Revista Exame

Trump tem sido very, very populista nos seis primeiros meses

Os primeiros seis meses de Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos espalharam o medo de que a democracia americana esteja em perigo

DONALD TRUMP: nas últimas 24h os últimos dois concorrentes republicanos do empresário desistiram da corrida presidencial,  / Aaron P. Bernstein/REUTERS/ (Aaron P. Bernstein/REUTERS/Reuters)

DONALD TRUMP: nas últimas 24h os últimos dois concorrentes republicanos do empresário desistiram da corrida presidencial, / Aaron P. Bernstein/REUTERS/ (Aaron P. Bernstein/REUTERS/Reuters)

ES

Eduardo Salgado

Publicado em 26 de julho de 2017 às 18h00.

Última atualização em 30 de agosto de 2017 às 16h57.

Fort Myers, Flórida — Sentado à mesa no restaurante da rede Jason’s Deli, a 5 minutos a pé da sede do Partido Republicano no condado Lee, em Fort Myers, no sudoeste da Flórida, o advogado Steven E. Martin relembra quando decidiu apoiar Donald Trump. Era 16 de junho de 2015, uma terça-feira, na hora do almoço. Martin estava comendo com sua mulher, Eviana, naquele mesmo restaurante quando Trump apareceu na tela do televisor anunciando que concorreria como pré-candidato republicano à Presidência. “Na hora eu disse: ‘Ele sabe como ganhar’”, afirma Martin.

A contadora aposentada Roz Lesser também lembra bem daquele momento. Foi quando ela passou a usar uma camisa com o nome de Trump estampado. “Decidi apoiá-lo porque ele falava ao americano comum, não para a classe alta. E dizia exatamente o que queríamos ouvir”, diz Roz. Não demorou para que Roz começasse um movimento de apoio popular a Trump nas primárias do Partido Republicano.

Como a carga de trabalho para mobilizar voluntários se tornou enorme, Martin entrou em cena para dividir a coordenação com Roz. Dos 100 condados mais populosos dos Estados Unidos, Lee foi onde Trump levou a maior fatia de votos — quase 60% do total. Martin e Roz não escondem a satisfação de ter apostado todas as fichas ainda cedo no candidato que acabou sendo o vencedor, mas ressentem-se do que chamam de tratamento injusto. Ganharam, mas não param de ser atacados. Sentem-se retratados como imbecis e caipiras. São acusados de ter caído na conversa de um populista.

A vitória de Trump e seus primeiros meses à frente do governo trouxeram à tona perguntas e questionamentos aos quais uma das democracias mais tradicionais do mundo não estava acostumada. Um populista no Palácio de los Lopes, em Assunção, ou no Palácio de Miraflores, em Caracas, é algo indesejável, mas dentro do esperado. Quando acontece de um político desse tipo chegar ao poder na América Latina, na Ásia ou na África, a população local costuma sentir, mais cedo ou mais tarde, as consequências em termos de diminuição da liberdade de imprensa ou de outros direitos democráticos, mas os efeitos são circunscritos ao país.

A presença de um populista na Casa Branca coloca a questão numa dimensão global. Nos últimos meses cresceu o medo de que a democracia americana esteja em perigo. Muitos passaram a se perguntar se Trump, apenas por ser do jeito que é, já não estaria enfraquecendo a ideia da democracia em várias partes do mundo. A derrota de Marine Le Pen na corrida presidencial francesa neste ano amenizou, mas não dissipou totalmente, o medo. Afinal, populistas europeus continuam firmes e fortes.

Como era de esperar, os trumpsters, o eleitorado mais fiel ao presidente, sentem-se ofendidos com essas questões. Trump, para eles, é a prova maior de quanto a democracia americana é vibrante. Qualquer um pode se candidatar e vencer, mesmo uma figura tão controversa. “O que é um populista?”, diz Martin. “Não é como todos chamam aquele político pelo qual não nutrem a menor simpatia?”

A verdade é que os cientistas políticos ainda batem cabeça para chegar a uma definição sobre o termo. Faça a pergunta de Martin a dez cientistas políticos e a possibilidade de você ouvir dez respostas diferentes não é baixa. É assim porque não existe uma teoria com T maiúsculo sobre o populismo. Todos os políticos sonham em despertar um entusiasmo fora do comum no maior número de pessoas possível.

A maioria faz promessas de grandes mudanças nas campanhas eleitorais, época em que também é comum ouvir ataques às elites. Todos os que podem tentam uma conexão direta com o eleitorado, via rádio, TV e redes sociais. Não é incomum que depois se autoproclamem a voz do povo. E todos os que têm carisma não se inibem em esbanjá-lo na tentativa de conquistar mais votos. Será que os trumpsters não estão certos em acusar a imprensa de perseguição por chamar apenas tipos como Trump e Le Pen de populistas?

Assim como na vida, na política a comparação de pessoas com tipos distintos de conduta, às vezes, ajuda a enxergar melhor as diferenças. Na primeira campanha à Presidência, Barack Obama era claramente um candidato anti-establishment (Hillary Clinton era a favorita dos mandachuvas democratas), crítico das elites, defensor de mudanças (“Yes, we can”) e extremamente carismático. E, sim, Obama usava as redes sociais para falar diretamente com as massas.

