Revista Exame

Temporada de caça aos devs

O Brasil precisa de desenvolvedores para competir num mundo cada vez mais digital. A escassez faz com que eles escolham onde trabalhar e quanto ganhar

Os alunos e professores da escola de programação Trybe: 5.000 candidatos para apenas 100 vagas em um curso que pode custar até 36.000 reais (Germano Lüders/Exame)

Os alunos e professores da escola de programação Trybe: 5.000 candidatos para apenas 100 vagas em um curso que pode custar até 36.000 reais (Germano Lüders/Exame)

CI

Carolina Ingizza

Publicado em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 15h40.

A administradora de empresas Isabel Nasser, cofundadora da startup de automatização de operações de comércio exterior Kestraa,  de São Paulo, ficou chocada quando um estagiário em desenvolvimento de softwares que estava terminando a faculdade recusou um salário de 12.000 reais com carteira assinada e generosos benefícios para ser efetivado. A proposta saltaria aos olhos de qualquer jovem, especialmente em um país onde a taxa de desemprego na faixa etária de 18 a 24 anos bate em 27%, mas o recém-formado recusou a oferta chamando-a de “insulto”, por ser baixa demais. A empresa de energia elétrica EDP do Brasil, que serve São Paulo e o Espírito Santo, quer aumentar a digitalização de processos administrativos, mas tem vagas abertas no time de tecnologia há seis meses.

Se os devs — como são chamados os desenvolvedores de software — não vão às empresas, as empresas vão aos devs. A Movile, que criou algumas das mais bem-sucedidas startups brasileiras, como iFood e PlayKids, e é avaliada em 1 bilhão de dólares, abriu escritórios em Recife, Porto Alegre e São Carlos, no interior paulista, para atrair devs em polos regionais de inovação. “Existe uma competição feroz por desenvolvedores no Brasil. Isso fez com que os salários disparassem e obrigou as empresas a participar ativamente na formação desse tipo de profissional”, diz Luciana Carvalho, vice-presidente de gente e gestão da Movile. Em média, a companhia leva 45 dias para preencher uma vaga de desenvolvedor. Bem-vindo ao fabuloso mundo dos devs, os profissionais mais requisitados do mercado de trabalho no Brasil e no mundo.

Contratar profissionais da área de tecnologia no Brasil é um trabalho hercúleo. De todas as deficiências da economia, essa é uma das mais urgentes. Entrando para valer no atual ciclo global de inovação, o país poderia finalmente chegar ao futuro que há décadas espera. “Temos uma enorme oportunidade de alavancar nossa economia. Mas, sem trabalhadores capacitados, em vez de produzir, seremos apenas importadores de tecnologia”, diz Sergio Paulo Gallindo, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom).

Victor Hugo Germano, da fábrica de software Lambda3: ele prefere demitir clientes a exigir uma carga de trabalho excessiva | Germano Lüders

O descompasso entre a disponibilidade de profissionais no Brasil e a demanda das empresas é gritante. No país há, atualmente, apenas 2 milhões de trabalhadores graduados nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, o correspondente a 1,9% da força de trabalho, segundo dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. De 2019 a 2024, de acordo com cálculos da Brasscom, a demanda média deve ser de 70.000 profissionais por ano. No entanto, em 2017, de 46.000 profissionais formados, apenas 26.000 entraram no mercado de trabalho, evidenciando uma defasagem no currículo das instituições. Nesse ritmo, ao final do período de seis anos, o déficit chegaria a 264.000.

A corrida acelerada por devs fez com que profissionais como a programadora pernambucana Roberta Arcoverde passassem a ser assediados. Há seis anos, Arcoverde trabalha remotamente para o site americano Stack Overflow, que recebe mais de 50 milhões de visitas por mês. “Devo receber uma oferta por semana, eles me abordam via LinkedIn, e-mail, pombo-correio”, brinca. Ela trabalhou para as consultorias de software brasileiras TCI, Chemtech e Radix antes de aceitar a proposta do site americano. Com mais de dez anos de experiência na área, continua estudando para acompanhar as mudanças na tecnologia. “O legal dessa profissão é poder construir coisas do zero, é uma profissão de cunho quase artístico. Sua ideia vira algo tangível, executável, que ajuda a vida das pessoas”, diz.

Desde os anos 1980, quando os primeiros computadores começaram a surgir nas empresas e gênios como Bill Gates e Steve Jobs despontaram, o Brasil enfrenta a falta de profissionais de tecnologia. Nessa época, a carência era do pessoal de suporte, encarregado por fazer softwares hoje considerados pré-históricos funcionarem. Aos poucos, a necessidade passou a ser também a de manter os profissionais conectados à rede e a pensar em novos serviços. As mudanças deslocaram os profissionais de tecnologia da função de suporte para o centro das decisões dos negócios. Os desenvolvedores tornaram-se figuras fundamentais na criação de plataformas de comércio eletrônico, de aplicativos de mobilidade e de softwares de automação industrial, entre muitas outras funcionalidades.

E, à medida que a economia digital no país ganha mais peso nos segmentos mais tradicionais de atividade, a pressão por talentos de tecnologia aumenta. A consultoria Accenture estima que a economia digital no Brasil já responde por 24,3% do PIB do Brasil — o que equivaleria a 446 bilhões de dólares. Desde 2015, todas as atividades produtivas que envolvem tecnologias digitais no país tiveram uma expansão de 20% — diante de um avanço de 1,2% da economia não digital no período. “A economia digital no país vem se diversificando rapidamente. Antes ela era formada apenas por empresas que forneciam software e equipamentos. Agora, todo tipo de negócio precisa de uma camada robusta de tecnologia”, diz Pedro Waengertner, sócio e fundador da ACE Startups, aceleradora que já investiu em mais de 100 startups brasileiras.

