(Arte/Exame)
Da Redação
Publicado em 20 de dezembro de 2018 às 05h58.
Última atualização em 20 de dezembro de 2018 às 05h58.
NOVO GOVERNO
A gestão de Jair Bolsonaro começa lidando com problemas criados por seu entorno. É hora de acertar o rumo: o Brasil precisa com urgência de um governo com força para aprovar reformas | André Jankavski, Letícia Naísa e Natália Flach
A eleição costuma ser um divisor de águas para a conduta dos políticos. O discurso dos candidatos tende a ser mais bélico até o momento em que são eleitos e, quando passam a integrar o governo, adotam um tom mais pacificador. Jair Bolsonaro tem sido mais contido, mas, no conjunto, seu time ainda não seguiu essa regra. Aproveitando-se da onda conservadora, o futuro presidente conquistou quase 58 milhões de votos no segundo turno, uma vitória maiúscula. Mas, passada a eleição, ainda não achou um discurso de conciliação necessário neste momento, e isso tem imposto custos políticos a um governo que ainda nem tomou posse. “Bolsonaro agora é o presidente da República, cujo comportamento precisa ser formal e comedido”, afirma Bolívar Lamounier, cientista político da Augurium Consultoria.
Neste momento, a principal fonte de problemas vem do comportamento de familiares e conhecidos. A investigação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), ligado ao Ministério da Fazenda, identificou movimentações atípicas no valor de 1,2 milhão de reais na conta-corrente de um ex-assessor de Flávio Bolsonaro, filho do presidente eleito, além de depósitos para a futura primeira-dama, Michelle Bolsonaro. As dúvidas acerca desse caso, no entanto, não feriram a imagem popular de Bolsonaro, que se elegeu com a bandeira do combate à corrupção. Uma pesquisa da corretora XP Investimentos, obtida com exclusividade por EXAME, aponta que 63% de 1.000 pessoas entrevistadas não mudaram de opinião sobre o futuro presidente, mesmo com o episódio do Coaf.
A questão é que esses problemas podem levar Bolsonaro a queimar capital político em um dos momentos mais importantes para um novo gestor. É o que especialistas chamam de “lua de mel”, período em que o político tem mais chance de aproveitar o resultado das urnas para aprovar medidas delicadas. Leia-se: reformas macroeconômicas essenciais, como a da Previdência, que é prioridade na lista do ministro da Economia, Paulo Guedes, e da maioria dos investidores no país. Recados fora do tom emitidos por integrantes da equipe de transição e congressistas do PSL sempapas na língua, criaram constrangimentos. O futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, disse que o governo tem quatro anos para aprovar a pauta previdenciária. Nos Estados Unidos, em encontro com investidores, o filho e deputado Eduardo Bolsonaro aventou a possibilidade de reforma nenhuma passar. Em ambos os casos, contradisseram o esforço de Guedes. Não pegou bem, para dizer o mínimo.
É verdade que o tempo de aprovação da proposta pode variar. Caso o governo queira manter o texto em tramitação no Congresso, herdado do governo de Michel Temer, é possível que seja aprovado durante o primeiro ano de mandato de Bolsonaro. Caso contrário, a elaboração de um novo texto e o vaivém na Câmara e no Senado poderão prolongar o tempo de aprovação, tendendo a enfraquecer um governo que ainda nem começou. Um estudo realizado pelo banco BTG Pactual mostra que a média de tempo para aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional é de 37 meses, ou pouco mais de três anos.
A reforma da Previdência poderá ser ainda mais demorada. Um projeto sobre o mesmo tema levado pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso demorou 45 meses (três anos e nove meses) para ser aprovado, com uma série de ressalvas e quase todos os privilégios do funcionalismo público mantidos. O governo Lula, por sua vez, teve uma velocidade recorde: levou apenas oito meses para tirar a reforma do papel. O mérito de Lula, em comparação ao antecessor, foi conseguir quase 70% dos votos da oposição, algo que Bolsonaro dificilmente conseguirá.
A seu favor, Paulo Guedes conta com o fato de já ter escolhido uma equipe de secretários que, além de ser considerados tecnicamente competentes, são conhecedores dos ritos de Brasília — algo necessário para compensar a falta de experiência do próprio Guedes na administração pública. Um exemplo é o indicado para ser o número 2 do ministério, o futuro secretário executivo Marcelo Guaranys, técnico de carreira do Tesouro Nacional e ex-diretor-geral da Agência Nacional de Aviação Civil.
Guaranys, atualmente na Casa Civil, foi um dos artífices do projeto da nova Lei das Agências Reguladoras, hoje em tramitação no Senado, e participa dos preparativos para o ingresso do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o grupo das 34 economias mais desenvolvidas do mundo. Guedes também está mantendo técnicos que estão no Ministério da Fazenda de Temer. Um deles é Waldery Rodrigues Júnior, que será deslocado da Coordenadoria-Geral da Secretaria de Política Econômica para a nova Secretaria da Fazenda do novo Ministério da Economia. “Existe gente muito boa no Ministério da Economia, mas acho que a equipe e o próprio Guedes passarão por um período de aprendizado”, diz o ex-ministro da Fazenda e futuro secretário estadual de São Paulo, Henrique Meirelles.
Para assumir a presidência do Banco Central no lugar de Ilan Goldfajn, o selecionado foi o economista Roberto Campos Neto, diretor do banco Santander. No mercado, a escalação foi elogiada. “Campos Neto deve perseguir a independência formal da autoridade monetária, trazendo mais transparência à economia”, diz Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú Unibanco.
Na frente política, crucial para o sucesso dos projetos de governo, Bolsonaro primeiro terá de acertar a coesão de seu partido, o PSL. Ele compõe o que será a segunda maior bancada na Câmara, com 52 deputados federais eleitos e a possibilidade de crescer com adesões. Mas a legenda é nova e vive em tumulto. Para Luciano Bivar, presidente do PSL, as discussões abertas e as declarações descabidas passarão a ficar mais raras com a experiência a ser adquirida pelos parlamentares novatos durante o mandato no Congresso Nacional. “Essas discussões são absolutamente normais em qualquer partido, ainda mais em um como o nosso, que está em transformação”, diz Bivar. Não por acaso, o deputado eleito acredita que as propostas mais sensíveis, como a reforma da Previdência e as privatizações de empresas públicas, não terão tanta dificuldade de ser aprovadas. Para Bivar, haverá unidade dentro do partido.
