenamento e transporte de itens. A startup Loggi, criada em 2013, mira esse gargalo. O aplicativo conecta empresas donas de cargas a uma frota de 17 000 motofretistas e motoristas de vans e cresceu 275% em um ano, para 3 milhões de entregas em fevereiro. A expectativa é fazer 5 milhões de entregas por dia até 2023. A vertical mais recente da Loggi é a de entregas para restaurantes e supermercados. “O futuro da logística está na integração entre os varejos físicos e online”, diz o fundador, o francês Fabien Mendez.
Assim como Mendez está ajudando a mudar o mercado de entregas, outros aplicativos atuam para transformar seus setores para além dos olhos do consumidor. É uma revolução silenciosa. O crescimento do site de hospedagens Airbnb, por exemplo, não mudou apenas o mercado de hotelaria, mas levou à criação de novas companhias. Elas realizam check-in, checkout e gerenciamento de chaves e podem ficar responsáveis por trocar as toalhas e as roupas de cama para os hóspedes.
Um exemplo é a Luckey Homes, empresa francesa adquirida pela plataforma em dezembro por valor não revelado. Criada em 2015, a startup gerencia propriedades do Airbnb em mais de 20 cidades francesas. Segundo Leo Tristão, diretor-geral do Airbnb no Brasil, o próximo passo é mudar a forma como os empreendimentos são construídos. “As incorporadoras já estão desenvolvendo imóveis pensados em compartilhamento”, afirma Tristão.
O iFood criou há dois anos o iFood Shop, marketplace que une 150 fornecedores de 15.000 ingredientes e embalagens a 55.000 restaurantes cadastrados. Pelo volume agregado de compras, o uso do iFood Shop gera uma economia de 20% aos estabelecimentos. “Queremos revolucionar o mercado de alimentação, e isso não se restringe ao delivery para os consumidores”, diz o presidente Carlos Moyses.
As locadoras de veículos, que inicialmente viam Uber e 99 como inimigos, descobriram novas oportunidades. Os aplicativos trouxeram um novo perfil de cliente: os próprios motoristas. “Quando esse serviço chegou ao Brasil, havia muitos motoristas sem dinheiro para financiar um carro próprio. Foi aí que ganhamos”, diz Jamyl Jarrus Junior, diretor executivo da locadora Movida. Os motoristas de aplicativo representam cerca de 10% dos carros alugados na empresa. O setor de locação movimentou, em 2018, quase 14 bilhões de reais no Brasil. A Movida criou recentemente um cartão para que o motorista sem capital inicial possa pagar a locação depois de usar o carro, com o rendimento das próprias corridas, enquanto a mineira Localiza Hertz, líder do setor, criou um aplicativo exclusivamente para os motoristas, facilitando a locação dos carros da rede.
Na Grande São Paulo, a Associação de Motoristas de Aplicativos de São Paulo (Amasp) estima que 60% da frota que serve os aplicativos seja alugada, sendo 85% vindos de locadoras. “Os outros 15% são, principalmente, motoristas que viram empresários e conseguem comprar uma frota própria e alugar para colegas”, diz Eduardo Lima de Souza, presidente da Amasp.
Uma das grandes perguntas em aberto é se estamos vivendo uma bolha de euforia que, no limite, vai estourar, deixando prestadores de serviços e consumidores na mão. O risco existe, e é mensurável. Há no planeta mais de 1 trilhão de dólares aplicados em negócios de altíssimo risco, que têm em comum o fato de não gerar um centavo de lucro. É o que acontece com quase todas as empresas citadas nesta reportagem, que dependem de aportes para continuar investindo em marketing e em promoções.
Categorias mais organizadas, como a dos taxistas, alertam para o risco de, uma vez monopolistas, essas empresas aumentarem os preços. Também há uma discussão crescente sobre as responsabilidades trabalhistas dos apps. Os empreendedores têm, até aqui, um histórico de bons resultados para apresentar. Criada em 2015, por exemplo, a Singu oferece agendamento com 3.000 manicures, pedicures, massagistas e esteticistas, um mercado eminentemente informal.
Os salões de beleza não são obrigados a contratar profissionais pelo regime em carteira desde 2016, com a Lei do Salão Parceiro. “O trabalhador brasileiro já percebeu que ser empregado pela CLT não vale a pena, por causa do alto volume de impostos. Ele prefere atuar como autônomo em plataformas como Uber, Singu e Rappi”, afirma Tallis Gomes, fundador da Singu. Para ele, a vantagem da plataforma é ajudar o profissional a ganhar mais, já que fica com 35% da receita, enquanto há salões que embolsam até 70%.
Atuar como autônomo também tem suas desvantagens, evidentemente. De acordo com uma pesquisa que Renan Kalil, pesquisador da Universidade de São Paulo, realizou com motoristas da Uber na capital paulista, 53% deles trabalham mais de 10 horas por dia e 68% dirigem mais de cinco dias na semana. O objetivo é gerar renda para pagar suas despesas imediatas, ou seja, conseguir um mínimo para sobreviver.
Nesse sentido, já que na maioria das vezes não se trata de um trabalho para obtenção de renda extra, será que essas pessoas podem ser consideradas funcionárias da Uber? A companhia, como as demais de mobilidade, diz que não. Contudo, autoridades ao redor do mundo têm visto o fenômeno de forma distinta. O Reino Unido decidiu que os motoristas da Uber compõem uma categoria intermediária entre empregado e autônomo. Em janeiro, a Uber e sua concorrente Cabify anunciaram o fim das operações em Barcelona, na Espanha, pelo que consideram regulações excessivas. Nos Estados Unidos, a Uber processou neste ano a prefeitura de Nova York por causa de regulações. Em 2017, a empresa chegou a ser proibida de operar em Londres.