As startups de tecnologia se destacam na contratação dos devs porque estão recebendo vultosos investimentos e têm pressa para crescer e conquistar mercado. Em 2019, as startups brasileiras receberam 2,7 bilhões de dólares em aportes de fundos de investimento, conforme dados da Distrito, organização que faz pesquisas sobre empreendedorismo no Brasil. É quase dez vezes mais do que o valor arrecadado em 2016. Mais dinheiro, mais startups. De 2016 a 2019, o número de startups triplicou no Brasil, passando de 4.273 para 12.700. O problema é que a oferta de profissionais não dá conta do crescimento desse mercado. “A alta demanda faz com que os talentos migrem de empresa com frequência. Os empreendedores perdem muito tempo na busca e na contratação desses profissionais”, diz Amure Pinho, presidente da Associação Brasileira de Startups.

Bill Gates, fundador da Microsoft: primeira geração de devs | Doug Wilson/Getty Images

Na guerra pelos devs, cada empresa usa uma tática diferente. Em janeiro, o Nubank fez um acordo para contratar 50 funcionários da consultoria de desenvolvimento de software Plataformatec que já prestavam serviço para o banco digital. Também vem abrindo escritórios internacionais tanto para atrair profissionais que moram em outros países quanto para oferecer a seus funcionários o benefício de morar fora. Desde 2017, o Nubank tem um escritório em Berlim, na Alemanha.

Em 2019, foi a vez de a Cidade do México e de Buenos Aires, na Argentina, receberem filiais do unicórnio brasileiro, avaliado em mais de 10 bilhões de dólares. O diferencial do banco, eleito pelo LinkedIn em 2018 e 2019 como a startup brasileira mais desejada para trabalhar, foi construir uma marca empregadora forte a ponto de conseguir contratar brasileiros que estavam fora do país. “Miramos os engenheiros brasileiros que estão em companhias em diferentes países, porque eles realmente querem voltar e fazer parte de algo significativo que vai mudar o Brasil”, diz Renee Mauldin, diretora de pessoas da empresa.

Renee Mauldin, do Nubank: busca por brasileiros que trabalham no exterior | Germano Lüders

Empresas brasileiras disputam os escassos talentos locais com o mercado internacional. Só nos Estados Unidos há 472.000 vagas em aberto para profissionais da área. O programador brasileiro é bom tecnicamente e é barato. Enquanto nos Estados Unidos o salário médio de um programador é de 109.000 dólares por ano, no Brasil é de 11.000 dólares. Outro desafio para os empregadores brasileiros é o fato de que 87% dos especialistas em tecnologia do país estarem dispostos a experimentar oportunidades de trabalho fora, segundo pesquisa da consultoria Boston Consulting Group em parceria com a empresa de recrutamento The Network. A porcentagem é maior do que a média global, de 67%. De acordo com o estudo, brasileiros são mais atraí-dos por oportunidades nos Estados Unidos, no Canadá, em Portugal e na Alemanha. Para eles, o que mais importa na hora de escolher uma vaga é a possibilidade de crescimento na carreira — o salário aparece só na oitava posição da lista.

A perspectiva da carreira internacional fez com que o catarinense Marcelo Camargo, considerado uma celebridade no mundo dos devs no Brasil, trocasse Joinville por Sydney, na Austrália. Aos 23 anos, é engenheiro de software sênior na Atlassian, maior empresa de software australiana, avaliada em 18 bilhões de dólares. Por aqui, ele ficou famoso por ter escrito o código que deu origem ao “Gemidão do WhatsApp”, brincadeira que viralizou em 2017. Em junho do ano passado, ele recebeu a proposta que considerou irrecusável.

Levou uma bolada em ações da empresa na contratação, ganha mais do que um desenvolvedor australiano (o salário médio anual é de cerca de 85.000 dólares no país) — e trabalha cerca de 8 horas por dia. “Não é aquela rotina de passar o dia inteiro escrevendo códigos. Parte do meu tempo é dedicada a desenvolver projetos com outros times”, diz o dev, que largou a faculdade de sistemas de informação depois de ter cursado apenas o primeiro ano. Líder de uma equipe de outros quatro desenvolvedores, ele recebe semanalmente duas ou três sondagens para trocar de emprego. Camargo encontrou no setor de tecnologia um ambiente diverso e inclusivo: ele é homossexual e tem síndrome de Asperger, condição dentro do espectro do autismo. “Aqui me sinto mais seguro”, diz.

Que as empresas estrangeiras estejam em larga vantagem para levar os desenvolvedores brasileiros é uma questão cambial. Logo, cabe às empresas no país criar estratégias para treinar um número cada vez maior de programadores. Em 2017, ao decidir começar a usar robôs para desempenhar as tarefas repetitivas de seu centro de serviços compartilhados, a EDP convidou os cerca de 200 funcionários do departamento para se tornarem, eles próprios, os programadores dos novos colaboradores autômatos. Uma analista de folha de pagamentos e um auxiliar administrativo tornaram-se desenvolvedores após dois meses de curso, usando uma plataforma que não exige o conhecimento aprofundado de codificação. “Conseguimos provar, na prática, que a tecnologia pode ser uma ferramenta que libera as pessoas de trabalhos braçais para que possam executar tarefas mais criativas”, diz Luis Gouveia, diretor de pessoas, tecnologia e sociedade da EDP.


REQUISITADOS E BEM PAGOS

Quem são e o que fazem as estrelas do mercado de trabalho no Brasil e no mundo | Fotos Germano Lüders


JOVEM E DISPUTADO

 

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