Marcelo Campos, auditor fiscal do trabalho: coordenou o grupo móvel de fiscalização de trabalho análogo ao escravo e, em 2011, assumiu a equipe mineira de combate à escravidão (Pedro Silveira / EXAME)
Da Redação
Publicado em 8 de junho de 2015 às 05h56.
São Paulo - Em fevereiro, uma equipe de fiscais do Ministério do Trabalho identificou que a mineradora Vale contava entre os fornecedores com uma empresa que mantinha os funcionários num regime de trabalho considerado análogo à escravidão. O caso se deu em Itabirito, no interior de Minas Gerais, onde a Vale extrai minério de ferro. Os “escravos” eram 309 motoristas contratados pela transportadora Ouro Verde.
A fiscalização constatou que eles cumpriam jornadas de trabalho mais longas do que o permitido por lei. Os banheiros dos vestiários do pessoal estavam imundos e entupidos. Não há dúvida: podia não ser o emprego dos sonhos. Mas é razoável compará-lo a um trabalho escravo? Os motoristas ganham o piso salarial, têm plano de saúde e transporte para ir e voltar do trabalho — as horas extras, embora excessivas, também são pagas.
O auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, de 53 anos, líder da fiscalização em Itabirito, não tem dúvida das semelhanças com a escravidão. “As condições eram degradantes e feriam a dignidade dos trabalhadores”, diz. Procuradas pela reportagem, em nota a Vale negou irregularidades e a Ouro Verde alega que fez os ajustes exigidos. Ambas afirmam ainda que houve uma manifestação no dia anterior à fiscalização e que o local de trabalho foi degradado por funcionários.
Ações de fiscalização, como a ocorrida na Vale e em seus fornecedores, têm construído a fama de Campos. Ele é uma das principais autoridades do país em casos de trabalho análogo à escravidão. Sua carreira no Ministério do Trabalho, onde ingressou em 1995 depois de ser aprovado em concurso público, foi toda com base nessas investigações.
Formado em direito e história, costuma dar palestras nas quais se emociona ao fazer relatos de trabalhadores resgatados. Sua justificativa tem muito a ver com as premissas da Justiça do Trabalho no Brasil, que enxerga no trabalhador uma criatura indefesa. “No processo capitalista de produção, o direito entende que o trabalhador está em situação de fragilidade e deve ser socorrido”, diz Campos.
Mineiro de Moeda, cidadezinha de 5 000 habitantes localizada a 60 quilômetros de Belo Horizonte, ele não é casado nem tem filhos. De 2003 a 2010, coordenou um grupo de fiscalização que fazia operações de combate ao trabalho escravo em todo o país. Nos últimos quatro anos, passou a atuar só em território mineiro.
No ano passado, Minas Gerais foi o estado em que houve o maior número de resgates, como são chamadas as operações que “libertam” quem é considerado submetido à escravidão. No total, 380 trabalhadores foram resgatados em Minas. Além da Vale, a equipe de Campos já fez denúncias de empresas como a mineradora Anglo American, a distribuidora de energia Cemig e a construtora MRV.
Temido pelos empresários, ele ganhou entre eles a alcunha de Marcelo Perverso. A fama não o incomoda — muito pelo contrário. “Ser temido e respeitado é positivo e importante”, diz Campos. “O medo tem poder coercitivo.”
Apesar de temido, Campos tem sido bastante questionado. A principal reclamação: embora graves em alguns casos, boa parte das irregularidades identificadas pelos fiscais não seria suficiente para aplicar um rótulo pesado como o de empresa conivente com o trabalho escravo.
“Quando submetido a uma situação semelhante à escravidão, a pessoa perde sua dignidade e é reduzida a coisa”, diz o advogado Daniel Dias, da área trabalhista do escritório Lobo & de Rizzo — a pedido de EXAME, ele examinou quatro relatórios produzidos por Campos e sua equipe. “Muitas das conclusões a que eles chegam são exageradas.”
