Revista Exame

"Teremos novos choques", diz Trichet

Para o ex-presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, o sistema financeiro está mais forte hoje do que na época da quebra do Lehman Brothers, mas a ascensão dos emergentes e a globalização vão criar instabilidade

Jean-Claude Trichet: “A redução dos estímulos americanos pode ser feita sem instabilidade” (Adam Berry/Getty Images)

Jean-Claude Trichet: “A redução dos estímulos americanos pode ser feita sem instabilidade” (Adam Berry/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 14 de fevereiro de 2014 às 17h12.

São Paulo - "Crise é parte do DNA de Jean-Claude Trichet.” A frase de um membro do governo finlandês é uma das que melhor resumem o ex-presidente  do Banco Central Europeu. Trichet foi presidente do Clube de Paris, o grupo de credores internacionais que negociou com os países latino-americanos durante a crise da dívida na década de 80.

Membro da delegação francesa, fez parte, anos depois, das tensas negociações que resultaram na criação do euro. Mas nada no currículo desse francês de 71 anos se compara ao período à frente do Banco Central Europeu — de 2003 a 2011. No dia 9 de agosto de 2007, de férias na cidade de Saint-Malo, na costa da Bretanha, recebeu um telefonema de um assessor.

A mensagem alarmante: o banco francês BNP Paribas estava com problemas por causa de investimentos feitos em papéis ligados ao mercado imobiliário americano.

Trichet ordenou a criação de uma linha no valor de 95 bilhões de euros para dar liquidez aos mercados e, daquele momento em diante, seria um dos protagonistas da maior crise do capitalismo em quase 100 anos. Em entrevista a EXAME, Trichet falou sobre os maiores problemas que ainda pairam sobre a economia mundial.   

EXAME - Quais são atualmente as maiores ameaças à estabilidade financeira global?

Jean-Claude Trichet - Estamos vivendo uma época em que não há referências históricas para nos guiar. Os choques de 2007 e 2008 não foram antecipados. Não diria que o clima hoje é de crise, mas, sem dúvida, temos uma situação difícil nos países ricos. Uma prova disso é que os bancos centrais desses países ainda adotam medidas não ortodoxas de grande magnitude.

Por isso, precisamos estar preparados para enfrentar possíveis ameaças à estabilidade global. Levando em conta essa possibilidade, é particularmente importante reforçar a resistência dos sistemas financeiros nas esferas nacionais e também na global.

A maior parte dos países ricos ainda necessita fazer ajustes em áreas sensíveis, como finanças públicas, situação fiscal e sistema financeiro privado. Um grande número de países avançados também precisa fazer progressos significativos em termos de reformas estruturais e de reformulações de suas políticas macroeconômicas.   

EXAME - Como o senhor avalia a decisão do Federal Reserve, o banco central americano, de reduzir a compra de títulos do governo e títulos lastreados em hipotecas em poder dos bancos, algo que tem grandes efeitos na economia global?

Jean-Claude Trichet - O Fed deixou claro desde o início que essa política não seria para sempre. Ninguém pode dizer que foi enganado. Há sinais claros de que a economia dos Estados Unidos está muito melhor hoje do que esteve no passado. 

EXAME - O começo da retirada dos estímulos nos Estados Unidos tem o potencial de dar início a uma nova crise global? 

Jean-Claude Trichet - Caso essa decisão fosse tomada sem aviso, talvez tivéssemos um período de grande instabilidade. Mas o Fed tem falado em reduzir os estímulos há bastante tempo. Além disso, não podemos esquecer que a melhora da economia americana é uma boa notícia para o mundo.

Em princípio, essa decisão não deveria causar nenhuma instabilidade. Principalmente se o Fed conseguir convencer o mercado de que a diminuição da compra de títulos não deve ser interpretada como mudança na política de juros. Sempre defendi a separação dessas duas questões. Pelas declarações mais recentes, parece que o Fed está indo nessa direção. 