Esse apoio será fundamental para que nomes como o de Guedes e o de Sergio Moro, anunciado como superministro da Justiça, tenham como deslanchar suas pautas. Os dois funcionam como âncoras para o governo Bolsonaro, cada um à sua maneira. “Para não sermos injustos, precisamos reconhecer que o Bolsonaro criou esses dois polos de poder muito fortes, que serão protagonistas no próximo governo”, afirma Lamounier. O cientista político compara o governo Bolsonaro com um governo de transição. Os próximos quatro anos serão uma espécie de arrumação na casa. Os objetivos principais serão a retomada de vez da economia e a criação de uma política eficaz de combate à corrupção.
SEM TOMA LÁ DÁ CÁ?
Em relação ao Parlamento como um todo, Bolsonaro aposta na negociação com as bancadas temáticas, em vez do tradicional diálogo com as legendas partidárias. A proposta do presidente eleito é aproveitar as bandeiras conservadoras defendidas por representantes dos chamados grupos da Bíblia, da Bala e do Boi (ligados às igrejas evangélicas, aos militares e ao agronegócio, respectivamente) para fazer andar seus projetos. A ideia é evitar as trocas de cargos por apoio no Congresso, prática do presidencialismo de coalizão na qual os últimos governos se apoiaram fortemente.
Conhecedores do Congresso acreditam que a estratégia de Bolsonaro não irá muito longe. “Quando as votações ficarem mais duras, talvez o novo governo precise rever essa posição”, diz Eliseu Padilha, atual ministro-chefe da Casa Civil do governo Temer. Para Padilha, isso ocorrerá já nas discussões da reforma da Previdência. “O novo governo pode até fazer as conversas com as bancadas temáticas, mas, a meu ver, acabará negociando com os partidos”, diz o ministro.
Caso Bolsonaro seguisse o caminho do presidencialismo de coalizão, como os antecessores, ele teria potencialmente apoio de 70% da Câmara e de 65% do Senado, de acordo com um levantamento feito pelo cientista político Carlos Pereira, professor na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. “O presidente eleito quer estabelecer conexão direta com os eleitores, de modo a constranger o Legislativo. Essa estratégia só gera resultados positivos no curto prazo”, diz Pereira.
O poder de barganha de um governo eleito é alto, especialmente porque pode indicar pessoas — concursadas ou não — para 23.237 cargos e funções, de acordo com dados do Ministério do Planejamento. No entanto, o presidente eleito e sua equipe estão alocando aliados em postos do segundo e do terceiro escalão. “Não é que ele vai governar sem os partidos, mas vai dar menos poder a eles. É uma escolha arriscada; no entanto, não significa que vai fracassar”, afirma Sérgio Praça, professor e pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.
Bolsonaro e sua equipe escalaram militares e aliados pouco conhecidos no mundo da política para compor boa parte de seus 22 ministérios, sete a menos do que os do governo Temer. O novo organograma aglutinou sob um único chapéu várias pastas, como a da Economia, que vai reunir a Fazenda, o Planejamento, a Indústria, Comércio Exterior e Serviços, além de uma parte do Trabalho, e deve ter quase 160.000 funcionários.
A movimentação tem deixado os servidores inseguros com a possibilidade de ser demitidos. Aliás, essa é uma das promessas de campanha proferidas por Lorenzoni. Segundo o novo ministro-chefe da Casa Civil, o governo vai cortar 20.000 postos do Executivo no dia da posse para tentar reequilibrar as contas públicas. A demissão de servidores de carreira concursados, porém, depende da aprovação no Congresso do fim da estabilidade. Não à toa, diversas entidades que representam os servidores têm solicitado um diálogo mais aberto com a equipe do novo governo, na tentativa de barrar essas mudanças.
É o caso da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal e da Federação Nacional dos Trabalhadores no Serviço Público Federal, que encaminharam, recentemente, um ofício a Lorenzoni pedindo para negociar o tamanho das pastas, principalmente o “fatiamento” do Ministério do Trabalho, que atualmente tem 18.538 servidores. Outra fonte de estresse é o destino do Programa Mais Médicos após a saída dos cubanos devido às declarações hostis de Bolsonaro. Para remediar a situação, o Ministério da Saúde anunciou a abertura de 8.517 vagas para médicos brasileiros. O interesse foi alto: 8.411 profissionais se inscreveram. No entanto, cerca de 30% dos médicos aprovados não se apresentaram nos postos de trabalho até o início da segunda semana de dezembro.
Para além da anunciada dança das cadeiras, o novo presidente tem criado caso com servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão que em 2012 multou o então deputado Jair Bolsonaro em 10.000 reais por prática de pesca ilegal numa estação ecológica protegida por lei. Uma das promessas do presidente eleito é acabar com a “indústria da multa” do Ibama, uma reclamação comum no setor produtivo. “É o trabalho dos fiscais fazer com que a legislação seja seguida. Quando se aplica uma multa, é porque não houve o cumprimento da lei”, afirma Elisabeth Uema, secretária executiva da Associação Nacional dos Servidores Ambientais.
Nas regras que regem o funcionalismo público, os fiscais do Ibama podem, inclusive, responder criminalmente por negligência ou conivência. Para que haja mudança em relação à aplicação de multas, será preciso mudar a lei. A lei de licenciamento para obras é outra responsabilidade de órgãos ambientais com a qual Bolsonaro já demonstrou discordância. Segundo o presidente eleito, o processo causa atrasos. É fato que o processo é demorado e, dependendo do tamanho da obra, extremamente complexo, podendo envolver milhares de itens. Mas não há solução fácil. Há falta de funcionários para dar conta dos processos, e atrasos acontecem também por causa de estudos de impactos ambientais malfeitos entregues pelas empresas.
Resolver essas questões seria providencial para deslanchar os planos de melhorar a depauperada infraestrutura do país. Nomeado para comandar a pasta que vai absorver as funções do atual Ministério dos Transportes, dos Portos, Aeroportos e Aviação Civil, Tarcísio Gomes de Freitas é visto como o homem certo para a posição por ser o atual secretário de Coordenação de Projetos da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos. Ele já anunciou que sua prioridade serão a retomada de obras que estão paralisadas às centenas pelo país e o impulso às privatizações. Uma vantagem é receber um pacote de projetos de concessão de terminais portuários, aeroportos, rodovias e ferrovias deixado pelo governo Temer. Podem ser postos na rua para buscar investidores 87 projetos, com o valor potencial de 150 bilhões de reais. Há também leilões de petróleo e de energia bem encaminhados.