Assim como ocorre no exterior, o Brasil também se vê em meio a esse debate. Auditores fiscais do trabalho autuaram, em meados do ano passado, empresas como a Rappido, que pertence à Movile. No fim de 2017, a Loggi também foi autuada. Recentemente, o Ministério Público do Trabalho divulgou um estudo apontando a possibilidade de reconhecimento de vínculo entre trabalhadores e plataformas, criando uma nova categoria para classificar esses profissionais que atendem aos aplicativos.
Se há um ponto positivo nessa nova relação de trabalho é o fato de que motoristas e outros prestadores de serviços têm a chance de contribuir para a Previdência — seja pagando por conta própria, seja tornando-se um microempreendedor individual (MEI). Em 2018, o setor de entrega rápida (motoboys) ganhou 44.000 novos cadastros de pessoa jurídica, um crescimento de 148% em comparação com 2017. Isso é reflexo justamente do avanço dos aplicativos que passaram a exigir que os profissionais fossem formalizados.
Também é possível notar o crescimento expressivo em atividades de transporte de passageiros, como taxistas e motoristas de aplicativos como Uber e 99. Foram 18.000 novos taxistas que se tornaram microempreendedores individuais, representando um aumento de 42% em relação a 2017, de acordo com dados exclusivos da companhia MEI Fácil.
Segundo o Instituto Locomotiva, sete entre dez trabalhadores que geram alguma renda com aplicativo nas regiões metropolitanas não têm emprego com carteira assinada, e 67% são das classes C, D e E (enquanto só 7% são da classe A). “Por um lado, os governos não devem inibir plataformas que empoderam as pessoas. Por outro lado, plataformas como Uber e Lyft não permitem que seus motoristas definam preços nem tomem decisões de marketing. É nessa fatia que os governos deveriam atuar para evitar um aumento das desigualdades”, diz Sundararajan, da Universidade de Nova York. É uma realidade nova, que colocará empresas, prestadores de serviços, consumidores e governos diante de questões novas.
Como mostra a próxima reportagem, a realidade insiste em se adiantar às regulações. Em muito pouco tempo, separar a economia dos aplicativos do restante da sociedade será simplesmente impossível. Para um país com 13 milhões de desempregados e com uma economia que insiste em não decolar, uma coisa é certa: quanto mais inovação, melhor.
A Movile, um ecossistema de aplicativos, planeja alcançar 1 bilhão de usuários até 2020. A inspiração vem dos apps chineses | Mariana Fonseca
A Movile é a maior mostra de que o mercado brasileiro de aplicativos deixou há tempos a fase de startups. Com 2.300 funcionários, controla uma miríade de apps que têm mais de 350 milhões de usuários. Entre eles estão o serviço de entrega iFood e a plataforma de conteúdo infantil PlayKids.
Com uma taxa de crescimento anual de 60%, a Movile planeja chegar a 1 bilhão de usuários até o fim de 2020. Investimento não há de faltar: a empresa já recebeu 400 milhões de dólares de investidores como o bilionário Jorge Paulo Lemann e o fundo sul-africano Naspers. Fabrício Bloisi, cofundador e presidente da Movile, fala sobre a evolução dos aplicativos no Brasil e em países como a China e sobre como eles vão mudar o mercado de trabalho e as relações sociais.
Como a Movile decide em quais ideias apostar?
Nos anos 2000, o mercado de apps era algo muito diferente. Foi uma das 100 apostas que fizemos e acabou dando certo, assim como o delivery de comida e os conteúdos infantis nos anos seguintes. Para isso, estamos sempre buscando inspiração e aprendendo com os melhores do mundo para estar entre eles, nos Estados Unidos, na China, na Europa e na África.
Mas não basta copiar: também é preciso desenvolver uma cultura de inovação. O Brasil é consistentemente ruim nisso e estamos mudando esse panorama, testando e errando barato e rápido. As empresas de economia compartilhada que fazem sucesso hoje, como 99 e Uber, são apenas uma mostra do que existirá nos próximos cinco ou dez anos, mesmo com tais negócios captando ainda mais clientes e mais investimento. Nossos próximos dez anos serão muito melhores do que os últimos.
Como se adaptar a essa nova realidade de trabalho, com automação e flexibilização?
A tecnologia, incluindo os aplicativos, não acabará com os empregos. Mas o trabalho vai mudar. Alguns milhões de trabalhos serão extintos, da mesma forma que nos últimos séculos as revoluções industriais cortaram vagas na agricultura. Mas o número total de vagas poderá duplicar ou triplicar com ferramentas que permitirão uma vida mais confortável. Não podemos deixar de fazer algo porque não estava previsto. Se formos o último país a adotar inovação e tecnologia por causa de leis antigas, outro país poderá aproveitar. Estaríamos fadados a repetir a história que vemos desde a invenção das indústrias.
Como será a evolução dos aplicativos de produtos e serviços no Brasil e na Movile?
Essa onda ainda nem começou. Temos personagens de peso, mas há diversos setores que ainda não foram transformados, do atendimento médico à assistência automotiva. Para nós, a China é um benchmark superimportante. Adotamos o modelo de superaplicativo, visto em gigantes como Alibaba e Tencent, criando um ecossistema de empresas. Em tecnologia, nossa próxima aposta está na inteligência artificial. Imagino empresas que não apenas existam no celular mas também que consigam prever o que você quer, onde e por qual preço. O computador vai decidir sua próxima refeição.