EXAME - Desde que o Fed anunciou que mudaria sua política de estímulos, investidores retiraram dinheiro do Brasil com a expectativa de que os juros voltassem a subir nos Estados Unidos. Se de fato o Fed diminuir os estímulos e, ao mesmo tempo, sinalizar que não vai mudar sua política de juros, a corrida dos investidores poderá ser menor?

Jean-Claude Trichet - A grande questão é se o mercado vai entender que a redução dos estímulos não significa necessariamente uma mudança na política de juros no longo prazo. O sucesso na comunicação dessa mudança não é crucial apenas para o Brasil e demais emergentes. É importante para os países da União Europeia e o Japão.

EXAME - O que o senhor acha das projeções de que veremos taxas de juro negativas durante um longo tempo na Europa e nos Estados Unidos?

Jean-Claude Trichet - Já temos taxas de juro negativas reais, descontada a inflação. Mas uma política de taxas de juro nominais negativas, como alguns economistas andam cogitando, talvez não seja uma boa ideia. Não sei nem se funcionaria. Tecnicamente, é muito complexo.

Se uma economia está numa situação em que começa a cogitar taxas de juro nominais negativas é porque deve ter grandes problemas estruturais que o banco central não consegue solucionar. E, nesse caso, é melhor resolver esses problemas do que embarcar em algo incerto e perigoso. 

EXAME - Se o Fed está fazendo tudo certo, como o senhor dá a entender, por que tem havido tantas críticas à sua atuação?

Jean-Claude Trichet - Quando os Estados Unidos começaram com sua política de estímulos, foram muito criticados pelos efeitos que causaram no restante do mundo. Com a taxa de juro baixa nos Estados Unidos, muitos investidores buscaram retornos maiores em outros países, o que acabou valorizando moedas em várias partes do mundo.

Guido Mantega, o ministro da Fazenda brasileiro, falou até em guerra cambial. Parece-me um pouco paradoxal que, ao anunciar a diminuição dessas medidas, os americanos também sejam criticados. 

EXAME - Falamos de ameaças à estabilidade global, mas não tratamos dos problemas que ainda afetam a zona do euro. Qual é a situação da Europa hoje?

Jean-Claude Trichet - Há quatro razões para justificar o fato de o risco sistêmico ter diminuído. Primeiro, o ajuste nos países mais afetados — Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália — é significativo. O déficit em conta-corrente consolidado dos cinco países era de 8% da soma dos PIBs há quatro anos. Hoje, o resultado já é positivo.


Em segundo lugar, houve uma melhora na condução da política fiscal e macroeconômica. Terceiro, nenhum dos países em dificuldades decidiu sair da zona do euro, o que reforçou a confiança dos investidores.

Por último, o Banco Central Europeu tem mantido uma política altamente responsável. Isso quer dizer que está tudo certo? Claro que não. Não há espaço para complacência. É preciso continuar avançando na área fiscal, nas reformas estruturais e na formação de uma união bancária.

EXAME - Quais foram as mudanças importantes realizadas desde o estouro da crise, há cinco anos, para garantir a estabilidade do sistema financeiro mundial? 

Jean-Claude Trichet - Trabalhamos juntos na esfera do G20. Isso foi uma mudança incrível. Nas crises anteriores, a discussão ficava apenas entre os países ricos. Fizemos um bom trabalho com os bancos, com novas exigências de capital. Temos um mundo mais estável e forte na área financeira do que tínhamos na época da quebra do banco Lehman Brothers.

Mas ainda temos de fazer mais na área financeira não ligada aos bancos. Teremos novos choques. Eles são inevitáveis. O mundo está mudando muito rapidamente. Os países emergentes estão ganhando uma nova estatura, e isso muda a estrutura global.

O sistema financeiro e a economia mundial têm um nível de integração que era impensável há 15 anos. Isso criou novas fragilidades que ainda não entendemos totalmente. Esse é nosso grande desafio.

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