Bolsonaro terá ainda um ponto de partida mais estabilizado do que seu antecessor, o presidente Michel Temer. Apesar das diversas denúncias que assolaram o próprio mandatário e nomes próximos a ele, seu governo conseguiu avançar em diversos pontos de 2016 para cá. Os principais foram os temas mais ligados à economia. A inflação, por exemplo, saiu de 6,3%, em 2016, para 2,9%, no ano seguinte. A expectativa é que fique em 3,7% em 2018 e se mantenha perto da meta do Banco Central. A articulação política de Temer também ajudou na implantação de algumas reformas. A mais notória conquista foi a aprovação do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas do governo ao aumento da inflação.
A reforma trabalhista permitiu a diminuição de alguns problemas, como a judicialização na área. Mesmo no caso da Previdência, apesar de a reforma não ter sido aprovada, o avanço na discussão deverá ser benéfico para Bolsonaro. Especialistas afirmam que a discussão iniciada pelo governo Temer tende a facilitar a vida do próximo presidente, pois a população começou a entender o tamanho do problema. O aumento da celeridade nas privatizações também ajudou a desmistificar esse tema. O resultado foi a volta do crescimento, mesmo que tímido. Manter essa trajetória e, de preferência, acelerá-la parece ser uma meta alcançável pelo governo Bolsonaro. A eleição acabou. Agora é governar.
Principal interlocutor do governo Temer com o Congresso, Eliseu Padilha acredita que o governo de coalizão continuará a existir com Jair Bolsonaro | André Jankavski
O ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, é um dos nomes mais próximos do presidente Michel Temer. Não à toa, ele foi o homem do atual governo responsável pela interlocução com o Congresso. Investigado por crimes como corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Padilha fala a seguir sobre como enxerga o futuro do presidencialismo de coalizão — modelo caracterizado pela distribuição de cargos em troca de apoio parlamentar — e seu próprio futuro na política, em breve sem o foro privilegiado.
Com Jair Bolsonaro, o governo de coalizão ficará no passado?
O modelo de governo de coalizão foi reprovado nas urnas. Tivemos uma votação contra o statu quo e a população mostrou que quer mudança. Foi a eleição do “contra tudo o que está aí”. Agora, cabe ao novo governo encontrar a forma que corresponda às expectativas da população, mas que viabilize a aprovação das matérias no Congresso Nacional. Os parlamentares vêm com a filosofia de que são influentes e que querem participar do governo.
E como resolver essa negociação com os parlamentares?
O que começamos a ouvir é que o novo governo começa a conversar com os parlamentares para montar o segundo e o terceiro escalões dos cargos públicos. O que teremos não é o fim do governo de coalizão, mas um modelo diferente. Os partidos e as lideranças partidárias não estão sendo valorizados neste primeiro momento, e sim a negociação por blocos.
Mas quando o senhor acredita que isso ocorrerá? A negociação por bancadas pode dar certo?
Quando as votações ficarem mais duras no Congresso, o governo, talvez, tenha de rever essa posição. São os partidos que fazem as indicações para as comissões, além dos líderes e dos relatores das matérias. Existe um valor importante dos partidos e das lideranças que não poderá ser ignorado. O novo governo pode até fazer as conversas com as bancadas temáticas, mas, a meu ver, acabará negociando com os partidos. Vamos ver até que ponto essa estratégia se sustenta.
Bolsonaro iniciará seu governo com uma força maior do que a de seus antecessores?
Todos os governos eleitos começam com uma força grande, em lua de mel. Isso dura em torno de seis meses. Depois, os parlamentares vão querer ser ouvidos e opinar sobre as votações. Nesse período de lua de mel, o governo terá de propor as medidas mais importantes. A meu juízo, o primeiro item será a reforma da Previdência.
O que o senhor fará quando o governo Temer chegar ao fim?
Sou advogado, empresário e dirigente do MDB e da Fundação Ulysses Guimarães. Continuarei com essas atividades, mas não pretendo voltar a disputar nem a ocupar cargos públicos no futuro.
O senhor está respondendo a processos e vai perder o foro privilegiado. Isso o preocupa?
Seria de absoluta irresponsabilidade dizer que não, isso não me preocupa. Mas tenho a preocupação de que a lei seja observada em sua plenitude e que o direito de defesa também seja respeitado. Só isso.
CIÊNCIA
O debate sobre mudanças climáticas se acirrou. Será que a solução está a 482 milhões de quilômetros de distância? | David Cohen
Selfie da sonda InSight: os primeiros passos para viver em Marte | Divulgação
Quando o empresário sul-africano e americano Elon Musk fundou a empresa SpaceX, em 2002, com a expressa meta de lançar as bases para a colonização de outros planetas, a ideia parecia excêntrica. Em 2014, quando afirmou que a SpaceX visava garantir a preservação da raça humana pela conquista de Marte, cabia-lhe, com certa literalidade, a pecha de “lunático” — ainda mais por ideias como a de lançar bombas nucleares nos polos do planeta para descongelar camadas de dióxido de carbono e assim criar uma camada de gases capaz de manter o calor na superfície, como acontece na Terra.
No entanto, a agenda de Marte ganhou força. No mês passado, a sonda espacial InSight pousou na superfície do planeta. Foi a oitava máquina da Nasa, agência espacial americana, a pousar ali, a primeira com a meta de estudar sua geologia. Trata-se de um passo essencial para enviar exploradores humanos, um plano da Nasa para a década de 2030. Musk pretende no mínimo colaborar para o projeto: planeja enviar dois cargueiros a Marte em 2022 para estabelecer equipamentos vitais na superfície.
Uma das inspirações de Musk é o físico britânico Stephen Hawking. Em 2017, meses antes de morrer, Hawking previu que a humanidade tinha apenas 100 anos para encontrar outro lugar para viver. De acordo com ele, muitas ameaças pairam sobre nós: uma colisão de asteroide, uma guerra nuclear, a explosão demográfica, epidemias, as mudanças climáticas na Terra.
Claro, evitar essas catástrofes é supostamente mais simples do que colonizar um planeta inóspito a 482 milhões de quilômetros de distância. Supostamente.
Basta olhar um desses esforços. No dia 15 de dezembro, diplomatas de quase 200 países chegaram a um acordo para salvar o Tratado de Paris, que estipula reduções nas emissões de gases para conter as mudanças climáticas. Os Estados Unidos conseguiram estabelecer medições mais transparentes para cobrar da China e da Índia o cumprimento de metas, algo que o país exigia havia tempos. Mas não é certo que o presidente Donald Trump desista de retirar-se do acordo.
