Obra da Gafisa: a construtora segue muito endividada (Alexandre Battibugli/Exame)
Denyse Godoy
Publicado em 28 de fevereiro de 2019 às 05h50.
Última atualização em 28 de fevereiro de 2019 às 05h50.
Desde que a recessão acabou, no final de 2016, as construtoras brasileiras estão ansiosas por retomar o crescimento. Tendo ainda vivas as boas lembranças do último ciclo de avanço, que durou de 2010 a 2013, e as lições da subsequente derrocada, elas seguem monitorando de perto os dados de emprego e crédito. Enquanto esperam um sinal contundente de melhora, reforçam o caixa, reduzem o endividamento, aproveitam os preços mais baixos para comprar terrenos, azeitam os processos de execução de obras.
Deixar a casa em ordem é essencial para poder embarcar na retomada. A não ser que se trate da Gafisa. A construtora era, até há muito pouco tempo, uma das maiores empresas do setor, com capital listado na bolsa de valores e uma referência no nicho de média e alta renda na Região Sudeste do país. Agora, passa por tantas reviravoltas na gestão que deixa investidores, fornecedores e clientes sem entender direito que rumo vai tomar. Com a corrida prestes a começar, a Gafisa segue nos boxes.
Construtora criada em 1954 no Rio de Janeiro com o nome de Gomes de Almeida Fernandes, a Gafisa vem há quatro anos tentando melhorar sua situação financeira. Com uma dívida de 1,9 bilhão de reais em 2015, tomou a decisão de encolher drasticamente as atividades para voltar a parar de pé. Desde então, diminuiu seus lançamentos de prédios em um terço, para 730 milhões de reais em 2018 (segundo dados preliminares), e separou as operações da Tenda, incorporadora voltada para a baixa renda adquirida em 2008.
Dois anos depois de ter sido separada da Gafisa, a Tenda vive seu melhor momento e é a favorita dos investidores no segmento de baixa renda. Os esforços da Gafisa, liderados pelo então presidente, Sandro Gamba, estavam começando a funcionar. Segundo estimativas do banco de investimento Itaú BBA, o prejuízo recorde de 486 milhões de reais registrado em 2017 deve ter diminuí-do para 166 milhões de reais em 2018, e o faturamento deve ter passado de 609 milhões de reais para 1,1 bilhão de reais no mesmo período, com diminuição de 27% da dívida, para 800 milhões de reais.
Mas as medidas não se refletiram numa melhora do valor de mercado da empresa, que em 2018 alcançou seu nível mais baixo, na casa dos 400 milhões de reais. Barata e com capital diluído, a Gafisa tornou-se um alvo óbvio para investidores que caçam pechinchas. Era o caso do coreano Mu Hak You, que tomou o poder na companhia e virou o negócio de cabeça para baixo no último trimestre de 2018. You fundou a GWI Asset Management em 1995 como uma factoring no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, conhecido pelo comércio popular. Empresários da comunidade coreana que vivem no bairro sempre formaram a maioria da clientela da gestora de investimentos.
You é descrito por quem o conhece de perto como inteligente e habilidoso para detectar boas oportunidades de ganhos, mas também agressivo ao limite. Segundo funcionários, ex-funcionários e fornecedores, o executivo já chegou a atirar um cinzeiro e um grampeador em interlocutores durante acessos de raiva. Sua estratégia de investimentos consiste em tomar dinheiro emprestado de instituições financeiras para ir comprando, na bolsa, ações de companhias que ele considera subvalorizadas e com grande potencial de crescimento, até o ponto em que se torna um sócio poderoso o suficiente para interferir nos negócios. Foi assim com a varejista Lojas Americanas em 2007, com o frigorífico Marfrig em 2011 e com a rede de livrarias Saraiva em 2016. Esse tipo de transação pode trazer perdas relevantes. You chega a pagar 150% da taxa interbancária, entre juros e taxas, para conseguir financiamento para as transações. Isso também faria You somar mais inimigos do que amigos nas empresas por onde passa.
O investidor coreano começou a comprar ações da Gafisa em outubro de 2017. Na época, a construtora estava cotada a apenas 10% de seu valor máximo de mercado, de 4,5 bilhões de reais, alcançado em novembro de 2010. Ao deter uma fatia de 40% do capital, um ano depois, You trocou toda a diretoria da empresa. Ele assumiu a chefia do conselho de administração, colocou Ana Recart, uma executiva de confiança da área jurídica da GWI, como presidente da empresa e passou a fazer uma devassa nas contas. Ordenou a suspensão dos pagamentos a fornecedores e determinou a revisão de contratos no valor de quase 80 milhões de reais nas áreas de marketing e tecnologia da informação, quando, segundo pessoas próximas, descobriu que alguns prestadores de serviço e vendedores de material de construção pagavam uma “comissão” a executivos da Gafisa. Demitiu aproximadamente 20 funcionários no início de 2019.