O processo iniciado pelos fiscais comandados por Campos contra a Vale e a Ouro Verde pode ter duas consequências para as empresas. Com base no relatório, elas estão sendo investigadas por promotores do trabalho — o que pode resultar na obrigação de pagar indenização por danos morais e na assinatura de um termo de ajuste de conduta.
Além disso, o Ministério Público pode encaminhar à Justiça uma ação pelo crime de manter trabalhadores em regime de escravidão. A pena pode chegar a oito anos de prisão para os sócios ou gestores que forem considerados culpados no final do processo.
A legislação trabalhista brasileira é uma das mais rigorosas do mundo. Em princípio, nada do que fiscais como Campos fazem está fora da lei. O Código Penal lista quatro situações que podem enquadrar uma empresa por manter trabalho escravo.
Em duas delas, há pouca controvérsia: quando os empregados são impedidos de sair do local de trabalho — como uma fazenda ou uma oficina — e quando são mantidos cativos por dívidas contraídas com os empregadores. Os outros dois casos, porém, são polêmicos. Segundo a lei, podem ser considerados vítimas de um regime análogo à escravidão os empregados que têm frequentemente jornadas exaustivas ou que trabalham em ambiente insalubre. É aí que os conceitos ficam confusos.
“Temos 35 normas do trabalho, reunindo milhares de regras”, diz Nelson Mannrich, professor de direito do trabalho na Universidade de São Paulo. “A insegurança é tamanha que qualquer empresa poderá ser acusada de escravidão por não sinalizar o ambiente ou oferecer menos extintores de incêndio do que o exigido.”
É nessa barafunda que as empresas se complicam. A concessionária de energia Cemig foi acusada há dois anos de manter trabalho escravo em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Na época, os fiscais consideraram que 180 funcionários de uma empresa terceirizada de manutenção, a CET Engenharia, trabalhavam e estavam alojados em condições degradantes.
Algumas das irregularidades: a empresa não fornecia 250 mililitros de água por funcionário a cada hora de trabalho, como manda a lei. Nos alojamentos, havia camas duplas, beliches sem proteção lateral ou com menos de 1,1 metro de distância do teto, conforme prescrito pelas normas. A Cemig recorreu e, em nota, afirma aguardar uma decisão sobre o caso.
A construtora Modelo, prestadora de serviços para a Anglo American no município mineiro de Conceição do Mato Dentro, foi enquadrada em 2013 porque 19 dos 142 trabalhadores excediam com frequência o limite de 10 horas de trabalho por dia, algo que é costumeiro nos escritórios de grandes empresas.
Na defesa, a Modelo argumenta que os funcionários não foram obrigados a trabalhar além do estipulado em lei — eles aceitaram livremente. Afirma ainda que as atividades de alguns que fizeram jornadas excessivas não eram contínuas. Exemplo: motoristas que não ficam o dia todo dirigindo. Algumas dessas situações, de fato, podem fazer de um emprego um tormento — e seria ideal que não existissem. Mas daí a qualificá-los como escravidão vai uma longa distância.
Em outros países, o conceito de escravo é restrito a condições nas quais é mais fácil concluir que o trabalhador fica cativo. A lei americana considera escravidão apenas o trabalho feito sob coação ou ameaça. Na Alemanha, além dos trabalhos forçados, chama-se de escravidão a submissão de estrangeiros ou menores de 21 anos ao trabalho ilegal.
O maior problema: ser associado a trabalho escravo representa um baque na imagem de uma empresa. Clientes, consumidores e investidores podem se afastar. No Brasil, as penalidades incluem a inscrição da empresa na chamada “lista suja” do trabalho escravo, em que permanece por até dois anos — enquanto isso, fica impedida de receber empréstimos de bancos públicos.
Em dezembro, a divulgação da lista foi suspensa por uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal à Associação Brasileira de Incorporadoras. As empresas alegam que é preciso uma lei para autorizar a divulgação dos inscritos, que ainda não foi editada. A associação também sustenta que o nome dos empregadores é inscrito na lista sem um processo legal. Por enquanto, muitos se sentem reféns de fiscais como Marcelo Campos.