O Brasil segue essa mesma linha. Durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro fez duras críticas ao tratado e ainda influenciou na decisão brasileira de não sediar a próxima conferência da ONU sobre mudanças climáticas (uma decisão que reduz nossa moral ambientalista, mas evita gastos da ordem de 400 milhões de reais). O chanceler escolhido por Bolsonaro, Ernesto Araújo, já declarou considerar as mudanças climáticas uma ideologia esquerdista.
Será o caso de já ir se acostumando com a ideia de viver em Marte?
DEMOCRACIA
Se metade do país vê a outra metade como inimiga do povo (e vice-versa), temos uma nação preparada para derrubar a democracia a cada crise. Como restaurar os laços pessoais que foram rompidos com a polarização política | Joel Pinheiro da Fonseca
A cada nova eleição, a polarização política da sociedade brasileira avança um grau. O normal era que o ódio, esse sentimento tão humano e que sempre estará entre nós, fosse direcionado apenas para o candidato adversário; seus eleitores eram tolos enganados pela propaganda. Em 2014, os ânimos se acirraram e os próprios eleitores do lado contrário entraram para o time dos vilões: a sociedade se dividia entre petralhas e coxinhas. Em 2018, o conflito se tornou ainda mais radical — agora falamos em fascistas e comunistas — e não só os eleitores rivais como as próprias instituições do país (Justiça, mídia, urnas, escolas) passaram a ser vistas como partes de um plano maléfico a serviço do inimigo.
Para um lado, a mídia é golpista e a Justiça, ao prender Lula, age a serviço da CIA para vender as estatais brasileiras. Para o outro, a mídia é uma máquina de fake news, as urnas são fraudadas (ou eram, antes de Bolsonaro vencer) e as escolas pregam uma ética progressista desenhada na ONU para destruir a família.
Isso é grave. Se você encara um adversário político não como alguém bem-intencionado que, apesar das discordâncias, também quer ajudar o país, mas como um inimigo do próprio povo, então se pode no máximo tolerá-lo, mas o ideal seria extirpá-lo. Se metade do país vê a outra metade dessa forma (e vice-versa), temos uma nação preparada para derrubar a democracia assim que a primeira crise política se instaure.
Mesmo sem uma quebra institucional, a polarização também degrada a qualidade de nossa política, pois torna inviável a negociação de ideias e interesses, que é parte essencial da vida política. Um Congresso cheio de demagogos e radicais incapazes de ceder e competindo para ver quem faz mais barulho não consegue trabalhar unido para fins comuns. E esse tipo de capacidade é justamente o que o Brasil precisará em 2019. A polarização serve também para acobertar os desvios éticos e legais dos representantes. Se o outro lado é, por definição, a encarnação do mal, então estaremos aptos a tolerar e fazer vista grossa a crimes do nosso próprio lado.
Com tudo isso, a convivência na sociedade fica degradada. Nem tudo é política. Família, amizades, lazer, esportes, artes, espiritualidade. A briga política, quando se aprofunda, polui todas essas esferas. Uma vida mais conflituosa, com mais estresse e com relações humanas desgastadas — em que tudo obedece ao critério partidário —, é uma vida mais pobre e mais infeliz. É daí que nasce nosso incômodo com a polarização, que nosso país sempre soube manter dentro de certos limites. No Brasil, os relacionamentos pessoais sempre falaram mais alto do que as ideologias e as coletividades. Como restaurar o que foi quebrado?
Essa cultura continua a valer. Muita gente ficou simplesmente exausta de tanta briga e procura pretextos para restaurar os laços. O primeiro passo, assim, já está sendo dado. Gostando ou não de Bolsonaro, torcendo ou não pela liberdade de Lula, queremos acima de tudo poder sentar, comer e beber juntos. A política vai sendo recolocada no mesmo saco da religião e do futebol, assuntos sobre os quais evitamos discutir em alguns contextos; e isso é bom.
Nesse processo, a imprensa terá um papel fundamental. Em um mundo em que cada vez mais tudo é “narrativa”, o jornalismo precisa se aferrar ainda mais à objetividade. Adotar um viés partidário, seja a favor, seja contra o novo governo, é insuflar a polarização na sociedade e nos empurrar para o desastre. Para ficar acima da divisão e ser um fator de coesão social, terá de garantir o rigor profissional e aliá-lo à diversidade ideológica dentro das redações. Nas reportagens, objetividade, checagem de fatos, ouvir todos os lados. Nas colunas de opinião, diversidade de posições e tom de respeito ao defendê-las, convidando à discussão racional, e não à briga de torcidas.
Cada um de nós pode contribuir, lembrando-se de que o lado adversário não é menos honesto nem menos inteligente do que o nosso. Em ambos, os mesmos mecanismos psicológicos dão o tom: o desejo de confirmar as próprias crenças, a construção da própria identidade com base na adesão ao grupo, a busca de afirmação. Conscientes disso, podemos fazer o esforço de compreender o outro lado, o que será bom para ambos.
Por fim, a realidade política cotidiana se encarregará de moderar as paixões. No dia 1o de janeiro, a realidade vai substituir as expectativas. Para quem se opunha a Bolsonaro, o início do governo acabará com o espectro de perseguição a minorias nas ruas, de professores presos, de tanques de guerra. A política seguirá como sempre. E seguirá como sempre também para quem o apoiava apostando em algo radicalmente diferente — para melhor — daquilo que aí estava. Bolsonaro é e sempre foi parte do sistema, e terá de negociar com ele. A lógica da velha política, tão vilipendiada, dilui os radicalismos e, portanto, desilude os radicais.
O Brasil sempre cultivou um saudável ceticismo em relação aos governantes e supostos representantes do povo. Aqueles lá em cima, independentemente do partido, não estão do mesmo lado que nós e nos usam para garantir seu poder. Essa realidade não mudou. A política segue sendo, conforme Maquiavel ensinou (e o brasileiro nunca ignorou), uma esfera necessária, porém viciosa da vida nacional. Maldizer os nossos políticos, a uma só voz, é o passatempo nacional que poderá nos unir novamente.
POLÍTICA
Há muitos pontos em comum — e algumas diferenças importantes — entre a experiência populista na América Latina e a mais recente de economias desenvolvidas | Sebastián Edwards
Por quase um século, o populismo foi em boa medida considerado um fenômeno tipicamente latino-americano, uma praga política recorrente em países como Argentina, Equador e Venezuela. Nos últimos anos, porém, o populismo adquiriu uma proporção global, virando de ponta-cabeça as políticas de países muito diferentes entre si, como Hungria, Itália, Filipinas e Estados Unidos. Jair Bolsonaro, presidente eleito do Brasil, é o exemplo mais recente de uma tendência mais ampla.