Numa coisa os cientistas políticos parecem concordar. Todas essas características são necessárias, mas não suficientes, para chamar alguém de populista. “Obama nunca foi contra a pluralidade. Nunca acusou seus oponentes de políticos ilegítimos”, diz Larry Diamond, professor de ciência política na Universidade Stanford, membro do centro de estudos conservador Hoover Institution e uma das maiores autoridades no estudo da democracia. Trump, por sua vez, não tem economizado em suas manifestações antiplurais (contra a imprensa, contra juízes, contra líderes europeus etc.) nem no desrespeito a seus opositores políticos.

Já na largada, no discurso de posse, Trump disparou que aquela não era uma troca de presidentes normal. Ele estava devolvendo o poder de Washington ao povo. É nessa hora que Trump descola da tradição americana e começa a se parecer mais com outras figuras. No ano passado, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, dirigindo-se aos críticos num discurso, perguntou, de forma retórica: “Nós somos o povo. Quem são vocês?” Quando foram eleitos deputados em 2013, os grillini — como são chamados os apoiadores do populista italiano Beppe Grillo — declararam: “A opinião pública está chegando ao Parlamento”.

Para os populistas, os oponentes são todos os representantes de uma elite podre e corrupta. Quem entende “o povo” são eles (ou elas) — ninguém mais. Para além do discurso, há outro ponto em comum: os populistas costumam surgir quando a democracia está falhando em resolver os problemas da maioria. Isso ficou claro na ascensão de Trump, no referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia no ano passado e na quantidade de votos que candidatos populistas estão recebendo em várias partes da Europa.

“Os partidos tradicionais demoraram a dar atenção e respostas adequadas às demandas de uma parte da população que se vê como os perdedores da globalização. As pessoas sofrem com a desigualdade social e, por várias questões, temem a imigração”, diz Kenneth M. Roberts, professor de ciência política na Universidade Cornell. O problema é que os populistas podem ser grandes ameaças às instituições democráticas, como mostram os exemplos de Hugo Chávez e Erdogan.

De volta à base

Pergunte a Jonathan Martin, presidente do diretório do Partido Republicano no condado Lee, na Flórida, se o presidente Trump, assim como outros populistas do passado e do presente, são um desafio à democracia americana e ouvirá uma resposta segura: “O presidente Trump não gostou da decisão dos juízes que proibiram o decreto barrando a entrada de cidadãos de seis países muçulmanos, fez críticas a eles, mas obedeceu à decisão judicial. Qual é o problema? Por que ele é uma ameaça às instituições democráticas?” Steven Levitsky, professor de ciência política na Universidade Harvard, concorda que, até agora, os rompantes autoritários de Trump ficaram, na maioria dos casos, no plano das palavras. Donald Trump não é Hugo Chávez, e os Estados Unidos não são a Venezuela. “Mas suas declarações já causaram estragos”, diz Levitsky.

Antes e depois de sua eleição, Trump colocou em dúvida a idoneidade do processo eleitoral — sem apresentar nenhuma evidência. O resultado disso é que a confiança da população no sistema eleitoral tem caído. E Levitsky não arrisca prever o que Trump ainda poderá fazer. O certo é que a presença de Trump na Casa Branca torna mais fácil a vida de governos com viés autoritário. Rodrigo Duterte, o polêmico presidente filipino que incentiva execuções sumárias de marginais, já foi convidado para uma visita a Washington.

Com um presidente que chama a imprensa de inimiga do povo, os Estados Unidos não têm moral alguma para defender a liberdade de expressão mundo afora. No mundo pós-Guerra Fria, qualquer um que tomasse o poder de uma forma não democrática na América Latina, na África ou na Ásia sabia que sofreria a condenação dos Estados Unidos. Pela primeira vez desde o primeiro mandato de Ronald Reagan, isso mudou.

Enquanto os populistas ganham eleições ou fatias maiores do eleitorado nos Estados Unidos e na Europa, a América Latina, pelo menos os maiores países da região, vive uma fase diferente. No Brasil, o deputado Jair Bolsonaro aparece numa ascendente, com cerca de 16% das intenções de voto, para as eleições presidenciais do ano que vem, mas todas as apostas — por enquanto — são de que não consiga crescer o bastante para chegar ao Planalto.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é outro acusado por seus opositores de ter traços populistas, mas a verdade é que nunca vestiu o figurino completo. “O Lula adotou uma retórica meio humorística que já traz embutido um deságio para suas bravatas, devendo-se também lembrar que suas diatribes contra as elites e o empresariado nunca passaram de bravatas, como mostra sua relação com a Odebrecht”, diz Bolívar Lamounier, sócio-diretor da consultoria Augurium e autor de diversos livros sobre a realidade política do Brasil.

Num país que conta no currículo com políticos como Jânio Quadros, não se pode dizer que os populistas nunca serão bem-vindos. Se fosse necessário apontar um momento em que fariam mais estrago, talvez nenhum se compare com o atual, quando ainda estamos no meio da pior crise econômica de nossa história e da limpeza ética iniciada pela Operação Lava-Jato.

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