Com todas essas ações, You reduziu as despesas da Gafisa em 110 milhões de reais- no ano. Esse esforço não foi suficiente, porém, para aplacar as desconfianças do setor imobiliário e dos investidores em relação à gestão You. De um lado, a falta de conhecimento específico do gestor e de Recart no ramo da construção civil levantou dúvidas sobre a consistência da reorganização. De outro, a postura beligerante do coreano e de seus indicados — o filho, Thiago, também foi designado para o conselho de administração — era vista como uma ameaça à empresa, cujas atividades dependem de bons relacionamentos com bancos e fornecedores.
As compras levadas a cabo pela GWI foram puxando o preço das ações da Gafisa para cima. A gestora chegou a ter 50,2% da companhia em janeiro, mas essa tática passou a fazer água no momento em que a bolsa brasileira considerou o risco de mercado da operação elevado demais. Em janeiro, a B3 aumentou a exigência de garantias da GWI de 40% de sua posição na Gafisa para 100%, cerca de 200 milhões de reais. Como You disse que não tinha recursos para depositar, a B3, seguindo as regras do mercado, passou a exigir que a corretora Planner, a intermediária das transações da GWI na bolsa, liquidasse a posição da GWI.
A Planner foi então a mercado oferecer as ações da Gafisa detidas por You. Sua própria gestora, a Planner Redwood, abriu três fundos que estavam inativos para receber aportes de interessados na Gafisa e usou esses veículos para adquirir participação de 18,5% na construtora em 14 de fevereiro. Logo depois, You e Thiago deixaram o conselho de administração da Gafisa, sendo substituídos, respectivamente, por Augusto Marques da Cruz Filho, atual presidente do conselho de administração da BR Distribuidora, e por Oscar Segall, fundador da incorporadora Klabin Segall. Segundo EXAME apurou, um family office ligado às famílias Klabin e Segall é o principal investidor dos fundos da Planner Redwood, mas Oscar Segall nega que tenha, direta ou indiretamente, participação na Gafisa. Os nomes dos cotistas de fundos são protegidos por sigilo bancário.
No final da terceira semana de fevereiro, a empreitada de You na Gafisa parecia próxima de terminar. A participação da GWI na construtora foi reduzida a menos de 5%, e a permanência de Recart na presidência seguia como uma incógnita. You, a Gafisa e a Planner Redwood não deram entrevista. A gestora não esclarece quais são seus planos para a Gafisa, se é que já tem um projeto em mente. Em um fato relevante, comunicou que pretende fazer mudanças na administração e manter o mercado informado a respeito. Executivos da Gafisa consideram que a empresa está com o tamanho e a estrutura adequados para voltar a crescer, com foco em São Paulo. Fácil não será. “O endividamento da Gafisa ainda é alto, e por isso a empresa não consegue lançar tantos novos projetos quanto as concorrentes”, diz Enrico Trotta, analista do setor imobiliário do Itaú BBA. Ou seja: dificuldades à vista com ou sem melhora do mercado.
Separada da Gafisa em 2017, a Tenda aumentou o lucro e o faturamento. O dinheiro faria bem à antiga controladora | Denyse Godoy
Uma casa na praia, dizem, sempre dá duas alegrias: quando se compra e quando se vende. Para a Gafisa, a incorporadora voltada para a baixa renda Tenda fez exatamente esse papel. A aquisição da Tenda, anunciada em 2008, era uma oportunidade para a Gafisa entrar no promissor mercado de imóveis para a baixa renda. Mas os projetos destinados a famílias pobres davam retorno pequeno e apresentavam uma taxa de inadimplência elevada. Por anos, a Gafisa tentou desentortar a operação da subsidiária, porém em 2016 acabou jogando a toalha. Em 2017, as duas companhias se separaram e seguem com ações listadas na bolsa de forma independente.
A Gafisa viu-se aliviada por poder se concentrar no mercado de renda média e alta. E a Tenda finalmente desabrochou. A construtora voltada para os pobres passou a aceitar somente compradores cujo financiamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida tenha sido previamente aprovado pela Caixa Econômica Federal, parou de dar descontos a clientes e aprimorou a gestão das obras, reduzindo o desperdício com material de construção.
Do terceiro trimestre de 2016 ao terceiro trimestre de 2018 (dados mais recentes disponíveis), o faturamento da construtora para a baixa renda subiu 81%, atingindo 490 milhões de reais, e o lucro aumentou 178%, alcançando 64 milhões. O valor de mercado da Tenda cresceu 128% nesse período, para 1,6 bilhão de reais — agora quatro vezes o da Gafisa. A ironia: esses resultados ajudariam bastante a Gafisa, hoje, quando a tradicional construtora luta para diminuir seu endividamento.
Organizada, a Tenda deve se beneficiar de uma esperada reação do mercado. Na avaliação da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), o cenário para a retomada do crescimento do setor está quase perfeito. A Selic, taxa básica de juro da economia, em seu menor patamar histórico e a melhora da regulação proporcionada pela lei do distrato estão alimentando um otimismo entre as companhias do setor. Falta só diminuir o desemprego, que continua acima de 10%. “Nos próximos dez anos, o Brasil vai precisar de 9 milhões de unidades residenciais”, diz Luiz Antônio França, presidente da Abrainc. A Gafisa deve acompanhar a recuperação, inicialmente, a distância, com sua casa de praia dando alegrias a terceiros.