Políticos populistas ganham força quando trabalhadores e cidadãos da classe média se sentem injustiçados pelas elites de seus países. Em seu descontentamento, os eleitores se voltam para personalidades fortes e carismáticas, cuja retórica em geral foca as causas e as consequências da desigualdade. Além disso, líderes populistas são nacionalistas, e seu discurso enfatiza o confronto. É por isso que “o povo” tem de ser levado a desafiar o statu quo político, as grandes empresas, os bancos, as multinacionais, os imigrantes e outras instituições estrangeiras.
No poder, os governos populistas tendem a implantar políticas de redistribuição de renda. Em geral, isso leva a déficits fiscais insustentáveis e a uma expansão monetária. Políticas populistas — que incluem também protecionismo, regulamentação discriminatória e controle de capitais — violam a maioria dos princípios básicos da economia tradicional. Mas a heterodoxia sugere uma ruptura com o establishment. E, de acordo com o pensamento populista, já que o statu quo é a causa dos males de seus países, a solução é romper com ele.
A Venezuela oferece um exemplo de cartilha de como o populismo pode se instaurar. O evento inicial que impulsionou o movimento populista no país aconteceu quase dez anos depois de Hugo Chávez ter chegado ao poder. Em 27 de fevereiro de 1989, houve protestos na capital, Caracas, após um anúncio de que as tarifas de transporte público subiriam 30%. Para restabelecer a ordem, o governo foi forçado a acionar os militares. Depois de cinco dias de violência, mais de 300 pessoas haviam sido mortas. Esse episódio preparou o cenário para o golpe fracassado de Chávez em fevereiro de 1992. Durante os dois anos em que ficou na cadeia, Chávez preparou-se para disputar a Presidência e, quando foi solto, visitou uma cidade após outra para apresentar seu programa populista. A economia venezuelana estava passando por dificuldades, e os pobres o adoravam. Na eleição presidencial de 1998, Chávez obteve uma vitória esmagadora sobre seu adversário.
Crises profundas semelhantes estão por trás do -atu-al surto de populismo de direita. No Brasil, Bolsonaro deve sua popularidade súbita a uma crise econômica e social que vem sendo alimentada há quase uma década, produzindo desemprego elevado e achatando salários em todos os setores. Ao mesmo tempo, o país se encontra atolado em sucessivos escândalos de corrupção que resultaram na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além do impeachment e remoção do poder de sua sucessora, Dilma Rousseff.
Do mesmo modo, a crise financeira de 2008 estabeleceu as bases para o populismo despontar nos países desenvolvidos. Os cidadãos comuns detestaram o socorro prestado aos bancos, e as crises de imigração na Europa e em outros lugares só colocaram mais gasolina na fogueira nacionalista.
Há muitas semelhanças entre a experiência populista na América Latina e essa recente das economias desenvolvidas. Os déficits fiscais nos Estados Unidos e em alguns países europeus estão atingindo números inéditos, e os empréstimos vêm subindo para níveis perigosos. O que a história ensina é que uma crise da dívida pode estar muito próxima.
Também há semelhanças notáveis em relação ao modo como os líderes populistas de fato conduzem a política, em particular a ênfase em mobilizar demonstrações públicas de apoio popular. Sem dúvida, as ações movidas pelo lema “Façam a América grande de novo”, do presidente Donald Trump, não são iguais às manifestações populares de Chávez. Porém, os ataques de Trump ridicularizando seus adversários políticos, sua retórica antiglobalização e o desprezo pelas elites são todos trejeitos com os quais vários latino-americanos estão familiarizados. E, da mesma maneira que muitos populistas latino-americanos do passado, o governo Trump tem buscado uma agenda protecionista para blindar as empresas americanas contra a competição.
Além disso, há bastante tempo os populistas da América Latina vêm insistindo em condenar as instituições estabelecidas, em especial aquelas que deveriam conter os excessos cometidos pelo poder público. Chávez criticava a Suprema Corte da Venezuela, e posteriormente a encheu de pessoas leais a ele; o ex-presidente equatoriano Rafael Correa ameaçou reformar o regime monetário estável do país; e o ex-presidente peruano Alan García fez ataques severos ao Fundo Monetário Internacional.
De modo semelhante, Trump tem desacreditado o Federal Reserve (Fed, o banco central americano), tachando-o de “insano” e “louco” por buscar uma normalização monetário-política. Na Itália, onde o governo propôs um orçamento que viola as regras de déficit da União Europeia, o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini tem usado palavras duras para se referir ao Banco Central Europeu (BCE) e à Comissão Europeia.
Sem dúvida, também há algumas diferenças. E, mais importante, em muitas das economias desenvolvidas em que as forças populistas vêm avançando, ainda há restrições na condução da política monetária. Ao contrário do que acontece na América Latina, o Fed e o BCE não podem ser forçados a financiar os gastos fiscais dos governos. Ainda que a Itália pertença à zona do euro, ela tem muito pouca influência no modo como o BCE opera. Enquanto for assim, é improvável que o momento populista da Itália termine em uma enorme fogueira inflacionária, como tem acontecido tradicionalmente na América Latina. A Argentina, por exemplo, teve uma inflação de 41% logo após os mandatos presidenciais seguidos de Néstor Kirchner e de sua mulher, Cristina Kirchner.
Dito isso, tem-se falado em um possível Italeave (junção das palavras Itália e leave, “sair”, na tradução do inglês), segundo o qual a Itália deixaria a zona do euro e restabeleceria a lira. Mas os italianos precisam entender que em outros países (a Libéria, por exemplo) que voltaram com a moeda nacional as coisas não acabaram bem. De fato, a lição mais importante que se pode tirar das experiências populistas na América Latina é que elas invariavelmente acabaram mal. No fim das contas, os domicílios de renda baixa e média tipicamente se encontram em situação pior do que estavam quando teve início o experimento populista.
Sebastián Edwards é professor de economia -internacional na Escola Anderson de Pós-Graduação em Administração da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Ele é coautor de Macroeconomics of Populism in Latin America (Project Syndicate)
GLOBALIZAÇÃO
A Quarta Revolução Industrial — que concentra poder e recursos nas mãos de algumas corporações — exige um novo arcabouço institucional para integrar as políticas nacionais em um sistema global | Klaus Schwab
Para superar a “grande disrupção” de 2018, o mundo terá de criar um novo sistema de cooperação global. Depois da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional se uniu com a finalidade de elaborar um conjunto de estruturas institucionais que facilitassem a colaboração na busca de um futuro em comum. Agora, terá de fazê-lo novamente. Desta vez, porém, o desafio não é apenas geopolítico e econômico. Estamos assistindo a uma mudança fundamental no relacionamento entre indivíduos e sociedades. Compreender essa mudança é essencial para influir de maneira positiva em seus resultados.
A primeira coisa a reconhecer é que vivemos a Quarta Revolução Industrial, na qual empresas, economias, sociedades e a própria política passam por uma transformação fundamental. Desde a concepção do primeiro Fórum Econômico Mundial em 2016, tenho insistido: não basta trabalharmos com os processos e as instituições atuais. Temos de reprojetá-los de forma a capitalizar a abundância de novas oportunidades que nos aguarda, evitando ao mesmo tempo o tipo de disrupção que observamos hoje.
A Quarta Revolução Industrial já está transformando de diversas maneiras os sistemas econômicos. O mundo físico está sendo superado por um novo mundo digital, interconectado com uma economia circular e compartilhada. O processo de produção está sendo revolucionado por automação, localização e individualização — que tornam obsoletas as tradicionais cadeias de suprimento. A concorrência se baseia cada vez menos nos custos, e mais na funcionalidade e na inovação. Em breve, as economias de escala deixarão de oferecer as vantagens de outros tempos. O recurso mais precioso será o talento, e não o capital tradicional.
A nova revolução também está colocando poder e recursos sem precedentes nas mãos de apenas algumas corporações. As maiores companhias digitais de hoje começaram a revolucionar a vida das pessoas e a romper com padrões sociais como as empresas tradicionais jamais conseguiriam. Daqui em diante, o domínio da inteligência artificial e de grandes volumes de dados e a capacidade de operar enormes plataformas determinarão o poder das corporações e das nações.
Ao mesmo tempo, empregos e padrões de renda passarão por uma mudança com a difusão da automação comandada pela inteligência artificial. Empregos serão criados em número cada vez maior graças a ecossistemas inovadores. A renda do trabalho tradicional será substituída pelo aumento dos retornos proporcionados por funções criativas, pelo capital de risco e pela vantagem representada pelas atividades pioneiras.
As interações econômicas globais não podem mais ser compartimentadas no intercâmbio de bens e serviços, das transações financeiras e dos investimentos. Todos os fluxos econômicos serão integrados em um sistema abrangente de troca de valores tangíveis e intangíveis através das fronteiras. Em lugar de tributar o trabalho, os governos terão de começar a tributar os monopólios das plataformas e os mecanismos da criação de valor baseados na nuvem.
Nos próximos anos, os orçamentos nacionais serão cada vez mais pressionados pelos gastos com as infraestruturas física (hard) e tecnológica (soft) imprescindíveis para fornecer ecossistemas adequados à inovação, à reciclagem e à requalificação das competências. Uma prioridade deverá ser a adequação da educação às novas demandas. Será preciso dar mais ênfase aos estímulos à criatividade, ao pensamento crítico, à formação de competências no campo digital e à capacidade de empatia, sensibilidade e colaboração — tudo isso para garantir que a tecnologia permaneça subordinada às nossas necessidades, e não o contrário. Além disso, os sistemas educacionais terão de se voltar para o aprendizado permanente, por meio do ensino digital e do treinamento personalizado.
Além da educação, a formulação de políticas em geral deverá se adaptar à rapidez das mudanças. Terão de ser criados novos modelos de governança que levem em conta a agilidade e a colaboração a fim de evitar que as políticas de governo estejam constantemente defasadas em relação à fronteira tecnológica.
A resposta dos países a todas essas mudanças determinará as trajetórias que terão de seguir em seu futuro crescimento e em sua posição no cenário mundial, sem falar na qualidade de vida dos cidadãos. Como processo de interconexão na ausência de fronteiras, a Quarta Revolução Industrial exige que as políticas nacionais estejam integradas em um sistema global. Hoje, a globalização é definida pela expansão do comércio multilateral e bilateral; no futuro, porém, descreverá a interconectividade dos sistemas digitais nacionais e o respectivo fluxo de ideias e serviços.
Embora muitos países estejam ainda tentando recuperar o atraso em relação às revoluções industriais anteriores, terão de reconhecer que a nova revolução oferece oportunidades únicas para dar o grande salto até as inovações mais recentes. Depois de colher os benefícios da Primeira Revolução Industrial, o Reino Unido se tornou a principal potência global no século 19. A ele sucederam os Estados Unidos, que, mais do que qualquer outro país, dominaram a Segunda e a Terceira Revolução Industrial. Essas três revoluções dividiram o mundo em países industrializados e em países em desenvolvimento.
Hoje está havendo uma redistribuição do equilíbrio global do poder — a uma velocidade incrível. Agora, quando um único indivíduo dispõe dos meios para causar uma enorme destruição, não podemos mais aceitar o mundo dividido entre ricos e pobres. Por isso, há a necessidade urgente de cooperação global e de uma nova visão que nos permita vislumbrar relações econômicas livres, justas e inclusivas.
Nós, do Fórum Econômico Mundial, começaremos esse diálogo na reunião anual em Davos em janeiro de 2019. O fórum tem a responsabilidade de conduzir as conversações e atuar como catalisador de novas ideias. A preparação para a Quarta Revolução Industrial exigirá um amplo consenso sobre soluções viáveis. O fórum espera oferecer o “sistema operacional” para esse esforço nos próximos anos, baseado na convicção de que, para esses diálogos serem eficientes, todos os participantes — as empresas, os governos, a sociedade civil e os jovens — deverão dar a sua contribuição.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional lançou os alicerces da paz, da segurança e da prosperidade sustentadas. Mas o mundo mudou radicalmente nos últimos 70 anos, e chegou o momento de adotarmos uma nova abordagem. Somente se aceitarmos esse desafio juntos poderemos moldar o futuro global em benefício de todos.
Klaus Schwab é fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial (Project Syndicate)
ECONOMIA DIGITAL
A concentração dos mercados digitais exige novas regras para garantir a competição, o bem-estar dos trabalhadores, a privacidade dos consumidores e a justa tributação | Jean Tirole
Os principais gigantes de tecnologia — como Apple, Amazon, Facebook e Google — empenharam-se explicitamente em causar disrupção em boa parte do statu quo industrial e social do mundo. Suspeito que eles foram até mais bem-sucedidos do que imaginavam, e provavelmente mais do que alguns de seus fundadores teriam desejado, considerando os efeitos nefastos que as redes sociais tiveram em eleições democráticas.
Levando-se em conta a escala e o escopo do impacto dessas empresas na sociedade, não surpreende que elas causem esperança e também medo na percepção do público. Mas uma coisa está clara: um pequeno grupo de empresas de tecnologia guarda hoje as chaves para a economia moderna. Ninguém duvida que os mercados de tecnologia da informação estejam altamente concentrados. Na maioria dos casos, uma empresa domina um mercado específico. Não há nada de anormal nisso, já que os usuários tendem a migrar para apenas uma ou duas plataformas, dependendo do serviço. Ainda assim, há motivos legítimos para nos preocuparmos se a competição está funcionando como deveria.
Há duas razões para os mercados digitais estarem tão concentrados. O primeiro é uma externalidade da rede: precisamos estar na mesma rede que a pessoa com quem queremos interagir. Esse é o modelo de negócios do Facebook, e ninguém pode duvidar do sucesso dele. Se nossos amigos estão no Facebook, nós também precisamos estar lá, mesmo que, no fundo, preferíssemos outra rede social.
Externalidades de rede podem ser diretas, como no caso do Facebook, ou indiretas, como em plataformas para as quais muitos aplicativos ou jogos foram criados. Quanto mais usuários a plataforma tiver, mais aplicativos serão feitos para ela, e vice-versa. Em outros casos, o número de usuários pode determinar a qualidade do serviço, permitindo previsões melhores com base na colaboração dos usuários. É assim que funciona o mecanismo de busca do Google e do aplicativo de navegação Waze.
Os usuários das plataformas digitais dominantes se beneficiam da presença de outros usuários na mesma plataforma, ainda que não haja interação direta entre eles. São como os moradores de uma cidade. Embora eles sejam estranhos uns aos outros, a presença de outro morador significa mais oportunidades de emprego — e mais bares, cinemas e demais espaços — do que em localidades menos povoadas.
O segundo motivo para o nível elevado de concentração dos mercados digitais é que as empresas dominantes se beneficiam de uma economia de escala. Alguns serviços requerem investimentos tecnológicos grandes; se esse serviço for um mecanismo de busca, então criá-lo custará quase a mesma coisa, independentemente de ele atrair 2 000 ou 3 trilhões de pedidos de busca por ano. O que não vai ser igual é o valor dos dados de usuários que serão gerados. O mecanismo de busca que recebe 3 trilhões de consultas pode cobrar muito mais dos anunciantes e ganhar escala muito mais rapidamente.
Assim, graças ao efeito de rede e às economias de escala, a economia digital cria “monopólios naturais” de forma quase inevitável. A economia online segue uma lógica na qual quem ganha leva tudo, ainda que com diferentes vencedores em cada setor e momento. O mercado dos navegadores de internet foi controlado primeiro pelo Netscape, depois pelo Internet Explorer, da Microsoft, e agora pelo Google Chrome.
Novos modelos de negócios
No mundo todo, políticos e reguladores devem encarar o fato de que a lógica por trás das medidas competitivas tradicionais não funciona mais. Hoje, é comum para uma plataforma como Google ou Facebook cobrar preços muito baixos — ou mesmo oferecer um serviço gratuitamente — em uma ponta do mercado, e preços muito altos na outra. Isso, naturalmente, cria suspeitas entre as autoridades responsáveis pela concorrência. Nos mercados tradicionais, tais práticas poderiam ser consideradas uma forma predatória de enfraquecer ou acabar com competidores menores. Pelo mesmo raciocínio, um preço muito alto na outra ponta do mercado pode significar o poder de monopólio em ação.
No entanto, mesmo empresas digitais menores e startups utilizam esse tipo de prática de preços assimétrica. Considere, por exemplo, os jornais online gratuitos, financiados apenas por anúncios. Esses mercados de duas faces são predominantes na economia digital, e um regulador que não leve em consideração esse modelo de negócios singular poderia se enganar e dizer que a prática de preços baixos é predatória ou que a prática de preços altos é excessiva, ainda que tais estruturas de preços venham sendo adotadas também pelas plataformas menores que entram no mercado. Os reguladores, portanto, terão de abster-se de aplicar indiscriminadamente os princípios tradicionais da política de competição. Quando se trata de plataformas multifacetadas, esses princípios não se aplicam de maneira exata na maioria dos casos.
As novas diretrizes para adaptar a política competitiva aos mercados de dupla face exigiriam levar em conta os dois lados do mercado juntos, em vez de separadamente, como tendem a fazer as autoridades que regulam as competições. É algo que vai exigir cuidado, além de uma nova abordagem analítica. Mas é melhor do que aplicar princípios tradicionais de maneira errada ou tratar esses setores como simples áreas fora da alçada das autoridades reguladoras de competição.
Repensando a regulação
De maneira mais ampla, há quatro áreas evidentes a ser regulamentadas na economia digital: competição, lei trabalhista, privacidade e tributação. Sempre que uma empresa tem uma posição dominante, há um risco grave de praticar preços altos e deixar de lado a inovação. Deve-se permitir que uma nova iniciativa, mais eficiente ou mais inovadora do que um monopólio, entre no mercado. Em geral, as novas ingressantes nos mercados online começam com um produto de nicho; se for um sucesso, elas ampliam a oferta para uma variedade maior de produtos e serviços. O Google começou só com seu mecanismo de busca, antes de se tornar a empresa que conhecemos hoje. A Amazon no início só vendia livros.
Ou seja, o que importa é se as novas entrantes, para começo de conversa, conseguem chegar ao mercado. Se uma empresa iniciante tem um produto único e original melhor do que o oferecido por seus competidores, a empresa rival pode querer impedir a novata de se estabelecer até mesmo em um pedaço do mercado. A rival fará isso não só para melhorar seus lucros no curto prazo, mas para impedir a competição com a recém-chegada nas áreas em que detém uma posição de monopólio ou para impedir a recém-chegada de se aliar aos competidores da empresa dominante.
Por esse motivo, as “vendas casadas” são uma prática anticompetitiva especialmente danosa. Ao exigir que os compradores de um de seus produtos adquiram também um pacote de outros produtos, uma empresa monopolista pode negar que as recém-chegadas tenham acesso ao mercado em uma série de áreas. Mas é impossível pensar em uma solução que atenda a todas as situações. Se as autoridades que regulam a competição deveriam ou não impedir uma empresa dominante de recorrer a vendas casadas ou a artimanhas semelhantes (descontos de fidelidade, por exemplo), isso vai depender da motivação e dos fundamentos.
No fim das contas, a única maneira válida de assegurar uma concorrência produtiva no setor digital é abordar essas questões caso a caso. Os reguladores devem usar análises rigorosas, e fazê-lo com entusiasmo, para acompanhar o ritmo das mudanças.
Equilíbrio trabalho-emprego
Quanto à lei trabalhista, está claro que as abordagens atuais funcionam mal na era digital. A maioria dos códigos trabalhistas do mundo desenvolvido foi concebida décadas atrás, com foco nos empregados de fábricas. Do jeito que está, a lei dá pouca atenção aos contratos de trabalho com prazo fixo, e menos ainda aos trabalhadores remotos, prestadores de serviço e freelancers, ou estudantes e aposentados que trabalham meio período como motoristas de Uber.
Precisamos sair de uma cultura focada em monitorar a presença física dos funcionários para algo que foque os resultados dos empregados. Já é assim para muitos assalariados, principalmente profissionais cuja presença física no local de trabalho está se tornando uma preocupação secundária — e cujo esforço, de qualquer maneira, é difícil de medir.
Quando confrontados com as tendências atuais do mercado de trabalho, os legisladores sempre tentam enquadrar as novas formas de trabalhar nas categorias existentes. Um motorista de Uber é um “empregado” ou não? Algumas pessoas afirmam que sim, já que o motorista não tem liberdade para negociar preços, além de estar sujeito a várias exigências de capacitação profissional ou relacionadas ao veículo, inclusive padrões de limpeza. Outros argumentam que os motoristas de Uber não são empregados. Afinal, eles são livres para decidir quando, onde e quanto trabalham.
Infelizmente, o debate não tem levado a lugar algum. Qualquer classificação a que chegarmos será arbitrária e sem dúvida receberá interpretações positivas ou negativas, dependendo dos preconceitos pessoais ou da predisposição ideológica quanto às novas formas de trabalhar. De qualquer maneira, o debate perde de vista o motivo de classificarmos o trabalho em primeiro lugar: para cuidar do bem-estar dos trabalhadores.
Pensando mais adiante, a prioridade deveria ser assegurar uma neutralidade competitiva: o jogo não pode ter cartas marcadas a favor do trabalho assalariado nem do trabalho autônomo. O Estado deve promover a cobertura de saúde e os direitos de seguridade social de quem trabalha como motorista de Uber, por exemplo. Ao mesmo tempo, deve evitar políticas que possam tornar as plataformas digitais inviáveis, mesmo que elas sejam incomuns e disruptivas.
O resgate da privacidade
Também é necessário haver avanços para impedir que empresas e governos se intrometam na vida particular dos consumidores. Sabe-se que essas entidades coletam grande volume de informações sobre nós. No entanto, mesmo que estejamos cientes disso, em geral falhamos em reconhecer a verdadeira escala desses processos ou suas consequências.
Por um lado, temos um controle menor do que poderíamos imaginar sobre o que as empresas e os governos coletam. Por exemplo, uma empresa compra e armazena informações a nosso respeito que são compartilhadas por outras empresas (por meio de e-mails, fotos ou redes sociais) sem que não tenhamos sequer usado essas plataformas ou mesmo acessado a internet. Por outro lado, as plataformas gastam menos do que deveriam com segurança, já que elas se beneficiam internamente das consequências de uma falha para seu próprio lucro, mas não necessariamente para -benefício dos consumidores.
Deveríamos nos preocupar, porque parece não termos mais o direito ao esquecimento, um princípio básico dos sistemas legais. Deveríamos nos preocupar com o possível colapso da solidariedade quanto à cobertura de saúde, e com a revelação de informações possivelmente delicadas a nosso respeito (religião, política, sexualidade) em ambientes não igualitários. Além disso, deveríamos nos preocupar com os limites do -alcance da vigilância do Estado.
A Lei Geral de Proteção de Dados da União Europeia não representa nada além de um primeiro passo modesto para nos proteger de ameaças assim. Avanços maiores precisam incluir a criação de uma série de políticas padronizadas que todos entendam (a regulamentação do Estado é compatível com o “paternalismo libertário”).
Manter as luzes acesas
Por fim, como a internet não tem fronteiras (o que em geral é uma boa coisa), cada vez mais os países terão de cooperar em tributação, tanto para prevenir guerras fiscais quanto para obter alguma receita de uma faixa maior da economia. Nesse sentido, o acordo firmado em 2015 na União Europeia para acabar com a guerra fiscal nas compras online pode oferecer um modelo promissor.
Em termos mais específicos, a política da União Europeia autoriza o país do comprador a aplicar seu imposto de valor agregado a qualquer compra online, enquanto no regime anterior se cobrava o imposto do fornecedor. O resultado é que as empresas têm menos incentivo para se estabelecer em locais com alíquotas menores desse imposto ou para ir atrás de consumidores em países em que o tributo é maior.
O novo sistema tem se mostrado uma resposta regulatória satisfatória a modelos de negócios como o da Amazon, que repassa a conta para o consumidor individual. Porém, ele não resolve o problema de plataformas como o Google, que tecnicamente não vende nada para pessoas físicas britânicas, holandesas, francesas ou alemãs, já que em vez disso a empresa cobra de anunciantes que o fazem. Os reguladores das economias desenvolvidas estão discutindo o problema, uma vez que a base de tributação no caso do Google é muito menos clara do que nas vendas de livros ou de música.
Como um todo, a digitalização representa uma oportunidade maravilhosa para as sociedades. Mas ela também introduz novos perigos, enquanto amplifica outros. Para chegarmos a uma economia de bem comum para todos neste novo mundo, teremos de lidar com uma enorme variedade de desafios, desde a confiança pública e a solidariedade social até a propriedade dos dados e os efeitos da difusão tecnológica. O sucesso vai depender, em particular, de conseguirmos desenvolver novas e viáveis abordagens no que diz respeito a competição, leis trabalhistas, privacidade e tributação.
Jean Tirole, ganhador do Nobel de Economia de 2014, é presidente da Escola Toulouse de Economia e do Instituto de Estudos Avançados de Toulouse. Seu livro mais recente é Economics for the Common Good (Project Syndicate)